domingo, 31 de agosto de 2008

Conto IX - Gomes e o Pássaro


Urrou, parecia que tinha devorado um boi inteiro. Não comia tão bem assim desde o Natal passado, passado na casa de Sinhô Fernandes, quando o dono da fazenda chamara todos os seus empregados para participarem da ceia e comemorarem a boa colheita. Sua respiração era ofegante, nunca vira tanta fartura, sorria e arregalava-se na cadeira batendo no bucho cheio de orgulho.
Procurou suas crianças no meio da festança, viu que estavam as três e mais algumas outras a infernizar o pároco, que insistentemente tentava explicar a elas algumas histórias bíblicas. Riu da situação, se nem mesmo ele entendia a linguagem difícil dos clérigos e dos homens estudados da cidades, o que seria das pobres crianças.
Rivaldo, o filho mais novo, veio correndo até ele com cara de novidade: “Pai, o pároco nos disse que as pessoas boas quando morrem vão para o céu, é verdade?” Normalmente Gomes passaria as questões religiosas para serem respondidas por sua esposa, afinal, era ela quem freqüentava a missa todos os domingos sem pestanejar, mas sentiu-se útil, sentiu-se importante e poderia exercer o seu papel de pai explicando ao pequeno as coisas que sabia, essa era uma delas. “Sim moleque, quando a morte chegar se formos bons vamos para o céu.” Falou ele um pouco irritado e até com um ar prepotente de quem zombava da ignorância do próprio filho.
O filho irradiou-se e não conteve uma segunda pergunta: “Pai, todos os pássaros, então, são pessoas boas? Até mesmo os urubus?” Gomes sentiu o peso da dúvida, lamentava-se por não ter mandado o moleque ir tratar com a mãe já na primeira pergunta. Sabia que as pessoas boas vão para o céu, mas será que virariam pássaros? Nunca tinha ouvido falar disso, mas o filho plantou-lhe a dúvida. Não era grande freqüentador das missas e das poucas que ia, quase sempre sentava no fundo e acabava cochilando. Irritado, levantou-se da mesa e bradou: “Se arreda daqui moleque.” As três crianças, Rivaldo e as outras duas que observavam o colóquio, saíram apressadamente com medo do pai.
Gomes resolveu caminhar para livrar-se do mal causado pela abundância de comida. Andou, andou e foi se assentar na beira do rio. Em paz, olhando o sol refletido nas águas claras e quase raras do rio que não via chuva a meses, voltou-se a pergunta do filho: “Será que os pássaros eram mesmo pessoas boas que tinham morrido?” Não sabia.
Arregalou-se e adormeceu embaixo de uma árvore seca e já quase sem folha. Sonhou com os filhos perguntando coisas que nunca tinha ouvido falar, sonhou com pessoas boas voando com asas dadas por Deus, como anjos. Viu sua mulher, seus três filhos, o pároco, Sinhô Fernandes e muitas outras pessoas da redondeza, todas voavam com graça. Sonhou com a comilança e que era dono de grande fazenda, poderia comer aquela quantidade de comida sempre que quisesse. Sonhou, sonhou.
Já quase no ocaso, acordou. Viu que um pássaro velava o seu sono. Sentiu-se cúmplice da ave, os dois se entreolharam por alguns instante e relembrou-se da pergunta do filho. Lembrou-se de sua mãe, que como o pássaro estava sempre presente em sua cama ao dormir e antes de acordar. Pensou que o filho pudesse estar certo. Girou de lado e ajeitou-se de forma respeitosa, de joelhos em frente ao pássaro, com lágrima aos olhos falou com voz entrecortada: “Se for a senhora, mãe, me dê a sua benção.” A ave voou e posou em sua mão, Gomes a levantou a altura dos olhos e os dois se olharam permanecendo assim em um momento de prece, não sabia nenhuma das rezas que eram ensinadas na Igreja, mesmo assim, com as mais bonitas e poucas palavras que conhecia agradeceu a Deus por aquele momento. O pássaro voou para o horizonte.
Levantou-se e respirou fundo, achara a resposta do filho. Não importava mais o que o pároco ou os homens estudados da cidade diriam, para Gomes todos as pessoas boas virariam pássaros e voariam livres pelo céu azul.

2 comentários:

pontos... disse...

Curti, Jota! Achei o conto de uma simplicidade difícil de alcançar. Um conto que curto demais que fala de animais é um do Brecht, "Se os tubarões fossem homens". Ele pega outro lado da coisa: http://resistir.info/brecht/tubaroes_homens.html .
Legal pensar como a ingenuidade da criança quebrou a couraça do pai. E quebrou isso num sonho. Como já diziam, a vida é sonho!

Anônimo disse...

Oi! Não poderia deixar de marcar presença por aqui, você é fiel aos meus posts e assim serei nos seus rs. Parabéns por mais um conto encantador,adoro contemplar seus contos. Um grande beijo, Fabi!