sábado, 16 de agosto de 2008

Conto VII - Do outro lado da rua

Abriu os olhos aos poucos, o som do despertador, nada animador para um sábado de manhã, era terrível. Virou para o lado, o objeto continuava tocando. Seu colega de quarto tomou coragem, levantou, desligou o alarme, chamou: “Raul, você vai se atrasar para o trabalho”; e voltou a dormir, ele merecia. Os dois tinham ficado até de madrugada festejando com mais alguns amigos e amigas a promoção de Raul, este havia subido de cargo no emprego e finalmente teria dinheiro de sobra para comprar um carro, idéia que já vinha perseguindo há anos.
Custou a levantar. A coragem só veio quando lembrou de sua promoção, tinha que levantar, tinha que se mostrar digno daquela confiança e saltou da cama, pegou sua toalha, suas roupas e foi ao banheiro. Tomou banho, escovou os dentes, fez a barba, estava impecável. Colocou sua roupa social, tão social quanto o papel que pretendia exercer: um futuro executivo de sucesso. A promoção era apenas a alvorada de sua vida. O sol começava a nascer de verdade para Raul, o progresso dentro da empresa era inevitável, ele atingira aquilo que todos chamavam de Felicidade. Teria seu salário dobrado, poderia comprar o seu tão sonhado carro, poderia morar sozinho, poderia até, se quisesse, casar com Joana, mas ainda não era hora.
Saiu de casa pisando firme, decidido em mostrar a todos que o “novo chefe” estava passando. Desceu o elevador, passou pelo saguão vazio e quase silencioso, não fossem o som de seus sapatos, cumprimentou o porteiro e saiu, ainda pensando em sua promoção. “Posso comprar o meu carro, não acredito, vou poder morar sozinho, comprar um celular novo, roupas novas...”. Continuou a prever o futuro.
Atravessou a rua e andou mais cinco minutos para chegar no mesmo ponto de ônibus de todo dia. “Essa vida está acabando”, pensou ele. Encontrou as mesmas pessoas de todos os sábados, o italiano que vai comprar jornal na banca, a madame passeando com seu cachorro, alguns adolescentes com os livros dos cursos de inglês e a garota do telemarketing sempre atrasada para pegar o ônibus.
Seriam as mesmas personagens de todos os sábados de manhã não fosse um grupo de mendigos na praça do outro lado da rua. Raul olhou com indignação aquele grupo de vagabundos. Ele estava indo trabalhar, ele era digno, ele tinha sido promovido, ele tinha uma Roupa Social diferente da deles. Sujos, rasgados, fedorentos; tão animais quanto o cão que os acompanhava na balburdia. Aquilo incomodava Raul e as pessoas que passavam por aquela rua.
Os “vagabundos” estavam bêbados, “pra variar”, como pensou Raul. Havia três homens, uma mulher e um cachorro, todos se assemelhavam, todos eram movidos pelos instinto. O quadrúpede, as vezes, parecia ser mais racional do que os bípedes. Um dos homens dançava com a mulher, enquanto os outros dois cantavam um forró e batiam palmas, marcando o ritmo.
“Irracionais, vagabundos. Deveriam estar trabalhando e não bebendo e zoneando por aí”. Estavam sujos e maltrapilhos, mas aquela felicidade era tão verdadeira... incomodava Raul. Não conseguia entender como aqueles seres podiam estar tão felizes. Não tinham dinheiro algum, o que tinham foi gasto em uma garrafa de 51 que bebiam com exagero. Não tinham casa, não tinham carro, não tinham emprego, não tinham celular, não tinham promoção. Não tinham nada do que trazia felicidade para Raul. Nada?
“Eles não têm nada para oferecer, por que o cachorro ainda está com eles? Por quê?” Raul não entendia o prazer de estar ali com eles, desvalidos e felizes. Não entendia a felicidade deles. Era uma felicidade tão verdadeira, e, apesar da situação, os cinco seres demonstravam uma amizade extremamente sincera, os quatro bípedes e o quadrúpede.
Ao pensar nisso, lembrou de seus amigos e das zoeiras que faziam. Lembrou-se da cumplicidade que tinham e da alegria de estarem juntos e olhou os homens, a mulher e o cachorro com outros olhos. Imaginou-os vestidos com outras Roupas Sociais e viu seres humanos, pessoas comuns, pessoas como ele. Então, finalmente ele entendeu: não estavam presos a construções criadas pela sociedade, não buscavam a felicidade trazida pelo dinheiro, pela satisfação material, pois esta não era acessível a eles, mas sim, viviam a felicidade em estado bruto, aquela experimentada, não procurada, aquela que está nas coisas simples e que não podem ser desmanchadas, uma felicidade compartilhada, uma felicidade sólida.
Seu ônibus chegou ao ponto, as pessoas se apertavam para entrar, os que já estavam dentro reclamavam, os que queriam subir também. Todo mundo se acomodou e o motorista partiu. O ônibus se foi, Raul ficou. Ele atravessou a rua e foi em direção ao seus iguais. Tirou a Roupa Social que vestia e desafrouxou a gravata. Chegou perto dos homens que estavam batendo palmas, marcando o ritmo da música que cantavam e fez o mesmo. Logo ofereceram-lhe um gole de cachaça, ele tomou e voltou as palmas. Raul se sentiu feliz, feliz em estado sólido. Sabia que não estava preparado para se libertar de todas as construções e cobranças da sociedade, não era tão corajoso assim, logo voltaria para sua felicidade “fabricada”, mas pelo menos hoje viveria aquilo. Desistiu de ir trabalhar naquele dia, os papéis que tinha que preparar para sua primeira reunião como chefe não eram tão importantes assim, e continuou batendo palmas. Cantaram, beberam e almoçaram na casa de Raul. Ele passou o dia inteiro com seus novos amigos. Foi o dia mais feliz de sua vida, ele descobriu a essência do que chamam de Felicidade.

3 comentários:

Anônimo disse...

Afinal de contas, o que seria a tal da felicidade? Que nem um professor, que admiro muito, ele disse o seguinte: sempre depois de um momento de "alegria", surge um sentimento diferente, algo como uma alfinitada... uma certa angústia. Esse sentimento é quando percebemos que somos uma eterna questão, semnpre nos questionamos principalmente o caminho para felicidade! Talvez não exista uma definição, ou um caminho a ser traçado! "Viver é deixar viver"

pontos... disse...

a essência da Felicidade. ele se libertou. então Felicidade tem a ver com Liberdade? Talvez Felicidade seja se sentir mais solto de tudo e mais você mesmo, ou seja, mais sua própria essência. A Felicidade é a Liberdade de ser você mesmo. A Felicidade é você mesmo.

Mas vivendo no sistema que vivemos, a vida que vivemos, o mundo que vivemos - único mundo - feito pelo homem, cria e criador deste homem (nós mesmos), uma hora vem a ressaca, e vêm os vômitos, e vêm o desvirtuamento do eu no tal mundo. E o que fazer? Nunca mais se embriagar de Felicidade? Nunca mais ser livre? Nunca mais sentir a própria essência e liberdade de se descobrir?!

Anônimo disse...

Fala Jota !! Tá escrevendo bem, hein !!!

Texto excelente ! Adorei !

Abração,
Daniel Naka