quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

2009

Ano passado, prometi para mim mesmo que passaria a virada na praia, cheguei perto. Voltei hoje, por alguns motivos, para a “civilização”. Novamente passarei na cidade.
É engraçado, programamos tanto a passagem de ano, pois, o jeito que passamos por ela parece ser uma prévia do jeito que o nosso ano será. Pura idiotice. A minha passagem de ano será tão normal (será?) quanto alguns outros anos, mas estou sentindo um clima novo na minha vida. Estou sentindo que mudanças boas estão para chegar.
É complicado para os historiadores falar de mudanças, rupturas, pois sabemos que todos os processos têm suas continuidades. Não estou falando que hoje, a partir da meia noite, teremos um novo Junior, não, não é isso. O que estou querendo dizer é que tenho sentidos algumas mudanças no meu jeito de encarar as coisas, a vida, etc. que, não tenho dúvida irão refletir de maneira diferente para o próximo ano.
Desta vez, não vou desejar um “ano nulo”, mas sim um “ano fantástico”, seja lá, o que queira dizer isso. O que eu desejo de verdade é que o eterno sopre seu bafo sobre o meu rosto, preciso respirar a eternidade pelo menos por alguns segundos em 2009. Preciso muito ter a sensação, mesmo sabendo das efemeridades da vida, que podemos construir algo que subverta a ordem do “tudo que é sólido desmancha no ar”. Quero ter esta ilusão em 2009.
Quero sonhar, sim, quero sonhar muito. Quero acabar com esse pessimismo pós-moderno que se apossou de mim em 2008 e que matou os meus sonhos. Quero sonhar, quero ser tomado pelo transcendental, quero expulsar do meu corpo esta mente racionalizada e “insensível” as coisas “mágicas” que me tornei.
Quero andar de pés descalços, pisar na grama molhada, tomar banho de chuva.
Quero ser um Mensh, e não um ÜberMensh. Quero experimentar as sensações puras da vida.
Quero falar com desconhecidos na rua, observá-los e descrevê-los. Quero continuar um “flauner” no meio da multidão.
Quero tomar cerveja, vinho e tocar violão. Quero encontrar o lado dionisíaco que foi morto por Apolo em mim. Reencontrar através da música, o transcendental.
Quero acabar, definitivamente, todas as matérias da faculdade de música. Quero viver a música como algo que afaste os males para longe e não algo que só traga preocupações. Quero uma música nova para 2009. Quero tocar violão com simplicidade.
Quero correr, dessa vez não para fugir dos problemas, mas para melhor minha saúde. Chega de problemas de joelho (os malditos voltaram a doer em novembro e têm incomodado bastante), chega de cansaço, chega de falta de condicionamento. Quero que em 2009, nessa mesma data, eu esteja correndo a São Silvestre. É serio... eu sei que ninguém acredita em mim, mas eu vou tentar.
Quero ganhar mais dinheiro. Talvez dar mais aulas.
Quero, isso antes do começo das aulas, fazer a minha segunda tatuagem. Será um ouroboros nas costas. Essa vai ser carinha mais quero fazê-la antes de Março.
Quero emagrecer pelo menos 4 quilos esse ano. Pelo menos.
Quero escrever muitos contos, muitos, muitos. Quem sabe um por semana.
Quero sair com os meus amigos para me divertir. Amos vocês todos, sério.
Quero ler literatura “infantil”, “Le petit prince”, “História sem fim”, entre outros. Pureza, quero fugir da mente racionalizada dos adultos. Será o contraponto as leituras da faculdade.
Quero ler muita literatura. Sim, viva a literatura. Quero ler o máximo livros que puder.
Quero, quem sabe, aprender a dançar. Gostaria muito de fazer aula de dança em 2009. Quem sabe...
Quero entender a modernidade, a pós-modernidade, etc. Uahuahuahauhauauha.
Quero poder ser eu mesmo, sempre. Não quero ser um homem partido ao meio.
Quero coisas novas. Não objetos, que são descartáveis, mas pessoas, sensações, amizades, livros, filmes, viagens, etc.
E se nenhuma dessas coisas acontecerem, quero que o acaso me traga coisas boas. Em 2008 as coisas mais imprevisíveis foram as que mais me deram prazer e, para 2009, desejo muito que os acasos aconteçam. E quero que me lembre sempre que “todo infinito é instantâneo”.

sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

RETROSPECTIVA 2008

Sabe aquela frase “é melhor tomar cuidado com que se deseja”? Pois é, depois de 2008 vou tomar mais cuidado com as minha palavras. Estava relendo as coisas que escrevi no meu antigo blog e fiquei surpreso:

“Dessa vez não vou dizer: “Esse vai ser o meu ano”...mas, que seja o ano de outra pessoa... Que outra pessoa se dê muito bem esse ano, que seja feliz.
Por enquanto, vou curtir a minha estadia no “dark side at the moon”, é bom, te faz pensar na vida, rever valores, e as coisas que realmente te fazem feliz... Sabe, as vezes precisamos de um ano nulo, aquele ano que passa em branco, que só conta mesmo na idade.”

Pois é. Sério, o que foi 2008? Para mim foi sem dúvida o ano mais estranho, mais obscuro da minha vida, foi realmente meu ano “dark side at the moon”. “Ah, coitado!” Talvez, vocês possam pensar, mas não pensem isso, este também foi o ano mais fantástico da minha vida.
Não ganhei mais dinheiro, não namorei, sofri muito com as duas faculdades, novamente – todo mundo sabe que é loucura e eu também, não posso reclamar –, sofri novamente com decepções amorosas, porém, foi o ano em que se dissiparam “todas” – pelo menos boa parte – das máscaras do mundo, o ano em que me conheci de uma forma que nunca havia conhecido antes, como se eu mesmo fosse outra pessoa, como se até então o que havia feito era apenas mentir para mim mesmo.
O Jaime Junior desse ano foi dividido em dois, assim como os semestres do ano. Na primeira parte de 2008 o lema era: “eficiência”. Vivi como vivi 2007 inteiro. Noites mal dormidas, brigas e tentativas de retorno com a Silvia, a busca pelas notas altas... O peso do mundo sobre minhas costas. Algum tempo atrás eu li, não sei aonde, que o melhor exemplo para o herói moderno era o Atlas, sabe aquele cara da mitologia grega que carrega o mundo sobre suas costas?, pois é... Talvez seja um bom exemplo para o que eu tenha sido, mas não me orgulho em nada disso. Eu fui um idiota.
Eu fui na virada de 2007 para 2008 para Petrópolis com o Caio e que com a Dani. Enquanto os dois curtiam a cachoeira, sabem o que eu fazia? Ficava lendo “A ética protestante e o espírito do Capitalismo”, pela terceira vez. Sabe, não me julguem mal, mas eu realmente tentava devorar o mundo com os meus olhos, correr atrás do tempo perdido para obter todo conhecimento do mundo. Sabem quantos livros eu li nas férias? Janeiro e fevereiro? Quatorze, sim uma média de sete por mês. Que porra. Há uma frase do Ralph Waldo Emerson, que o Bauman usa, que acho talvez a melhor frase para explicar o nosso tempo e o jeito como eu vivia: “Quando se patina sobre o gelo fino, a segurança está na nossa velocidade”. Ou talvez possa também utilizar um trecho de Alice no país das Maravilhas, também utilizado pelo Bauman (meu guru, hehehe), que é: “Agora, aqui, veja, é preciso correr o máximo que você puder para permanecer no mesmo lugar. Se quiser ir a algum outro lugar, deve correr pelo menos duas vezes mais depressa do que isso!”. Era assim que eu me sentia, deveria correr duas vezes mais para sair do lugar, a sensação que tinha era que se não o fizesse ficaria no mesmo lugar e ficar no mesmo lugar na camada de gelo fino significa afundar. Isso, pode parecer louvável, engraçado, sei lá, mas não é nenhum dos dois... é ridículo, é quase doente. Vivi mal pra caralho por causa dessa porra chamada “princípio de eficiência”. Uma porra que me fez ligar tremendo e chorando pro meu pai, depois de três noites dormindo duas horas, vivendo a base de café e pó de guaraná, para falar que eu corria risco de ficar com DP em uma matéria na faculdade de música. O pior não foi isso, foi ouvir o professor falando: “você atingiu a nota para passar mas acho que você tem que fazer a matéria de novo.” Meu stress era tanto que não agüentei quando eu ouvi a voz do meu pai no telefone, chorei que ninguém uma criança. Só naquele dia eu tive 4 provas, sim, 4, 3 na de música e uma na de história. Minhas notas foram boas, mas a pergunta que me faço é: Pra quê?
A “mudança” veio junto com as férias. Em uma viagem que o pessoal da Unifesp fez para Minas aconteceu algo envolvendo três pessoas, eu era uma delas. Esse “algo” marcou a vida dessas três pessoas, de maneiras diferentes, mas sem dúvida foram marcas fortes para os três. Raiva, pena, amor, ódio, calor, frio, sobriedade, ebriedade, não é a toa que todo mundo conhece Minas pelo seu “barroco”, pois foi lá que os opostos se tocaram. Como diz Milan Kundera, quando os opostos estão tão próximos e quase se tocam “a existência humana perde suas dimensões e adquire uma INSUSTENTÁVEL leveza”. Quando os opostos estão próximos, tudo o que damos valor perde seu peso, quando o amor e o ódio estão vivamente presentes, ao mesmo tempo, o sentido que dávamos para eles perde seu valor, porém esta falta de peso, deixa sobre nossos ombros uma leveza insustentável. Foi assim que Minas se apresentou para mim e foi ali que começou minha “pós-modernidade”. Eu sempre fui um cara sonhador, vivia preso no futuro, “planejando” o que seria minha vida, ou, um cara meio passadista, sempre gostei de me lembrar da infância, relacionamentos passados, etc. Whatever, eu não estava preso no presente, estava sempre preso em um dos dois extremos, e foi quando os extremos se tocaram que o presente foi ouvido. Lembro-me bem de uma conversa que tive com uma das pessoas envolvidas neste “algo” que lhe falei “engraçado não consigo mais pensar no passado e nem ter esperanças no futuro”.
Provavelmente, vocês estejam pensando: “ah coitado”. Novamente peço, não pensem isso. Tem uma frase no filme “Pequena Miss Sunshine” que o tio da menina fala com o seu irmão mais velho sobre Proust, ele fala que o Proust era um cara fracassado, porém, chegou no final da vida e viu que não fossem estes anos de sofrimento, ele não seria quem ele era. Por isso 2008 foi um ano fantástico, pois foi através dele que consegui desmascarar o mundo e a mim mesmo.
Logo após o “algo” de Minas, e devido a minha falta de esperanças no futuro pude me desmascarar. Quando eu pensava “eu vou fazer isso, aquilo e tal”, eu pensava de forma muito realística, “não, você não vai, porque você é assim e daquele jeito”. Eu havia me enxergado. Todas as minhas limitações, todas as minhas potencialidades, apareciam diante dos meus olhos. Eu ouvi certa vez que o mito da medusa representa o fato de olharmos para nós mesmos, ficamos petrificados não porque olhamos para um monstro com cobras ao invés dos cabelos, mas porque olhamos para nós mesmos, porém, no reflexo, o que vemos é a figura monstruosa. Foi isso que aconteceu, olhei-me nos meus próprios olhos e vi o que era.
Desde as aulas de Contemporânea I comecei a enxergar o mundo em que vivemos como um mundo onde não me reconhecia. Assim como um “flauner”, passei a observar as pessoas e a sociedade e comecei a pensar: ah, então o mundo contemporâneo é assim... Puts, fudeu, sou uma peça que não se encaixa nesse mundo. Até “pode” ser que me encaixasse na velha modernidade, porém, estamos em outra modernidade agora, “a segunda”, “a líquida”, “a pós”, como queiram chamar, mas está aí o problema. A modernidade vendeu a todos a possibilidade de construir algo eterno e essa mentalidade permanece nos nossos dias. Quando Marx disse “Tudo que é sólido desmancha no ar – tudo que é sagrado é profanado”, ele estava falando dos sólidos e dos sagrados que estavam derretendo em sua época, o Antigo Regime, a Igreja, os valores tradicionais, etc, porém, vivemos num tempo onde novamente esta frase necessita ser repetida. Tudo que a modernidade construiu, seus “sólidos”, está sendo desmanchado, por isso que prefiro o termo “pós-modernidade”, e o que nos resta é essa sensação de estar perdido. A modernidade está virando sobre si mesma. Venderam para a gente que no final todo mundo ia ser feliz, que chegaria um momento onde todos seriam “felizes para sempre”, porém, isso não existe.
A questão da felicidade é algo que vem me assombrando desde 2006, quando comecei a perceber, cada vez mais, que este “felizes para sempre” não existe. Apesar de saber que não existe, era o que eu realmente desejava. É bobo, eu sei, mas era o que acontecia. Porém, depois de Minas, meu desencanto e minha angústia eram tão grandes que precisavam serem exteriorizados, daí surgiram os contos. Os contos foram algo que foram utilizados como válvula de escape. Foram essenciais nesses segundo semestre e, também, foram essencial na minha reflexão sobre o mundo.
Porém, se eu, para parafrasear Marx, fui forçado a enfrentar com sentidos mais sóbrios minhas reais condições de vida e minha relação com os outros homens, ainda havia algo que não havia mudado, ele: “o princípio de eficiência”. Demorei um pouco para que caísse a ficha do quão nociva estava sendo a vida que estava levando. Isso explodiu no TCC. Em agosto eu tinha um tema, em Setembro eu tinha outro, em outubro eu tinha que entregar a primeira parte do trabalho. Foi uma loucura, não foi fácil. Resolvi mudar o tema pois realmente o antigo, Guitarra e Internet, não estava me dando tesão, na verdade, o problema era bem pior, não estava conseguindo ter vontade de caminhar nesse tema, foi então que resolvi mudar para Chico Buarque e me encontrei. Resultado, fiz um TCC de quase 80 páginas em 1 mês. O tema: “Tradição e Modernidade em Chico Buarque”. Novamente, ela, a modernidade, me perseguia e foi extremamente prazeroso perceber que também perseguiu o Chico, durante um tempo, hahaha. Daí surgiu a mágica do TCC em 1 mês. Uma vez, falei com a Michele: “se na banca, eles me perguntarem ‘como você sabe que o Chico estava realmente passando por isso?’ A resposta que darei será algo como ‘de acordo com a bibliografia’, mas a real, aquela que estará ecoando na minha cabeça será ‘eu sei, tenho certeza, porque é isso também que estou passando’, hehehe. Talvez, tão importante quanto essa retrospectiva, para entender o meu 2008, seja o meu TCC. Ali esta também o meu conflito.
Mas voltemos ao “principio de eficiência”, termo que aprendi em um dos livros que li sobre o Chico Buarque. Gostei tanto que comecei a me enxergar nele. Esse um mês que vivi para o TCC foi insano. Vivi para o TCC, dando ênfase no vivi, não é exagerar. Não saía de casa, não lia os textos da faculdade de história, não viajava com os amigos, não vi meu pai, nem meu irmão, foi foda. Tudo para o TCC, na verdade aí já não era tanto um principio de eficiência, mas sim uma obrigação, uma obrigação que me dava tanto prazer que me fez enxergar o jeito como eu estava vivendo.
Nessa pesquisa, duas coisas me fizeram pensar e muito na minha vida. Uma foi um parágrafo do “Tudo que é sólido desmancha no ar” do Marshall Berman, onde, em sua análise do Fausto de Goethe, ele diz que um espírito da terra fala para o protagonista algo do tipo: por que você, ao invés de tentar ser um Übermensh (super-homem) “não luta para se tornar um Mensh – um autêntico ser humano?” Foi então que percebi que tinha perdido minha humanidade, eu vivia como um Fausto, mais humilde, que lia Weber, enquanto seus amigos curtiam a cachoeira, que passou um mês trancafiado em sua torre em Suzano vivendo para um TCC. Havia perdido o que era devidamente humano. Depois disso comecei a me questionar bastante sobre isso. Vale a pena tentar ser um Übermensh e perder tudo de mais belo que ser um Mensh pode te oferecer? Depende, isso pode ser uma escolha e não cabe a nós julgar sobre isso. Porém, a grande ingenuidade dessa escolha é que, mesmo que você passe a vida trancafiado em uma torre, tentando absorver todo conhecimento do mundo, tentando tocar guitarra o mais rápido possível, fazer os passos de dança perfeito, construir o viaduto perfeito, se tornar o atleta perfeito, etc. nada disso é garantido. Um músico que passa horas treinando ficará bom tecnicamente, mas talvez não atinja a sensibilidade de um Beethoven, ou talvez atinja, seja um gênio e não seja descoberto exatamente porque passou tempo demais em sua torre. Não temos nenhuma garantia.
A outra foi uma música do Chico chamada “Cara a Cara”, cujo refrão final é:

Vou correndo, vou-me embora
Faço um bota-fora
Pega um lenço agita e chora
Cumpre o seu dever
Bota força nessa coisa
Que se a coisa pára
A gente fica cara a cara
Cara a cara cara a cara
Com o que não quer ver

Para fazer a análise dessa música usei muito a metáfora do “gelo fino”. Essa música, segundo Adélia Bezerra de Menezes é guiada pelo “princípio de desempenho”. Porém, o mais fantástico nessa música é o fato do personagem não poder parar, porque, senão, ele fica “cara a cara com o que não quer ver”. E o que seria isso? Talvez sua própria condição de vida. Através desse trecho eu percebi o porquê de tanta correria. Fugia para não “enfrentar com sentidos mais sóbrios minhas reais condições de vida e minha relação com os outros homens”. Final de 2006, 2007 e metade de 2008 corri, como quem foge de sua sombra, só depois de Minas, só depois que o freio de mão foi puxado, minha sombra, e esse exemplo cai bem, pois podemos usar literalmente aqui o conceito de sombra de Jung, pôde me alcançar. E então as Máscaras (as minhas para MIM) caíram.
O final de semestre foi tão “tenso” - ou até mais - quanto o primeiro, porém, consegui vencê-lo com leveza, sem o peso do mundo sobre as costas. Consegui manter a minha média na faculdade de História e tive a minha melhor média na faculdade de música nos quatro anos. Esse semestre tive quatro 10... Acho que isso nunca mais ocorrerá na minha vida acadêmica, hahaha, nunca mais. Foi pesado, mas leve, como o peso da gravidade, o qual sentimos, mas pelo qual passamos indiferente. Uma força que não tentamos controlar ou vencer. E aprendi algo extremamente importante: Sou eu que controlo o que faço e não o que faço que me controla. O mal da modernidade é justamente ter ultrapassado todos os limites humanos, sentimentais, biológicos, mentais, etc. Tornamo-nos apenas a machinae animatae de Descartes. Eu não sou uma máquina, eu não sou um Ubermensh, sou um homem.
Desde então a INSUSTENTÁVEL leveza foi substituída por uma leveza indefinida, talvez sonhadora, talvez ébria, talvez desejada. Apesar da cirurgia da minha mãe que foi um período tenso, coisas muito legais aconteceram comigo no final deste ano. Há um post no meu antigo blog que falava sobre momentos felizes que eu gostaria de guardar em um retrato na parede. Esse mês de Dezembro tive um, tirei dez no TCC. Quando vi quase tive um treco de felicidade, hahaha.
Bem, mas já falei demais... Só gostaria de dizer que termino 2008 com uma leveza edificante, que traz bons fluídos e uma desconfiança de que 2009 será sensacional. Bem, já que falei para 2008, “que seja o ano de alguém”, gostaria de ser um pouco mais egoísta esse ano e falar “que seja o meu ano”, hahaha, que 2009 traga coisas boas, não só para mim mas para todos. As metas eu deixo para outro post.
Beijos e Abraços e obrigado por este ano, amigos.
J. J
PS: Não vou reler para corrigir porque estou cansado, então me perdoem pelo erros.

quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

CONTO XXI - O ÔNIBUS


A chuva caía insistente na estrada fazendo com que o motorista tivesse que guiar com o máximo de cuidado. Era noite. O caminho sem iluminação. O farol do ônibus iluminava as gotas de chuva, projetando a frente a única luz que se via naquela estrada. De um lado, mato, de outro, mais mato. Carros, em ambos os lados da rodovia, eram raros. O ônibus mantinha seu guiar solitário, desbravando o asfalto esburacado. O motorista era a única alma acordada. Guiava o veículo com habilidade, na chuva, no escuro e nos buracos, enquanto um pouco mais de dez passageiros dormiam despreocupados.
As pessoas sentavam-se separadas. Excetuando o casal de namorados sentados na frente, dormindo abraçados, todos os viajantes estavam espalhados pelos cantos do ônibus. Alguns aproveitavam a poltrona livre a seu lado parra esticar as pernas e dormir mais confortavelmente, afinal a viagem era longa. Outros aproveitaram o local vago para descansar sua bagagem.
O banco confortável, o ar condicionado ligado em uma temperatura amena, a música individualizada que tocava em alguns mp3s, tudo isso fazia as pessoas se esquecerem da chuva, do escuro e dos buracos. Ninguém se preocupava com o caminho a seguir, só desejavam ser levadas, conduzidas sem nenhuma participação no processo para a tão aguardada cidade-destino.
O motorista saiu da estrada. A confortável linha reta havia se transformada em uma curva não muito acentuada. Alguns passageiros, percebendo a mudança de direção, acordaram se preparando para a parada. Chegaram a uma lanchonete a beira da estrada aberta 24 horas. Aqueles que ainda não haviam acordado com a mudança de direção, acordaram com as luzes imponentes da lanchonete que puderam ser avistadas quando o ônibus foi estacionado, ou quando o motorista anunciou: “Pararemos durante quinze minutos”.
O ônibus, aos poucos, ia sendo esvaziado. As pessoas saíam para ir ao banheiro, comer algo ou apenas para esticar as pernas. A viagem seria longa. O casal de namorados continuou abraçado nos bancos da frente. Apesar de terem acordado, resolveram ficar dentro do veículo depois de trocarem meia dúzia de palavras. Se reacomodaram e voltaram a se abraçar. Antes da parada terminar já estavam dormindo, ela deitada sobre peito dele, como se necessitasse ser protegida e ele, que apesar de dormir, parecia seguro em sua função de protetor.
No fundo do ônibus, outra pessoa resolveu continuar dormindo. André acordou, percebeu que tinham chegado a uma parada, viu quando as pessoas saíram, mas resolveu permanecer no ônibus. Não quis abrir mão dos quinze minutos de sono que teria enquanto as pessoas aproveitavam a lanchonete. Virou-se para o lado e, olhando o movimento de fora, pela fresta da janela não coberta pela cortina do veículo, adormeceu.
Após os quinze minutos, o motorista verificou se todos os passageiros estavam presentes e partiu. De volta a estrada, novamente ele guiava o ônibus através da chuva, da noite e dos buracos. Logo após a partida, ainda era possível ver algumas pessoas acordadas, algumas ainda saboreando as guloseimas adquiridas na lanchonete, porém, sozinhas em suas poltronas, em menos de uma hora já estavam dormindo. Apenas um senhor, de aproximadamente uns 60 anos, personagem importante para nossa trama, permaneceu acordado.
O ônibus seguia sua viagem tranqüilamente, apesar dos buracos na estrada. Foi num destes buracos, o qual o motorista não conseguiu evitar, que André, e quase metade do ônibus, acordou. Ele acordou assustado, mas logo percebeu que o tranco recebido deveria se tratar das conhecidas imperfeições daquela estrada. Antes de fechar os olhos e voltar a dormir, resolveu mudar de posição e virou-se para dentro do ônibus. O susto do buraco não havia sido suficiente. Ao virar-se, percebeu uma presença ao seu lado, o que lhe gelou os mais recônditos cantos de sua alma.
Havia uma pessoa sentada ao seu lado, não que isso fosse estranho em uma viagem de ônibus, mas com certeza o era quando havia dezenas de lugares vazios. André, logo se preocupou. É impressionante como o sono nos parece supérfluo quando algo nos ameaça, não que André estivesse sendo ameaçado de forma concreta, mas a dúvida, aquela dúvida de não saber ao certo quais são as verdadeiras intenções de um estranho que se aproxima, é que é verdadeiramente ameaçadora, pois, fica no limiar entre uma ação injusta e o arrependimento de não ter agido na primeira oportunidade. “Quais são as intenções desse cara?”, se perguntava André, já não conseguindo mais pregar os olhos.
Esse “cara”, que tanto preocupava André, era o senhor que permanecia acordado, o qual já falamos acima. Sua aparência dava razão para desconfiança de André. Ele vestia um par de sandálias velhas, uma calça jeans desgastadas e uma camiseta xadrez de um marrom e preto já desbotados. O jeito que se vestia era ameaçador pelo simples fato de transparecer que nada tinha a perder, que nada possuía que pudesse ser roubado, nem mesmo um relógio de pulso.
André permanecia angustiado com aquela presença ao seu lado. Seus pensamentos eram incontroláveis: “O que ele quer? Por que não se sentou em outra poltrona já que há muitos lugares vagos? Se se sentasse em outro lugar poderia esticar suas pernas, dormir de maneira mais confortável. Agora, ficamos eu e ele desconfortáveis, dormindo em apenas uma poltrona por causa deste idiota, que raiva. É incompreensível a atitude deste cara, com certeza ele está tramando algo. Será que está querendo me roubar? Sim, definitivamente, ele vai me roubar”. André parecia prever seu próprio destino.
Impaciente bufou. O velho, percebendo que o rapaz ao seu lado havia acordado, se apresentou.
_ “Ola! Não sabia que você estava acordado. Prazer meu nome é Estevão.”
O gesto simpático do senhor, que talvez servisse para acalmar o rapaz, só piorou a situação. “Merda, antes fingisse que estava dormindo. Esse velho devia estar esperando eu acordar para me assaltar, merda.” O senhor ainda permanecia com a mão no ar esperando uma resposta de André.
_ “Daniel, me chamo Daniel”. André deu a mão ao velho e o cumprimentou. Ele havia mentido o seu nome por medo. Já somos convidados a interpretar personagens nos espaços públicos, que mal teria dar um novo nome a essa máscara. Já que, para ele, era tão certo que aquele velho mal vestido se tratava de um assaltante ou algum malfeitor, proteger seu nome verdadeiro era uma precaução compreensível. A falta de passado é uma das vantagens no contato entre estranhos, vantagem que nos permite mudarmos de nome, de profissão e até mesmo de atitudes. Essa possibilidade de mentirmos tudo a nosso respeito é, também, decorrência da falta de futuro destas relações.
Apesar dos braços fortes do senhor sentado ao seu lado, talvez fruto de anos de trabalho duro e sem descanso, o que preocupava André era invisível aos olhos. O lhe causava preocupação era a desconhecida intenção daquele homem, suas estratégias para o crime e, acima de tudo, as armas que poderia esconder. Em um confronto de mão com mão, talvez levasse vantagem, porém, não saberia a ameaça que aquele estranho poderia representar com uma faca ou com um revolver em um canto escuro do fundo do ônibus. Tinha medo.
_ “Você vai descer na rodoviária ou antes?” Perguntou o senhor.
Que pergunta era aquela, pensou André. Uma pergunta um tanto quanto suspeita. Por que ele havia perguntado o local que o rapaz desceria? André logo pensou que era para melhor tramar o assalto. Ele desceria antes, mas devido ao medo que sentia decidiu mentir novamente.
_ “Vou descer só na rodoviária”. Essa afirmação não lhe faria mal, afinal, um local mais movimentado seria menos perigoso.
_ “Eu também”, respondeu o estranho de nome Estevão.
_ “Que bom”. Disse André querendo terminar aquele colóquio.
André, mesmo desconfiando daquele homem, resolveu se virar em direção a janela e fingiu dormir. Talvez, a única coisa mais difícil do que o contato com um estranho que lhe causa medo, é lhe dar as costas. A atitude de André, temos de reconhecer, foi extremamente corajosa. Apesar disso, qual seria a verdadeira intenção de André com esse gesto? Será que o medo da conversa era maior do que o medo de uma faca apontando inesperadamente em suas costas? A turbulência de seus pensamentos nos dá a impressão de que essa atitude seria uma fuga, um sair de cena para reorganizar seus pavores, suas ações e seu personagem.
“Desgraçado. O que é que esse cara quer? Por que não fala logo? Será que vai esperar eu chegar na rodoviária para me assaltar?” Perguntas e mais perguntas surgiam na tempestuosa mente do rapaz. Ele pensou em se levantar e trocar de lugar, já que havia diversas poltronas vazias, porém, isso não seria de bom tom para a “civilidade”, aquela regra que aprendemos e que tem a função de deixar esses encontros entre estranhos tão leves quanto uma pluma: sem futuro, sem passado e sem profundidade.
Meia hora tinha se passado desde que havia mudado de posição, mas ele não conseguia dormir. Os minutos que passou, ali, imóvel, olhando para a escuridão que era desbravada pelo veículo, começaram a pesar sobre seu corpo. “Se eu ao menos tivesse o banco ao meu lado vago, poderia dormir com mais conforto”, pensou ele, enquanto decidia se virava para o outro lado ou não. Tinha a esperança do velho, a estas horas, já estar dormindo.
Virou-se. O senhor ao seu lado continuava acordado. Ele sentia cada vez mais raiva daquele homem chamado Estevão, isso se esse fosse realmente o seu nome verdadeiro. Afinal, se André havia mentido, o que lhe garantiria que o velho estava lhe falando a verdade? Se por um lado, a falta de passado desses encontros nos dão a vantagem de, na hora, inventar o nosso personagem, por outro, se mostra desvantajosa, pois nunca sabemos ao certo com quem estamos contracenando.
A falta de ameaça de uma idéia ameaçadora é um dos grandes problemas para a belicosidade dos homens. É incontável o número de guerras e combates que já foram travados por causa de uma simples suposição. André não queria cometer este erro, entretanto, também não desejava esperar pacientemente o golpe do inimigo, afinal, a mesma idéia ameaçadora que atiça a guerra, também causa paralisia. Foi para fugir deste estado de paralisia que André resolveu falar:
_ “Estevão... é esse seu nome, não é?”
_ “Sim, Estevão.”, respondeu o senhor.
_ “Então, Estevão, eu não me lembro de você quando saímos. Você, pelo que parece não estava no ônibus quando saímos, estava?” perguntou André.
_ “Realmente eu não estava. Eu entrei no ônibus durante a parada”.
André se surpreendeu com a resposta daquele senhor. Sem analisá-la bem e sem pensar direito nas conseqüências de sua próxima pergunta, falou:
_ “E o motorista sabe que você está viajando clandestinamente?”
O velho deu uma risada tão verdadeira que assustou André. Sua risada poderia ter acordado, facilmente, todas as pessoas do veículo, se elas não estivessem dormindo um sono profundo.
_ “Ah, Daniel. Você é muito engraçado. Eu comprei a passagem no guichê da última parada. Para mim, é mais cômodo comprar aqui. Além de ser perto da minha casa, é mais barato, pois, eu não preciso pagar a distância que já foi percorrida”.
_ “Você mora perto daquela parada?” perguntou André ao senhor.
_ “Sim, moro eu, minha filha e minha neta. Estou fazendo esta viagem para visitar um parente que está doente”.
André havia entrado em um terreno perigoso: a profundidade. Essas pequenas gotas de informação fornecidas gratuitamente por Estevão poderiam destruir suas defesas contra aquele estranho. Alguém que morava com a filha e com a neta, além de viajar esse longo percurso para cuidar de um parente doente, não poderia ser uma pessoa ruim, não poderia ser um assaltante. O fato é que André não queria que Estevão entrasse em sua intimidade e, antes que ele fizesse a fatídica pergunta, “e você, onde mora?”, aproveitando a momentânea cumplicidade, resolveu tirar a limpo aquela situação que tanto lhe incomodava.
_ “Estevão! Eu posso lhe perguntar algo?”
_ “Sim, claro. Fique a vontade”.
_ “O número da sua poltrona é realmente essa do meu lado? Porque quando o ônibus está vazio não precisamos seguir essa numeração, sabia?” André perguntou achando que talvez aquela situação fosse apenas uma falta de sorte na venda das passagens e um viajante extremamente preocupado com as normas da companhia rodoviária.
_ “Olha Daniel, para falar a verdade, eles não me deram uma numeração. Me entregaram a passagem em branco e falaram para eu me sentar aonde eu quisesse.
Essa não era a resposta que André queria ouvir, a preocupação continuava, entretanto ele decidiu levar esta história até o fim.
_ “É exatamente isso que eu não entendo. Você tinha a liberdade de escolher qualquer lugar para se sentar e, mesmo assim, você quis se sentar ao meu lado. Por quê?
_ “Bem, liberdade é uma palavra complicada e polissêmica. Eu não acho que o simples fato de não ter impedimentos para escolher o lugar para me sentar, seja um certificado para a minha liberdade. Eu realmente prefiro usá-la ocupando os espaços vazios que eu definir. Afinal, eu escolhi você, porém, você não me escolheu. Que liberdade você teve de escolher a pessoa que se sentou ao seu lado. Nenhuma. Eu preferi compartilhar esse poltrona ao seu lado do que me sentar sozinho e estar sujeito a escolha de alguém”.
O medo, que antes era do marginal, se transfigurou no medo do mala sem alça. André só conseguia pensar: “Puts, que cara chato”.
_ “Tá, tudo bem, respeito sua idéia de liberdade, mas não seria mais confortável para nós dois, se você se sentasse em outro lugar?” Perguntou o rapaz.
_ “Sim, eu não tenho a menor dúvida. Porém, é por causa do conforto que cada uma destas pessoas escolheu a distância. O conforto nos separou. Foi o conforto de cada poltrona que nos fez esquecer os buracos “desconfortáveis” que aparecem durante o caminho. Essas pessoas não mexeriam uma palha para reclamar de tudo o que é exterior a suas poltronas, porém, coitada da empresa rodoviária se deixar uma janela sem cortina, uma acento sujo, ou qualquer outro fator que atrapalhe o bem-estar destas pessoas. Elas só se preocupam em exigir seus direitos como consumidoras e não como cidadãs. Toda defesa dos problemas coletivos é deixada de lado, pois...”.
_ “Beleza, Estevão, eu sou uma dessas pessoas, eu quero conforto. Não vou ficar aqui, escutando esse papo chato de liberdade, direitos, etc. Eu vou me levantar e vou me sentar em outro lugar e não quero saber de você me “escolher” de novo, ok? Vou usar a minha liberdade, ouviu bem, a minha liberdade, para sentar aonde eu quiser e ninguém vai me impedir”, disse André, demonstrando certa raiva.
Estevão, um pouco preocupado com a atitude do rapaz, falou:
_ “Calma, Daniel. Se você quiser eu posso ir para outro lugar”.
_ “Olha, eu gostaria muito, Estevão”.
O velho respirou e disse olhando nos olhos do rapaz:
_ “Então me convença”.
Ao ouvir esta resposta André pareceu desacreditar no que acabava de escutar. Ele se levantou, pegou sua mochila e saiu. Decidiu sentar-se longe daquele “velho maldito”, como ele mesmo proclamou. Sentou-se lá na frente, próximo ao casal que dormia abraçado. Para eles o conforto não parecia tão importante, mas André tinha certeza de que para si era o essencial. Agora se sentia livre e feliz.
O ônibus continuou seu caminho tortuoso pela noite, pela chuva e pelos buracos. A viagem ainda seria longa. André havia, como o resto daquelas pessoas, se espalhado nos dois bancos que ocupava deleitosamente. Estevão continuava incorruptível; reto, grave e sem sono, em um único lugar. Dentro do veículo, os passageiros continuavam em suas poltronas confortáveis, aproveitando a agradável temperatura do ar condicionado e individualizados em seus mp3s, do lado de fora, a chuva, a noite e os buracos, pareciam entidades místicas que fugiam ao controle da daquelas pessoas. Nada podiam fazer. Nada queriam fazer. Só desejavam ser conduzidos.

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

CONTO XX - EPIFANIA


Entrei no quarto apressado. Ela me esperava sem a blusa na sala de minha casa. Passei o dedo pela estante de cds e não achava aquele que queria. Repetia alto o nome do disco, inconscientemente, como se de alguma forma o título daquele álbum ressoasse como um mantra que o trouxesse para mim. O vinho estava aberto, duas taças já haviam sido sorvidos por cada um. Ela me esperava um pouco ébria e sem a blusa na sala de minha casa. A música era essencial, era o tempero que faltava para completar a paisagem que vinha em minha mente enquanto eu dedilhava os cds espalhados pelo quarto. Nada.
Será que o havia emprestado para alguém? Tenho certeza que não. Poucas pessoas conheciam esse artista. Apenas aquela garota que me esperava na sala havia se entusiasmado quando lhe disse que tinha este disco, talvez apenas ela conhecesse esse artista. Os meus dedos dedilhavam os cds na estante. Nada.
Nessas horas, onde há uma garota ébria e sem a blusa na sua sala e você fica procurando o cd que ela pediu para dar “aquele clima”, é que você se martiriza por ter comprado tantos discos inúteis. Consumo supérfluo. Desejava ter apenas um neste momento. Aquele era o único álbum que desejava achar. Nada.
“A pressa é inimiga da perfeição”, já dizia minha mãe. Cheguei ao final dos cds e não achei aquele que gostaria. Tive que repetir a procura, um por um, prestando mais atenção naquele dedilhar. Finalmente o vi. Puxei o cd da estante e abri a embalagem. Nada.
Tive vontade de gritar quando percebi que o cd não estava lá.Rapidamente, no ápice do desespero, comecei a espalhar todos os cds pelo quarto, todos aqueles cds supérfluos que já não escutava havia anos. Na caixinha do Metallica estava João Gilberto, na do João Gilberto, Bob Marley; na do Bob, o Nove Luas do Paralamas do Sucesso, álbum muito bom que estava procurando a tempos. Fiquei feliz por um momento, ao ver que finalmente o tinha achado, porém, o desespero voltou quando lembrei que ainda não tinha encontrado o disco que a garota, que me espera sem a blusa e um pouco ébria na sala, havia me pedido. Nessa procura insana pelas caixinhas dos cds, via todas as fases da minha vida se transfigurando sob meus olhos. Algumas me davam mais vergonhas do que outras, porém, compreendi o tamanho anacronismo que cometia comigo mesmo ao julgar o meu próprio passado pelo gosto do presente. Isso não importava. Desejava apenas achar aquele maldito cd. Nada.
A busca continuava. Paulinho da Viola na embalagem do Racionais Mc’s, Spice Girls na caixinha do Ramones. Aquela desordem me enlouquecia. Me sentia perdido, tinha vontade de gritar. O que a garota que me espera sem a blusa na sala de minha casa pensaria a respeito de minha demora? Não sei, seria melhorar não demorar. De repente abri a caixinha do Cannibal Corpse. Epifania.
Finalmente, achei o cd. Me senti zonzo com a descoberta, não pelo vinho, mas por causa de uma arrebatadora epifania. Por um micro-segundo, enquanto eu maldizia a desordem das caixinha, me questionava por que, de uns anos para cá, havia desenvolvido o péssimo hábito de não guardar os cds nas sua respectivas embalagens. Foi então que percebi que este hábito não era só meu. Quase todo mundo tinha adquirido essa mania. Será que as caixinhas que antes definiam tudo, já não eram mais úteis? Será que os ouvintes já não se importavam tanto com a sacralidade das embalagens e transitavam facilmente entre elas sem se preocupar com rótulos? Será que a desordem dos cds era um espelho da desordem de nossas vidas? Será que estávamos tão perdidos que não nos reconhecíamos mais em nenhuma das caixinha? Afinal, seríamos nós cds sem embalagens? Epifania.
Como alguém que acorda depois do desmaio, fui jogado de volta ao meu corpo. Não havia tempo para se pensar nisso. Uma voz me chamava. A voz era dela que me esperava um pouco ébria e sem a blusa na sala de minha casa. Tinha em mãos o que faltava. Música.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

CONTO XIX - CHARLOTTE


Estava tudo encerrado. Charlotte foi enterrada e as pessoas começavam a se dispersar. O final de tarde daquele sábado, triste sábado para aquelas pessoas, estava nublado e anunciando uma tempestade. Talvez o céu tivesse também suas lágrimas para aquela que se foi.
O que consolava aquela gente vestindo o negro do luto e óculos escuro, cúmplices de olhos marejados, era o fato de todos já esperarem esta morte. Charlotte já havia sido desenganada pelos médicos. Todos sabiam que logo ela os deixaria. O fato de ela ter vivido dois meses a mais do que o esperado, não foi suficiente para criar esperanças vãs para aquela gente.
As pessoas iam embora juntas, porém, solitárias em seus pensamentos. Poucas conversas podiam ser ouvidas. A marcha negra caminhava pelo verde do gramado do cemitério, procurando a saída daquele lugar que lembrava o fim inexorável que espera a todos.
Enquanto a turba continuava sua caminhada fúnebre, três dos convidados para o adeus derradeiro, convidados, pois Charlotte havia feito uma lista, antecipadamente, das pessoas convidadas para seu próprio enterro, permaneciam junto ao túmulo. Os dois homens e a mulher se abraçavam, olhando para a lápide recém fechada.
A mulher chorava copiosamente. Tinha segurado suas lágrimas durante toda cerimônia, porém, agora, sem aquela multidão de rostos desconhecidos chorava sem vergonha, sendo consolada pelos dois homens que a ela estavam abraçados.
O Silêncio reinava. Só era interrompido pelo choro soluçado da mulher. O rapaz de blazer preto a puxou para próximo de si. Encostou o rosto dela em seu peito e a abraçou forte. O outro, de óculos escuros, se contentou em afanar levemente o cabelo da mulher.
Era difícil dar adeus a Charlotte. Era difícil imaginar a vida sem as noites de vinho e poesia em seu apartamento. A mulher chorava desesperadamente e escorregava seu corpo no homem de blazer em direção ao chão. Os dois homens, vendo este desfalecimento desesperado, a seguraram.
“Vamos, é melhor irmos embora. Ficar aqui não trará Charlotte de volta e, além do mais, uma tempestade se aproxima de nós”, disse o homem de blazer, enquanto segurava a mulher. Os três partiram, mas o único que ousou a olhar para trás foi aquele de óculos escuros. Olhou na esperança de rever Charlotte, porém, só encontrou a lápide vazia.
Na caminhada em direção a saída, eles seguiam o exemplo da multidão que já havia feito esse caminho anteriormente permanecendo em silêncio. Os três, passo a passo, caminhando de luto sobre o jardim verde, sem dizer uma palavra, mas com um pensamento em comum: Charlotte.
Ao saírem do cemitério se depararam com a praça, que fica em frente, barulhenta e cheia de gente. Parecia que os três tinham atravessado o portão da vida, voltado à realidade. Os três se entreolharam e foi o homem de óculos escuro quem teve a idéia: “Vamos beber alguma coisa naquele restaurante do outro lado da praça”. Os outros dois, sem dizer nada, apenas balançaram a cabeça concordando.
Recusaram as mesinhas que ficavam no exterior do restaurante, onde jovens bebiam cerveja e os casais namoravam, para acharem um canto escuro em seu interior. Um lugar escuro, a meia luz, no ocaso do sábado, era tudo o que eles precisavam para continuar suas tristezas.
Os três sentaram em silêncio e ali permaneceram. A mulher deixando escorrer algumas lágrimas sobre sua face, mas sem soluçar. O homem de blazer de braços cruzados sobre a mesa. E, o outro, ainda de óculos escuros.
O silêncio só foi quebrado quando o garçom chegou para lhes oferecer o menu. Eles sabiam o que deveriam pedir. Sem pestanejar o homem de óculos escuros, disse: “Nos traga uma garrafa do seu melhor vinho”. Olhando para os outros dois, no lado oposto da mesa, falou: “Tenho certeza que Charlotte gostaria que bebêssemos vinho, sua bebida favorita e, além do mais, é uma forma de lembrarmos-nos de todos os encontros que tivemos em sua casa, regados por vinho e poesia.
O vinho chegou. Os três brindaram “à Charlotte” e degustaram o rubro líquido de Dionísio. O silêncio permanecia soberano entre goles e respirações pesadas.
Após meia hora de silêncio foi a mulher quem decidiu exteriorizar sua angústia: “Sabe o que eu não entendo, por que vocês nunca ficaram juntos? Charlotte lhe amava”, disse para o homem de blazer. “Lembro-me do dia em que estávamos eu e ela em sua casa, tomando vinho e escutando Ella Fitzgerald. Charlotte amava Ella. Era um sábado à noite, íamos sair, porém, ela se sentiu mal por causa da sua doença e decidiu cancelar nosso passeio. Eu estava em casa, pronta para sair quando ela me ligou cancelando. Fiquei triste e preocupada, pensei em ir lá, porém, ela falou que queria dormir, descansar. Já passava da meia-noite, eu estava sem sono, lendo um livro, quando ela me ligou chorando me pedindo para ir a sua casa. Vocês sabem o que eu faria por aquela mulher. Peguei o carro e fui”.
A mulher parou para tomar mais um gole do vinho. O homem de blazer tentou falar algo, porém, a mulher não deixou, levantou a mão indicando que ela ainda não havia terminado. Continuou: “Ao chegar lá a vi chorando, com uma garrafa de vinho aberta e com uma foto sua nas mãos dela. Sentei-me ao seu lado e perguntei o que estava acontecendo. Ela me disse que o amava, sendo que cada vez que olhava para sua foto nas mãos dela, chorava desesperadamente. Eu ainda não a entendia muito bem, quando ela me explicou. Havia cancelado o nosso encontro para sair com você. Fiquei um pouco chateada, mas o estado em que ela se encontrava me deixou preocupada, decidi não esbravejar. Ela me disse que vocês tinham ido à inauguração de um restaurante de um amigo seu e lá, ela havia se declarado para você, declarado todo o amor que sentia. Você a amava, por que recusou seu amor? Por quê? Ela ficou acabada. Chorava copiosamente quando me ligou. Eu realmente não entendo? Eu fiquei com ela a noite toda, ouvindo suas mágoas, bebendo vinho e escutando Ella Fitzgerald. Você a amava, por que recusou seu amor?” A dúvida da mulher virou desespero, ela repetia “por quê?”, “por quê?”, diversas vezes e chorava desconsolada. Os dois homens só observavam.
O homem de blazer estava emocionado, nervoso, angustiado, uma mistura de tudo. Via o desespero daquela mulher e sabia que era amor, sabia o quanto ela amava Charlotte. Ele, pausadamente, disse: “Eu acho que você está enganada”. A mulher se enfureceu e começou a socar-lhe o peito desesperada. O homem a segurou e lhe abraçou forte. Ela chorava desesperada e, se sentindo amparada pelo abraço do amigo, se entregou as lágrimas.
Ele, então, sem desfazer o abraço, continuou: “Você está enganada. Bem... Eu não sei que motivos, Charlotte teria para mentir, mas a história que aconteceu não foi bem essa. Realmente nos encontramos no restaurante de meu amigo, porém, fui eu quem me declarei a ela. Você sabia que eu a amava, se a história que você está contando é verdade, porque eu teria recusado o amor da mulher que mais amei na minha vida. Charlotte sabia disso, porém, nunca tive alguma ação por parte dela, que ultrapassasse a linha da amizade. Nunca fui correspondido neste amor. Quando, em um jantar romântico, eu disse que lhe amava e que queria ficar com ela, mesmo sabendo de sua condição, sua resposta foi que amava outra pessoa. Apesar de amá-la, eu nunca acreditei realmente que Charlotte pudesse amar alguém. Charlotte era uma mulher sensacional, uma mulher que não poderia ser de uma pessoa só. E, quando lhe perguntei a quem amava, foi o seu nome que ela disse”.
A mulher, ao ouvir isso, empurrou o homem para soltar-se daquele abraço. Ela tremia. “Por que você está mentindo? Por quê? Por que você quer me magoar desse jeito?” dizia ela. O homem, reconhecendo o estado em que se encontrava sua amiga, resolveu continuar a história: “Você sabe que eu não teria motivos para mentir, esta é a mais pura verdade. Charlotte me disse que te amava e que, finalmente, havia resolvido assumir este amor que tentou esconder por anos. Ela me disse que, apesar de amar você e saber que este amor era recíproco, não poderia aparecer na sociedade tendo um relacionamento homossexual, isso não seria bom para seus negócios. Porém, com a proximidade do fim de sua vida, havia resolvido viver este amor. Foi isso que aconteceu. Agora, por que ela não te disse a verdade, eu não sei”.
“Ela estava com sua foto na mão, por quê?
“Eu já disse que não sei por que ela não lhe contou a verdade”.
“Ela mentiu para um de nós dois. Por quê?”
“Não sei, mas foi o seu nome o qual ela disse no restaurante”.
“E foi com sua foto nas mãos que ela chorava desesperada”.
O homem de óculos escuro tinha uma outra versão da história. Charlotte havia lhe ligado e, pela descrição dos dois, no mesmo dia, provavelmente, entre o restaurante e a chegada da mulher. Ela havia pedido que fosse a sua casa e que levasse um vinho. Era por volta das dez da noite quando ele chegou à casa de Charlotte. Assim que ele entrou em sua sala, aquela mulher começou a tentar beijá-lo. O homem não sabia o que fazer e logo a empurrou. As lembranças daquele dia eram nítidas em sua cabeça. “O que você está fazendo?” perguntou para Charlotte. “Eu te amo. Eu sei que é tarde para dizer isso, tarde porque eu nunca deveria ter me separado de você e tarde porque estou morrendo, mas é a mais pura verdade. Eu te amo”. O homem ficou atônito, não acreditava no que estava ouvindo. “Charlotte, o que você está dizendo. Achei que tínhamos superado isso há anos. E você sabe que amo minha família, minha mulher e meus filhos. Você sabe. Por que fez isso?” Charlotte pegou o vinho que estava nas mãos daquele homem e disse: “Vamos abrir esse vinho, relaxar e passar a noite juntos. Eu te amo, eu estou morrendo, já é hora de deixar de me enganar e assumir o meu amor. O que tivemos no passado foi tão intenso, tão bom, nunca esqueci aqueles anos”. “Já faz dez anos Charlotte”, disse o homem. “Éramos adolescentes. Muitas coisas mudaram. Agora, eu sou um homem casado, o nosso tempo já passou. Você não é mais do que uma grande amiga”. Charlotte, enlouquecida, voltou a tentar beijá-lo. Ele segurou seus braços, mas ela mesmo assim continuava tentando lhe beijar. Ele a empurrou no sofá e disse: “Charlotte, que merda, o que está havendo com você? Já disse, sou um homem casado, porra! Você está louca? Que merda. Adeus!” e saiu sem olhar para trás.
De volta ao presente e vendo aqueles dois discutirem sobre quem estava com a razão, quem era o verdadeiro amor de Charlotte, ele pensou em toda aquela situação. Ele se questionava o porquê daquela atitude de Charlotte. Havia passado anos e ela nunca tinha dado o menor sinal de que desejasse voltar. Ele agora estava casado e muito feliz. Não sabia se acreditava realmente em Charlotte. Como disse o homem de blazer, ele também desconfiava que Charlotte pudesse amar alguém de verdade. Todo aquele mistério lhe perturbava a alma. Por que havia mentido para ele? Por que havia mentido para os outros pobres coitados que tanto a amavam? O fato era que ele foi o escolhido, o único a ouvir “eu te amo” da própria boca de Charlotte. Ela era uma mulher muito complexa, todos a admiravam, todos a desejavam. Será que ela realmente o amava? Quem sabe? Talvez quisesse apenas descobrir, antes de morrer, como era a sensação de se declarar para alguém e não ser correspondida. E ela sabia que aquele homem amava sua família, amava sua esposa e que sua resposta para todas as tentativas de beijá-lo seria “não”, que todos os “eu te amo” cairiam em ouvidos surdos.
Ela havia lhe plantado uma dúvida que lhe atormentaria pelo resto da vida. Vendo aqueles dois continuarem aquela discussão que não iria levar a nada, ele entendeu e, finalmente, rompeu o silêncio: “Vocês não vêm? Não entendem? Charlotte sempre foi uma mulher misteriosa, sempre esteve cercada de enigmas. Esta mentira, porque se as duas versões são verdadeiras, foi Charlotte quem mentiu, é apenas mais um de seus truques, de seus mistérios que nos atormentarão, enquanto ela descansa em paz. Esta é apenas mais uma maneira dela se manter imortal em nossas vidas. Assim, nunca saberemos quem é seu verdadeiro amor. Nunca saberemos nem mesmo se ela já amou alguém de verdade. Assim, vocês levam a dúvida de serem amados e, junto, o sentimento do ‘se’, pois Charlotte sabia, perfeitamente, assim como nós sabemos que o ‘poderia ter sido’ leva mais da imortalidade do que aquilo foi. Charlotte sempre foi dada a mistérios, este é apenas mais um deles. Nunca podemos desconfiar da engenhosidade daqueles que conhecem a verdade que mais nos assusta: que a morte se aproxima. Nunca podemos desconfiar da engenhosidade daqueles que têm pouco tempo para se tornarem imortais”.