quarta-feira, 22 de julho de 2009

INV(F)ERNO


Era inverno. Minha família, assim como toda a cidade, migrava para terras mais quentes, onde a vida pudesse se tornar suportável. De tempos em tempos o ato se repetia, toda a população atravessava o grande lago congelado buscando terras melhores, levando junto tudo o que achasse importante.
Agasalhados. Via a minha família, meu pai, minha mãe, minha irmã mais velha e dois irmãos mais novos, caminhando a passos lentos, levando mais coisas do que podiam suportar. O frio era intenso. O vento cortava como uma lâmina a única parte do rosto descoberta, entre a touca e o cachecol. A paisagem era monocromática; o branco refletia tanta luz que quase cegava os nossos olhos. O que nos mantinha caminhando era a terra prometida. A cada passo dado estávamos mais próximos do fim do inverno.
De repente aconteceu. O gelo começou a rachar, talvez fosse fino demais para suportar o peso de toda cidade. Todos ouviram o barulho como se o céu, refletido no lago, começasse a rasgar e pararam; sentiram o chão tornar-se instável. Alguma coisa estava acontecendo.
Os passos lentos e ensimesmados tornaram-se uma grande corrida. As pessoas corriam desesperadas. O gelo que cobria o grande lago começou a rachar bem no início, próximo da origem de nossa viagem; já não era possível retornar. Ou chegávamos ao nosso destino ou morreríamos soterrados pela liquidez.
A primeira coisa a afundar foi a confiança – já não tínhamos certeza se chegaríamos do outro lado – e com ela todos os projetos pessoais e coletivos. Eu, particularmente, tinha o sonho de criar uma escola de música na nova cidade, mas na ensandecida corrida deixei para trás o meu fagote. Era ele ou eu; e, para manter a velocidade, tive que deixá-lo para ser engolido pelo lago. O sonho de construir uma sociedade mais justa e perfeita também ruía a cada passo. Os mais rápidos deixavam para trás os mais lentos, tentando se salvar da rachadura que perseguia a todos. Os laços humanos se tornavam tão fluidos quanto o lago que se rompia. As famílias se separavam e cada membro afundava individualmente.
Alguns tentaram manter a confiança, mas afundaram. Os cientistas tentaram racionalizar as formas de conter o lago, contornar o abismo líquido que surgia, ou criar uma melhor organização para a corrida. Afundaram. Os membros das diversas igrejas tentavam manter a confiança dos fiéis que imploravam a salvação. Afundaram. Os governantes tentaram criar novas leis para conter o pânico que surgia, trazer maior segurança para os corredores e auxiliar aqueles que ficavam para trás. Afundaram. Quem sobreviveu era quem corria: sem família, sem projetos, sem Deus e sem Estado.
Eu continuava correndo. Confesso que carreguei no peito durante algum tempo certa dor. Não era fácil perder todas essas coisas, porém, era a única maneira de continuar vivo e acabei me acostumando. Todo o sofrimento causado pela perda de amigos, amores, parentes, crenças e planos, foi substituído por uma intensa sensação de liberdade. Corria livre intensamente, sem nada que me prendesse, libertado de todas as amarras e do comprometimento com os outros. A rachadura ficava cada vez mais distante e a minha corrida era cada vez mais intensa. Foi então que pensei:
“Sou livre para tudo, menos para parar de correr”. Neste momento fui engolido pelo lago.

quarta-feira, 8 de julho de 2009

TIO?!


Era cedo, algo entre cinco e meia e seis da manhã. Saí de casa apressado; sem café, sem banho e sem paciência. Era segunda-feira, o primeiro dia de uma via crucis eterna que sempre me levava a ressuscitar no domingo; não uma ressurreição de glória, mas uma ressurreição que me levava à escravidão, apenas um recuperar de forças para mais uma semana de sofrimentos.
Saí de casa e olhei para o céu pintado com um azul de noite quando foge; essa era exatamente a cor do escritório que seria o meu cárcere durante o dia inteiro. Era o céu que logo cedo me lembrava o meu destino.
Pacientemente esperei o sinal fechar. Todo dia, no mesmo semáforo, as mesmas pessoas esperavam para atravessar a rua. Todo dia, nenhum sorriso, nenhum “oi!”, nada; apenas a ansiedade de seguir. Às vezes – não sabia se era minha imaginação – eu achava que via os mesmo carros, enquanto atravessava a rua, parados no semáforo, esperando a abertura da válvula para o contínuo fluxo de automóveis.
Quando finalmente o semáforo ficou vermelho para os carros e verde para os pedestres, contente, pisei na rua para atravessar; foi então que ouvi:
- Psiu!
Ignorei e continuei a cruzar a rua.
- Psiu!
Novamente escutei o chamado e resolvi olhar para trás para ver se era a mim, realmente, a quem chamavam. Ao virar, me deparei com um menino aos trapos, sujo e descalço.
Fiz com os olhos uma expressão como quem dissesse: “o que foi?” ou “o que você quer?”, expressão que ele prontamente entendeu me respondendo com um movimento de lábios sem sonoridade alguma. E, isso foi o que mais me assustou, aquele não-som era terrível, era uma espécie de réquiem cantado em minha homenagem. Não me atrevi a ignorar tão poderosa música e, mesmo atrasado para o trabalho, retornei para tentar compreender as palavras do garoto.
- Desculpe-me, não consegui escutar o que você disse.
- Tenho fome. Por favor, tio, compra alguma coisa para “mim” comer.
Fiquei parado ali olhando aquele trapo humano e ele parado me olhando esperando uma resposta, uma comoção, qualquer coisa que tirasse o aperto, a dor, o som de seu estômago que de faminto comia a si próprio, matando-se para sobreviver. Por alguns segundos fiquei sem reação, algo me incomodava naquele garoto, algo me fez hesitar alguns momentos antes de tirar alguns trocados da carteira e lhe dar. O que seria? Será que essa cidade havia congelado minha alma? Será que havia perdido a humanidade? Não sabia, só sabia que aquele garoto não merecia meu dinheiro. Não merecia um trocado da porra do dinheiro suado que eu ganhei. Dinheiro que eu ganhei levando uma merda de vida, acordando cedo, dormindo tarde, fazendo hora extra... Esse fedelho não merece um mísero trocado meu. Fome? Eu não tenho fome, trabalho para não ter fome, estou sempre saciado, cheio, empanturrado e sem fome. Não sei por que como, há muito tempo perdi a vontade de comer.
- Tio?!
O moleque me chamou e me trouxe de volta à realidade.
- Desculpe-me – disse. Abri a minha pasta e comecei a fuçar como se procurasse algo; dinheiro, carteira, etc., era puro teatro. Na verdade, ainda não havia decido se aquele garoto mereceria o meu dinheiro. Olhem aqueles olhos. Olhos de quem pode levar o mundo sob suas costas. Olhem este corpo esquelético. Corpo de quem pode sentir todo frio e fome do mundo. Olhem para mim; o que sei sobre isso? Nada. Quem precisava de ajuda?
Fingi que não havia achado o que procurava na pasta e comecei a mexer nos bolsos do meu terno. Eu poderia ter dado alguma coisa para ele; seria fácil abrir a carteira e lhe dar um, dois, cinco ou até dez reais, não me faria falta, mas não seria justo. Dar-lhe qualquer quantia de dinheiro seria diminuir-lhe, seria rebaixá-lo à necessidade. Eu que era um pobre de espírito que lhe daria a porra do dinheiro para me enaltecer. Provavelmente, esperaria o sinal fechar novamente para fazê-lo na frente de todas aquelas pessoas paradas na calçada. Talvez não se importassem, talvez soubessem como eu a linha tênue que separa o egoísmo do altruísmo. Não poderia ajudá-lo, era eu quem gostaria de lhe pedir ajuda, no entanto, disse:
- Desculpe-me, estou sem dinheiro hoje – e saí andando.