sábado, 20 de setembro de 2008

Conto XI - Caim e Abel


Um silêncio escuro. O homem estava sentado em seu sofá em plena escuridão, não quis acender a luz da sala e muito menos ligar a televisão ou o aparelho de som, era apenas ele sentado em um silêncio escuro. Não quis descansar suas costas no encosto do sofá, não quis parecer a si mesmo muito relaxado. Também não quis ficar de pé, nem mesmo sentar-se em uma cadeira dura e gelada da cozinha. Se tinha de esperar que fosse com conforto. Por mais incrível que pudesse parecer, nada passava por sua mente. Algumas vezes lhe dava uma vontade quase incoercível de sorrir, mas ele, no final, conseguia dominar essas forças doentias, e ele sabia que eram doentias, e segurava o sorriso. Os minutos não passavam, ele não tinha um relógio por perto, mas sabia que não passavam. Eles estavam demorando, talvez nunca viessem, talvez devesse se entregar. Conforme a noite ia ocupando seu espaço a sala ficava mais escura e ele, cada vez mais, era consumido pelas trevas. O silêncio foi interrompido, era a campainha. Ele se assustou de início com aquele alarme, paradoxalmente, inesperado e tão aguardado. Aquele som ecoava dentro de sua sala e preenchia o vazio negro do cômodo. Ele se levantou devagar, respirou fundo e foi até a entrada. Puxou a porta arrombada que ele havia recolado no lugar e tentou com cuidado abrir aquele objeto que o separava do lado de fora, que o separava dos tão aguardados visitantes e disse seguro: “Boa noite, estava esperando vocês”.
Ele abriu a porta e deixou um pouco da escuridão presente no cômodo sair. “Só um instante. Vou apenas pegar minha carteira, não demoro”. Os quatro homens que esperavam do lado de fora se olharam desconfiados. Com um olhar, um deles, que parecia ser o chefe, indicou ao mais novo para acompanhar aquele estranho. O rapaz cumpriu a ordem, porém, foi inútil. O homem só havia ido pegar aquilo que prometera na cômoda da sala, nem trinta segundos se passaram, quando aquele ia começar a seguí-lo, este já estava voltando. “Sem algemas, por favor. Não vou reagir”, pediu. Os quatro homens se olharam novamente e concordaram com o pedido daquele que iria se juntar ao grupo. O homem recolocou a porta de sua casa no lugar, do melhor jeito que foi possível, e vez sinal com a cabeça para anunciar que estava pronto. Saíram, os quatro homens formando um quadrado e ele no meio. Enquanto desciam as escadas do prédio mal cuidado em que morava, aquele homem começou a pensar em sua própria história e como tinha chegado naquela situação.
O começo dessa tragédia é tão velho quanto o próprio mundo, desses contos que parecem ter sido propagados pelos quatro cantos desde o começo dos tempos. É necessário voltar um pouco atrás, se for preciso até eras remotas, para entender o fio que teceu esse acontecimento e que, de alguma forma, por destino ou liberdade, manchou de sangue os caminhos por onde a cidade se movimenta.
Tudo começa com um nascimento, pois, não há melhor ocasião, neste caso, para entender os tormentos que se seguirão. A criança nascera, chorava como se já soubesse seu destino. Os pais lhe deram o nome de Caim, nome perigoso e que parecia querer desafiar a história ou até mesmo Deus, como se lhe tentasse dizer: “Olha aqui, meu filho nasceu e é livre para fazer o que quiser e escolher o seu caminho, não cairá sob seus desígnios”. A mãe, apesar de não gostar muito do nome, resolveu aceitar o sugerido pelo pai.
Alguns anos depois nasceria o segundo filho do casal. A gravidez foi extremamente complicada e a criança e a mãe corriam risco de morte. O pai desesperado fez uma promessa daquelas que olhamos para cima, mas não sabemos ao certo a quem pedir, cujo desespero nos força, para dar sentido a nossa própria existência, a acreditar em algo maior do que nós mesmos, mesmo que temporariamente e como uma forma de barganha. Assim, o homem se ajoelhou na capela do hospital e sem saber para onde direcionar sua súplica, olhou para imagem do cristo crucificado e prometeu que, se tudo desse certo, se a mãe e a criança saíssem com vida, o menino que estava por vir, chamar-se-ia Abel.
Tudo correu bem. A criança nasceu e recebeu o nome prometido. Muitos advertiram os pais sobre o perigo que era a escolha destes nomes, advertência a qual respondiam sempre com tom gozador: “Fique tranquilo(a), não nos chamamos Adão e nem Eva”. Os dois não eram dados a essas superstições bobas, porém, a promessa feita era muito séria e deveria ser cumprida.
As crianças cresceram bem, mas, talvez fosse mais certo dizer que cresceram com saúde. Os dois filhos sempre apresentaram um comportamento bem estranho. Caim vivia isolado, não gostava de falar com ninguém, se incomodava com a presença dos outros. Abel era o contrário, falador, sorridente, porém, enérgico e mimado, com uma certa tendência à violência. Caim, apesar de ser mais velho, não colocava respeito, seu jeito introvertido sempre fazia com que o mais novo levasse vantagem sobre ele. Eram um problema para os pais.
Caim aos quatorze saiu da escola, mas nem por isso era um rapaz ignorante, sempre foi dado aos livros, esta era, de certa forma, uma maneira de fugir do mundo e do 'outro' que lhe ameaça. Aos dezessete, com a ajuda de seus pais, resolveu morar sozinho. Era um apartamento num lugar bem tosco, nos arredores da praça da sé. Era um lugar barra pesada, mas onde pelo menos poderia ficar sozinho, longe das pessoas, longe de seus pais, longe de seu irmão. Abel, na mesma idade que Caim, também largou a escola e, para piorar, se envolveu com drogas. Chegou até a passar alguns meses em uma clínica para sua recuperação. Aos dezoito já era pai, tinha duas filhas, cada uma com uma mulher diferente, ou seria melhor dizer menina diferente, já que as duas eram mais jovens do que ele.
Geralmente os pais são mais afetuosos com os filhos menos problemáticos, mas como alguns bradam que amor de mãe, amor de pai, é tudo igual independente do filho, talvez fosse melhor dizer que sentiam mais orgulho do filho menos problemático. Nesta família, família tipicamente burguesa, porém, essa regra não se aplicava, afinal, era escolher entre o 'mauricinho' briguento ou o estranho trancado em sua 'torre de marfim'. Esses problemas eram resolvidos com dinheiro, talvez ele por si só pudesse educar os dois adolescentes: cartão de crédito, carro, roupas de marca, pensão para as meninas-mães, para Abel; livros, aluguel do apartamento, compras do mês, para Caim. De um lado, o dinheiro apoiava para tentar invocar uma mudança no comportamento, no outro, para afastar para longe o problema. E assim cresceram os dois irmãos, ambos sustentados pelos pais.
Caim já tinha 30 anos quando em um dia comum a campainha de seu apartamento tocou inesperadamente. Já havia semanas que não via um único ser-humano quando o silêncio do lugar foi interrompido. Ele odiava sair de casa. Ficava trancafiado em seu reduto, lendo, escrevendo ou escutando música. Seus pais, uma vez por mês, lhe traziam comida, assim, nem para se alimentar ele precisava sair. Tentava ser uma ilha, ou pelo menos criar uma para si. Apenas preso naquele minúsculo apartamento, com suas paredes descascadas e com seu cheiro estranho, é que se sentia livre, e era livre justamente por ter escolhido isso para sua vida. O mundo exterior, para ele, era coercivo, inibia suas ações e inibia a idéia de mundo que tinha para si, detestava todas as criações e regulamentos dos quais ele nunca participou e tinha, quando estava lá fora, que seguir. “Não há liberdade na sociedade”, sempre repetia para os seus pais quando estes vinham lhe visitar. Eles não conseguiam entender como alguém que não saía de casa podia falar em liberdade. Caim fechou o livro que lia e foi atender a porta. Olhou pelo o olho mágico e viu Abel.
“O que você quer?” falou do lado de dentro. “Abre essa merda, seu merda” retrucou o irmão do lado de fora. “O que você quer? Aconteceu...”. “Abre essa merda, senão eu vou arrombar”. Abel começou a socar e chutar a porta, Caim de costas jogando seu peso contra ela tentava evitar as tentativas do irmão. “O que você quer? Porra. Me deixe em paz”. A única resposta que ouviu foi as batidas na porta. Caim começou a ficar com medo da atitude do irmão e o que era preocupação se transformou em pavor, cada vez mais apoiava seu peso na porta, sabia que não podia deixá-lo entrar, via no outro o próprio inferno, mas não teve forças suficientes para suportar os trancos do brutamontes de academia do lado de fora da porta. Abel chutou, chutou pela última vez levando juntos ao chão, Caim e aquele pedaço de madeira que ele tentava defender.
A porta caiu para um lado, Caim para o outro. Ele levantou meio aréu. Viu seu irmão furioso vindo pra cima dele: um soco, uma dor, o sangue cuspido pela boca, o chão, o chão, os olhos pesados, uma dor, o chão. Quase desmaiado, Caim sentia toda dor de uma direita bem dada e certeira no meia de sua boca, que o fez cair de bruços no chão e entrar em um estado de semi-vigília. Seus olhos pesados, entre o aberto e o fechado, viam Abel andar pela casa apressado. Caim tentava se manter acordado. Abel revirava toda a casa, jogava as roupas para fora das gavetas, abria os livros e os balançavam, mas não achava o que queria. Caim lutava contra seus olhos pesados. Desmaiou.
Água. Acordou com um golpe de água na cara e com algumas bofetadas, sabe-se lá quanto tempo depois. “Anda, acorda seu bosta”. Era Abel que, não achando o que veio procurar, tentava lhe acordar para obter o que tanto buscava. “Anda, cadê o dinheiro? Cadê o seu dinheiro?” Caim começou a rir. Apesar de sua boca estar inchada, ria, ria mesmo com a dor. “Do que é que você está rindo?” gritou Abel enquanto levantava o irmão bela gola da camisa. Caim ria. “Do que é que você está rindo, porra?” Caim foi ao chão mais uma vez, mais uma vez um soco, desta vez no olho direito, mesmo assim continuava a rir. Foi entre risos que falou: “Você é mesmo um drogado de merda. O que foi? A mamãezinha não quis mais te dar dinheiro?”, ria.
Abel ficou furioso e aproveitou o irmão deitado no chão, rolando de rir para chutá-lo na barriga. “Sou um drogado de merda mesmo, mas e você, quem é? Um viado que não sai de casa, vive preso nesse pulgueiro. A vida não é isso não, meu irmão, é muito mais do que isso. Você tem que curtir o mundo lá fora, tem que aproveitar tudo que o dinheiro de nossos pais pode nos dar, tem que curtir a vida, tem que curtir a liberdade. Saia dessa prisão que você mesmo construiu, vamos sair juntos, ir num puteiro...”. Abel parou por um instante e agora era ele quem começava a rir. “Puteiro? Você é um virgem de merda. Já esteve com alguma mulher, alguma vez na vida? Claro que não. Já comeu uma boceta? Claro que não, seu virgem de merda, seu viado de merda” Abel ria, ria. “Saia desse apartamento, seja livre como eu”.
“Livre?” Caim falou sério enquanto levantava se apoiando no sofá. “Você, um nóia, quer me falar de liberdade? Já parou para se perguntar por que você está aqui? Você acha que é livre, mas o simples ato de vir aqui me procurar, procurar o meu dinheiro para se drogar ainda mais, já mostra sua sujeição. Você é dominado pela droga, eu não. Você é dominado pelo dinheiro e tudo o que ele pode comprar, eu não. Nossa mãe me dá dinheiro apenas para o básico: para o aluguel, para comprar comida e para comprar livros; gostaria também de não precisar disso, ao contrário de você. Aqui, não há o dinheiro que você veio tanto procurar, ele não é necessário na minha 'ilha particular', ou na minha prisão, como você mesmo disse. Esse apartamento não me tira a liberdade, eu escolhi isso pra mim. Todas as grades que eu escolho, escolho porque sou livre, essa 'prisão' não me prende, pelo contrário, me traz a liberdade, pois aqui sou livre, sou o mais livre que consigo ser. Aqui crio o mundo que concebo, aqui como com as mãos, durmo no chão, ando pelado quando me dá vontade. Liberdade é não precisar de nada. Quem é você para me falar de liberdade? A roupa que você veste, suas atitudes, seus pensamentos, tudo isso foi escolhido para você. Liberdade não é escolher entre o que te oferecem, é escolher o amarelo, quando te oferecem o azul e o vermelho, isso é liberdade. E, respondendo a sua primeira pergunta: 'Quem é você?', bem... quem sou eu? Se você quer mesmo saber, sou alguém que escolheu a liberdade ao invés da felicidade”.
Abel estava agora batendo palmas. “Estou emocionado, acho que vou até chorar. Pobre garoto infeliz”, falou com deboche. Ele respirou fundo, mudou a feição e falou sério: “Caim, estou perdendo a paciência, me dá a porra do dinheiro.” O irmão mais velho riu. “Já falei que ele não é necessário aqui nesse apartamento. Se você quiser deve ter alguns trocados na minha carteira, trocados que devem estar lá a mais de um mês, pode pegá-los...” pensou em algo engraçado e riu, “pode pegá-los, você é livre para isso, pegue e seja feliz”, ria. Caim se divertia com aquilo, mas sabia da situação em que o irmão se encontrava, era deprimente. No caso a droga aqui era cocaína, mas poderia ser qualquer outra: moda, religião, sexo, televisão, livros, chocolate; qualquer coisa que sobrepujasse aquilo que somos, a nossa liberdade de escolha e nos oferecesse uma falsa idéia de felicidade. Caim sentia pena.
Abel correu em busca da carteira do irmão, não sabia como tinha ignorado aquele objeto, ali, pousado em cima da cômoda da sala, mas se decepcionou com a quantia de dinheiro que havia lá dentro. “Seis reais, seis reais. Eu não compro nada com seis reais” Caim ria.“O cartão, o cartão do banco”, o irmão mais novo achou algo que novamente o trouxe esperanças. “Vamos ao banco, preciso de dinheiro, você vai sacar uma grana para mim. Vamos”. “Eu não sairei daqui”, falou Caim. “Você vai, estou mandando. Vai ir ao banco tirar essa merda de dinheiro para mim, por bem ou por mal”. “Já falei que não vou, não saio desse apartamento”. Abel furioso pegou o irmão pela mão e começou a arrastá-lo. Caim caiu no chão e continuou a ser arrastado. O irmão mais novo já estava quase atravessando a porta quando foi derrubado por uma rasteira, era provavelmente o primeiro ato de violência cometido pelo mais velho. Os dois rolavam no chão trocando socos. Abel conseguiu se levantar e voltou a puxá-lo pelo braço. Era incrível perceber a resistência de Caim, um tipo bem magro, contra aquele brutamontes de academia, seria impossível dizer de onde tirava forças para lutar contra o irmão e contra o mundo que se apresentava nos limites daquela porta arrombada. Sair daquele apartamento a força, era sair para a prisão. Lá fora seria escravo, agrilhoado e sem liberdade, isso, ele nunca permitiria. Lutava. Lutavam enquanto a noite caía e a sala escurecia.
“Você vai. Quer queira, quer não. Nunca vou deixar um nada, um merda como você me impedir de fazer o que quero”, disse Abel que continuava puxando o irmão. “Eu sou livre. Nunca vou deixar alguém me dizer o que fazer, eu sou livre”. Os dois irmãos trocavam socos e exerciam suas liberdades, livres e belicosos. Não havia ninguém para dizer-lhes que aquilo era errado, ninguém para separar aquela briga. Os dois irmãos estavam em estado de guerra.
De repente, um grito: “Eu sou livre!”; era Caim que gritava e corria contra o irmão. O mais velho havia se trombado com Abel e corria, empurrando todo peso do outro para trás. Ele sabia onde aquela corrida iria dar, mesmo assim não parou. Abel foi jogado contra a janela. A janela do 5ª andar estilhaçou-se e o corpo caiu no meio da avenida que passava em frente ao prédio. O trânsito imediatamente parou. Caim foi até a janela e olhou para irmão morto jogado ao chão.
Fechou os olhos, virou-se e foi colocar a porta no lugar. Foi ao banheiro, limpou o sangue que saia de sua boca e lavou o rosto. Voltou para a sala e sentou-se. Sentou-se em um silêncio escuro. Não quis descansar suas costas no encosto do sofá, não quis parecer a si mesmo muito relaxado. Também não quis ficar de pé, nem mesmo sentar-se em uma cadeira dura e gelada da cozinha. Se tinha de esperar que fosse com conforto. Por mais incrível que pudesse parecer, nada passava por sua mente. Algumas vezes lhe dava uma vontade quase incoercível de sorrir, mas ele, no final, conseguia dominar essas forças doentias, e ele sabia que eram doentias, e segurava o sorriso. Os minutos não passavam, ele não tinha um relógio por perto, mas sabia que não passavam. Eles estavam demorando, talvez nunca viessem, talvez devesse se entregar. Conforme a noite ia ocupando seu espaço a sala ficava mais escura e ele, cada vez mais, era consumido pelas trevas. O silêncio foi interrompido, era a campainha.
Independentemente de todos que venham dizer que o destino de Caim era matar Abel, como aqueles que, com medo que uma tragédia assim pudesse acontecer, já haviam tentado avisar os pais dos dois irmãos sobre os maus augúrios que acompanhavam esses nomes, eu sempre afirmarei que a luta que se deu e a morte ocorrida não foi caso de predestinação, mas sim, uma guerra de liberdades pela própria liberdade.

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Conto X - Ciranda Moderna


Era Minas. Era interior de Minas. Era praça de árvores antigas, de folhas que balançavam ao vento maroto e sem pressa. Era praça de espíritos jovens, brincando de roda em volta da estátua do padroeiro da cidade. Era sol das quatro da tarde que querendo competir com meio-dia, alumiava todo o tempo, tão forte que era necessário apertar os olhos, deixando a luz entrar apenas em pequenas gotas, como se fosse um colírio luminoso que nos fizesse perceber as cenas e as personagens ali presentes. Era um jovem sentado de pernas cruzadas e pensativo sobre um banco de pedra, bem no centro daquela praça. Um jovem que já tinha vivido um quarto de século, mas que ali era tão novo quanto às crianças a brincar de roda ou tão velho quanto às senhoras a fofocar nas janelas.
Ali, o tempo corria diferente, era o tempo da brincadeira, era o tempo do assunto para contar, a noite dizia a hora de dormir e o sol a de acordar. Muito diferente dos horários marcados da cidade grande, moradia daquele jovem, onde cinco minutos de atraso faziam ruir toda uma estrutura caótica e que não fazia o menor sentido para aquela gente do interior. Nunca entenderiam as buzinas e o mau humor, nem as pessoas apressadas, olhando em seus relógios de pulso intermitentemente, muito menos a pressa irracional do trânsito, com sua velocidade alta e as ultrapassagens perigosas, que só serviam para chegar primeiro ao mesmo congestionamento onde todos, inclusive aqueles carros que foram ultrapassados com tanta pressa, ficariam presos. Aquela gente humilde, não conhecia nada disso, e tão pouco conseguiria entender toda aquela loucura, só conhecia o horário marcado das missas, o trânsito quase inexistente das carroças puxadas pelos cavalos, as frutas colhidas no pé e o bom dia a qualquer pessoa.
O ar era diferente, não tinha o peso dos escapamentos dos carros, nem das chaminés das fábricas, cheirava a flores, a frutas, a terra, a pureza. Era o ar adâmico dos primeiros dias fora do paraíso. O jovem, de olhos fechados como se estivesse meditando, sentia a leveza das coisas daquele local onde o tempo parecia correr não em minutos, mas em ações, e permitia a si mesmo viajar por aquelas sensações que pareciam submersas em um grande oceano quase atemporal: o barulho do casco dos cavalos batendo no chão de pedra, o vento balançando o seu cabelo, a voz suave das crianças a cantar cirandas. Tentava esquecer a cidade grande e toda sua pressa exagerada. O ar não tinha, principalmente, o peso das responsabilidades e dos problemas de onde vinha. Na verdade aquela brisa que balançava o seu cabelo parecia levar para longe todas as preocupações e tristezas que o trouxeram até ali, àquela praça.
Já havia passado mais de meia-hora que estava ali parado na mesma posição, mas esse correr supérfluo do tempo não importava naquele momento, muito menos naquele local. Resolveu, finalmente, abrir os olhos quando escutou uma cantiga conhecida, dessas que até as crianças da cidade, com seus jogos eletrônicos e que vivem presas dentro das grades de um condomínio, conhecem: Ciranda, Cirandinha. Respirou fundo aquele ar adâmico e lembrou-se de sua infância e de toda pureza imanente a ela. Lembrou-se dos encontros de família, das brincadeiras e da banana amassada com aveia de sua bisavó, das histórias sobre a guerra e das mágicas de seu avô, do bolo de chocolate dos seus aniversários. Sentiu saudades de uma época sem preocupações e cheia de inocência. Ao lembrar-se disso tudo, chorou. Chorou copiosamente.
Logo que começou a chorar, um senhor, cuja experiência estava riscada nas rugas de sua face e na volumosa barba branca que ostentava, se aproximou e lhe perguntou se estava bem. Aquele jovem sentiu raiva daquela situação, que para ele era vergonhosa. Ele odiava a prestatividade daquela gente do interior. Tinha certeza que se estivesse na cidade isso nunca aconteceria. Ele, muito provavelmente, passaria invisível através de toda aquela gente apressada, individualista e preocupada apenas com os ponteiros do seu relógio. Mesmo que alguém percebesse seu choro, nunca pararia para perguntar, nunca. Esse ato caridoso e humano poderia levar mais de cinco minutos, tempo que se desperdiçado faria ruir a estrutura caótica em que se encontrava aquela sociedade, era melhor não parar, era melhor fingir que não via. Cada pessoa já tinha problemas demais para resolver, a conta atrasada, o chefe estressado, o casamento que não ia bem. Era melhor ignorar, não querer enxergar e, principalmente, não perguntar o que estava acontecendo, em hipótese alguma. Porém, aquele senhor humilde, que não se preocupava com o tempo e ainda conservava a educação e o desejo de ajudar o próximo, percebeu o choro do jovem e se aproximou: “Por que chora meu rapaz?”, perguntou o velho. Ele, secando as lágrimas, pois não estava acostumado a mostrar sua fragilidade devido a força que precisava ter na cidade grande para enfrentar os problemas e lutar com as outras pessoas, quase que literalmente, por melhores empregos, melhores salários, melhores vagas no estacionamento, respondeu que era bobagem, e que só havia se emocionado com as crianças que brincavam na praça, tinha lembrado de sua infância e das despreocupações daquela época. “Que bom. Chorar faz bem. Mas se você chora por uma época sem responsabilidades, o que te preocupa hoje?” continuando, o senhor, aquele assunto. “Não sei, a vida é estranha. Em menos de um mês terminei...” O jovem, meio reticente de se abrir assim com um estranho, hesitou por alguns segundos, deixando a frase suspensa no ar, mas resolveu se entregar àquela conversa e à ajuda do velho que parecia ser sincera. “... Terminei meu noivado e perdi meu emprego, tudo o que era garantido e certo para mim ruiu. Ao invés da promoção que tanto esperava na empresa, ganhei uma demissão. Agora, estou eu cheio de dúvidas, dívidas e sem aquela que tanto amava. Sei lá, a vida é realmente estranha, é uma eterna mudança, apenas instabilidade. E, para falar a verdade, não sei muito bem como reagir a isso tudo.”.
“Você sabe, apenas esqueceu como fazê-lo”, respondeu o velho. “Como assim?”, indagou o jovem. “Com certeza você já dançou ‘Ciranda, Cirandinha’?” “Sim, dancei”. “Então, sabe como deve enfrentar as mudanças da vida... Preste atenção no que as crianças estão cantando”. “Elas cantam que todos vamos ‘cirandar’, não apenas eu, não apenas você, não apenas as ‘pessoinhas’ que estão a girar na roda, mas sim todos, não há como escapar disso. Essa ciranda representa a vida, que não é mais do que meia-volta e volta e meia, ou seja, é uma roda de altos e baixos, assim como é a nossa própria existência. Essa roda não para nunca, está sempre em movimento”. “O anel, que representa todas as coisas de valor que possuímos nessa vida, era de vidro e se quebrou, assim como o emprego perdido e tudo de material que ele te proporcionava. O amor era pouco e se acabou, assim como o seu noivado”. “Não sei por que você acha que a vida é estranha. Desde criança já te disseram o que você precisava saber sobre ela, apenas não tinha percebido isto.”
O jovem ficou sem fala, nunca tinha percebido a profundidade dessa cantiga folclórica, dessa brincadeira de criança, dessa sabedoria anônima que parecia ter sido criada junto com o homem na terra. “Como era possível algo tão simples sintetizar todo um pensamento sobre a vida? Como era possível que essa simplicidade pudesse passar despercebida aos nossos olhos?” O velho observava o momento solitário e reflexivo do mais moço, mesmo sem dizer nada, ele sabia o que estava passando na mente daquele jovem. Soube respeitar esse tempo, não tinha pressa, cinco minutos, dez minutos, uma hora, não fariam a menor diferença naquela estrutura.
Depois de um tempo, foi a juventude ávida pelo ensinamento quem quebrou o silêncio. “Genial, nunca havia pensado nisso...” Mais um momento de silêncio que o velho novamente soube respeitar, ele via que o jovem tentava organizar as frases, as palavras, as silabas para novamente tentar o diálogo. “Impressionante como uma cantiga da sabedoria popular pode nos ensinar tanto. Na cidade temos a mania de ignorar e até possuir certo preconceito contra tudo o que seja ‘folclórico’, não sei, é como se fosse um choque entre tradição e modernidade, é como se fosse necessário negar a primeira para se adaptar a última. Não sei. É incrível como deixamos passar essas pérolas, que nos são dadas desde cedo, mas que pouco aproveitamos. Não consigo entender como a profundidade dessa letra nos passa batido?” “Hoje, meu jovem, eu vivo nesta pequena e pacata cidade do interior de Minas Gerais, porém, durante toda a minha vida morei na conturbada vida metropolitana, e posso te afirmar com absoluta certeza, há muitas coisas que só fui entender aqui, longe dos livros e de toda a tecnologia, apenas observando as pessoas simples, as brincadeiras, o tempo correndo por si próprio. Toda a planificação da vida e a coisificação das pessoas na cidade grande faz com que olhemos o mundo com um ar indiferente, com certo deboche, e essa atitude ‘blasé’ faz com que ignoremos algumas pérolas, algumas verdades escondidas nas ‘entrelinhas’ e que nos são dadas gratuitamente desde crianças. Não percebemos isso pois estamos fechados em nossos ‘mundinhos’ particulares”.
“É impressionante,” falou o jovem perplexo. “Sim, porém, há ainda muito que se aprender com essa cantiga”, disse o velho querendo continuar a lição. “Você reclamou que não sabia como enfrentar as mudanças da vida, e eu não disse, gratuitamente, que você apenas havia esquecido como enfrentá-las, muito mais do que só mostrar como a vida é: uma roda com altos e baixos; observar as crianças girando e cantando nos ensina como devemos agir nesse mundo instável, cheio de meias voltas e voltas e meia. Para aquelas ‘pessoinhas’, a roda, que já vimos representa a vida, não passa de uma diversão. Elas estão conscientes das ‘regras’ da brincadeira, sabem que vão girar e girar, e o mesmo se dá para os adultos. Quando sabemos o que iremos enfrentar: mudanças, dificuldades, alegrias, perdas, ganhos; todas as coisas são vistas de forma diferente, conhecemos as efemeridades que nos aguardam e por mais que a tristeza ou a felicidade nos acompanhe, sabemos que é por um tempo finito. A roda vai girar e se você está por baixo, vai para cima, e se está por cima, vai para baixo, esta é a vida. O máximo que podemos fazer é aceitar isso, e nos lembrar como ‘cirandar’ como aquelas crianças, indiferentes na roda”.
“Mas é difícil” retrucou o jovem. “É uma grande desilusão pensar que não temos controle sobre nossas vidas, que devemos apenas, como você mesmo disse, aceitar essas mudanças, que elas irão acontecer, sem dúvida. É complicado.” O velho riu, sabia o que se passava com o pobre garoto, se lembrou do momento em que percebeu todas essas coisas, ficara tão atônito quanto, infelizmente, não teve a mesma sorte de perceber essas coisas na juventude, “uma pena”, pensava ele, mas ficou feliz em poder compartilhar a descoberta com esse jovem sentado no banco de pedra de uma praça do interior de Minas. Respirou fundo e continuou o assunto: “é meu filho, passamos a vida achando que temos controle sobre tudo, estudamos para controlar o conhecimento, desejamos a riqueza para controlar o conforto, buscamos o outro para controlarmos o amor e os prazeres sexuais, mas nada disso é eterno. O homem moderno, com sua pseudo-onipotência, acha que pode vencer a Fortuna, que pode vencer a beleza, que pode vencer o conhecimento, que pode vencer, até mesmo, a morte. Ele traça planos, se apóia no progresso, na ciência, na razão, nos diversos ‘ismos’, para tentar parar a roda da vida, para atingir o ‘felizes para sempre’, mas não adianta, a vida vai mudar, a roda vai girar. É até engraçado pensar em toda essa propaganda do ‘eterno’, em uma sociedade que se baseia na destruição do antigo para a construção do novo, é querer sofrer. O dia em que as pessoas se voltarem para o que é natural e começarem a perceber a pureza e a sabedoria que há nas coisas simples, como essas crianças a brincar de roda, entenderam melhor a vida, a nossa sociedade e a si próprios. É por isso que lhe disse que devemos observar essa brincadeira e a indiferença das crianças em relação a roda. Assim devemos guiar as nossas vidas, aceitando a premissa de que vamos ‘cirandar’”.
“Mas...” hesitou o jovem como se ainda não tivesse tanta certeza do quê perguntar, ou como se duvidasse que a pergunta realmente devesse ser feita, “... se a vida é mudança e se cabe a nós aceitar essa efemeridade, qual é o sentido da vida? Digo... não teologicamente, ou seja, não quero descobrir o porquê de estarmos neste mundo, mas sim o que fazer da vida. Como você disse, a nossa sociedade se baseia na destruição do velho para a criação do novo, então, minha pergunta seria: o que me impulsionaria a criar, a tentar construir algo novo, sabendo que será destruído, que não durará para sempre? Simplificando ainda mais: se vai acabar, por que começar algo”? “Bem, algumas coisas simplesmente subvertem essa lógica”, respondeu o velho, “mas nunca saberemos se o que estamos construindo durará e, além do mais, acredito que o próprio girar da vida nos faz querer criar algo, não há como ficar parado. Sem dúvida, há muitas pessoas que passam a existência a girar, girar, girar e não constroem nada de efetivo, não são corajosas o suficiente para entrar no centro da roda”. “Como assim?” perguntou o moço. “Vamos prestar atenção na terceira estrofe da ciranda” respondeu o senhor. “Ouça: ‘Por isso dona Rosa, entre dentro desta roda, diga um verso bem bonito, diga adeus e vá se embora’. Esta aí a chave para entendermos o ‘sentido’ que devemos dar a nossa existência. A vida nos convida a entrar dentro desta roda, a enfrentá-la e é preciso muita coragem para sair de sua superficialidade, entrar em seu centro e dizer ‘um verso bem bonito’ para depois ir-se embora. A cantiga não nos diz pouca coisa, devemos entrar na roda para dizer um verso ‘bem bonito’, não é qualquer bobagem, é um verso ‘bem bonito’, é algo importante, para logo depois dizer adeus. Embora a maioria das pessoas nunca tenha coragem de enfrentar este desafio, as que têm, devem fazê-lo bem feito. Só assim realmente conseguirão construir algo que talvez permaneça. O ‘sentido da vida’ está na mensagem que iremos passar se decidirmos entrar dentro desta roda”.
O rapaz levantou. O senhor ficou olhando ainda sentando. Aquele jovem, de pé naquela praça, respirando o ar adâmico, desta vez, de quem chega ao paraíso, como se o próprio ar tivesse mudado com aquela conversa, recomeçou a chorar. O velho sabia que era um choro diferente, não era o choro das mágoas e dos problemas e, desta vez, resolveu não se intrometer. Alguns minutos se passaram. Dois, cinco, dez, vinte, não importam, naquela praça o tempo não passava em minutos, mas sim em ações, e o único movimento feito foi o ato de se levantar. As lágrimas corriam sobre o seu rosto e paravam em sua boca que sorria alegre, um sorriso tão leve quanto o das crianças a girar na roda. A expressão triste e preocupada havia sumido como se aquelas lágrimas a houvessem levado embora como em uma enxurrada. O jovem secou o rosto com as mãos e começou a correr, corria como se tivesse dado corda no próprio correr do tempo. O velho, esboçando um sorriso, ficou admirado com aquela ação, ao vê-lo entendeu o que se passava. O barulho natural dos cascos dos cavalos batendo no chão de pedra foi abafado pelo som de um tênis de marca pisando forte. O jovem corria intensamente em direção àquelas crianças, àquela roda. O velho sabia o que ele iria fazer, sabia o que passava na cabeça daquele rapaz e começou a chorar também. O ar adâmico enchia os pulmões e dava energia para aquela corrida, que representava muito mais do que os vinte metros finais para a vitória em uma maratona. O tempo parecia ter parado mesmo com as várias ações que aconteciam, como se ele mesmo que sempre corre inexoravelmente, indiferente a todos, se esquecesse de correr para observar o que o jovem estava prestes a fazer. As crianças assustadas pararam de girar assim como o tempo. Aquelas que estavam no caminho do jovem soltaram suas mãos para não serem atropeladas, talvez desconfiassem que, embora o tempo e a roda tivessem parado, aquele rapaz não pararia nunca, pois tinha algo a cumprir. O jovem passou pelas crianças e saltou, saltou em direção à estátua do padroeiro da cidade, centro daquela roda, e a agarrou forte, assim como agarramos tudo aquilo que sonhamos ter para sempre. Dependurado naquela estátua, de olhos fechados e apoiando o pé na base de concreto, deixou-se balançar pelo ar adâmico. Um, dois, dez, vinte minutos podem ter se passado, não importa, o próprio tempo havia parado para observar aquele jovem. Ele abriu os olhos, respirou fundo e gritou. O grito, aos ouvidos de todas as pessoas daquela praça: as velhas que fofocavam, as crianças, a professorinha que organizara aquela roda, o condutor da carroça; pareceu um ato de loucura, de pura insanidade que quebrava a paz da cidade de gente humilde e ingênua, mas uma pessoa o havia entendido, uma pessoa sentada no banco de pedra daquela praça, que já havia vivido quase três quartos de século, cuja experiência estava riscada nas rugas de sua face e na volumosa barba branca que ostentava e que chorava, chorava copiosamente, como que se aprovasse a atitude daquele rapaz. O velho havia entendido perfeitamente o que se passara, havia entendido perfeitamente o que aquele jovem tinha feito. Ele havia tomado coragem e entrado no centro da roda. O grito não era qualquer bobagem, não era uma interjeição qualquer, era uma palavra gritada em alto em bom som e que representava tudo de especial para aquele jovem. Poderia ter durado para sempre não fosse a finitude do ar adâmico que preenchia os seus pulmões. Era o ‘seu verso bem bonito’.

terça-feira, 9 de setembro de 2008

Pequenas Estórias - Conselho a Hermes


Voa Hermes, voa. Já que tens asas, voa. Porém, pertinente seria lembrar que elas ainda não se recuperam por inteiro do último tombo. Assim como as asas quebradas de um anjo não servem a nada, a um mensageiro tão pouca utilidade teria, mas se queres voar, voe.

Seu objetivo é o sol, sempre foi, mas lembre-se dos fracassos anteriores, lembre-se que ele zombeteiro com seu calor, derrete a cera que cola suas asas e que com seu brilho o deixa hipnotizado.

Ó Hermes, o sol, por quê? O que tem de tão especial o sol? Por que não a lua, igualmente bela, musa das musas dos poetas que a cantam com anagogia?

Mula vê se aprende, voa baixa, leva suas mensagens e contenta-te a viver. Não somos nós que buscamos o sol e sim ele que de repente aparece, tocando nossa face com seus suaves dedos de fogo. Quando sentires esse calor saberás que foi ele quem veio até você.