quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

2009

Ano passado, prometi para mim mesmo que passaria a virada na praia, cheguei perto. Voltei hoje, por alguns motivos, para a “civilização”. Novamente passarei na cidade.
É engraçado, programamos tanto a passagem de ano, pois, o jeito que passamos por ela parece ser uma prévia do jeito que o nosso ano será. Pura idiotice. A minha passagem de ano será tão normal (será?) quanto alguns outros anos, mas estou sentindo um clima novo na minha vida. Estou sentindo que mudanças boas estão para chegar.
É complicado para os historiadores falar de mudanças, rupturas, pois sabemos que todos os processos têm suas continuidades. Não estou falando que hoje, a partir da meia noite, teremos um novo Junior, não, não é isso. O que estou querendo dizer é que tenho sentidos algumas mudanças no meu jeito de encarar as coisas, a vida, etc. que, não tenho dúvida irão refletir de maneira diferente para o próximo ano.
Desta vez, não vou desejar um “ano nulo”, mas sim um “ano fantástico”, seja lá, o que queira dizer isso. O que eu desejo de verdade é que o eterno sopre seu bafo sobre o meu rosto, preciso respirar a eternidade pelo menos por alguns segundos em 2009. Preciso muito ter a sensação, mesmo sabendo das efemeridades da vida, que podemos construir algo que subverta a ordem do “tudo que é sólido desmancha no ar”. Quero ter esta ilusão em 2009.
Quero sonhar, sim, quero sonhar muito. Quero acabar com esse pessimismo pós-moderno que se apossou de mim em 2008 e que matou os meus sonhos. Quero sonhar, quero ser tomado pelo transcendental, quero expulsar do meu corpo esta mente racionalizada e “insensível” as coisas “mágicas” que me tornei.
Quero andar de pés descalços, pisar na grama molhada, tomar banho de chuva.
Quero ser um Mensh, e não um ÜberMensh. Quero experimentar as sensações puras da vida.
Quero falar com desconhecidos na rua, observá-los e descrevê-los. Quero continuar um “flauner” no meio da multidão.
Quero tomar cerveja, vinho e tocar violão. Quero encontrar o lado dionisíaco que foi morto por Apolo em mim. Reencontrar através da música, o transcendental.
Quero acabar, definitivamente, todas as matérias da faculdade de música. Quero viver a música como algo que afaste os males para longe e não algo que só traga preocupações. Quero uma música nova para 2009. Quero tocar violão com simplicidade.
Quero correr, dessa vez não para fugir dos problemas, mas para melhor minha saúde. Chega de problemas de joelho (os malditos voltaram a doer em novembro e têm incomodado bastante), chega de cansaço, chega de falta de condicionamento. Quero que em 2009, nessa mesma data, eu esteja correndo a São Silvestre. É serio... eu sei que ninguém acredita em mim, mas eu vou tentar.
Quero ganhar mais dinheiro. Talvez dar mais aulas.
Quero, isso antes do começo das aulas, fazer a minha segunda tatuagem. Será um ouroboros nas costas. Essa vai ser carinha mais quero fazê-la antes de Março.
Quero emagrecer pelo menos 4 quilos esse ano. Pelo menos.
Quero escrever muitos contos, muitos, muitos. Quem sabe um por semana.
Quero sair com os meus amigos para me divertir. Amos vocês todos, sério.
Quero ler literatura “infantil”, “Le petit prince”, “História sem fim”, entre outros. Pureza, quero fugir da mente racionalizada dos adultos. Será o contraponto as leituras da faculdade.
Quero ler muita literatura. Sim, viva a literatura. Quero ler o máximo livros que puder.
Quero, quem sabe, aprender a dançar. Gostaria muito de fazer aula de dança em 2009. Quem sabe...
Quero entender a modernidade, a pós-modernidade, etc. Uahuahuahauhauauha.
Quero poder ser eu mesmo, sempre. Não quero ser um homem partido ao meio.
Quero coisas novas. Não objetos, que são descartáveis, mas pessoas, sensações, amizades, livros, filmes, viagens, etc.
E se nenhuma dessas coisas acontecerem, quero que o acaso me traga coisas boas. Em 2008 as coisas mais imprevisíveis foram as que mais me deram prazer e, para 2009, desejo muito que os acasos aconteçam. E quero que me lembre sempre que “todo infinito é instantâneo”.

sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

RETROSPECTIVA 2008

Sabe aquela frase “é melhor tomar cuidado com que se deseja”? Pois é, depois de 2008 vou tomar mais cuidado com as minha palavras. Estava relendo as coisas que escrevi no meu antigo blog e fiquei surpreso:

“Dessa vez não vou dizer: “Esse vai ser o meu ano”...mas, que seja o ano de outra pessoa... Que outra pessoa se dê muito bem esse ano, que seja feliz.
Por enquanto, vou curtir a minha estadia no “dark side at the moon”, é bom, te faz pensar na vida, rever valores, e as coisas que realmente te fazem feliz... Sabe, as vezes precisamos de um ano nulo, aquele ano que passa em branco, que só conta mesmo na idade.”

Pois é. Sério, o que foi 2008? Para mim foi sem dúvida o ano mais estranho, mais obscuro da minha vida, foi realmente meu ano “dark side at the moon”. “Ah, coitado!” Talvez, vocês possam pensar, mas não pensem isso, este também foi o ano mais fantástico da minha vida.
Não ganhei mais dinheiro, não namorei, sofri muito com as duas faculdades, novamente – todo mundo sabe que é loucura e eu também, não posso reclamar –, sofri novamente com decepções amorosas, porém, foi o ano em que se dissiparam “todas” – pelo menos boa parte – das máscaras do mundo, o ano em que me conheci de uma forma que nunca havia conhecido antes, como se eu mesmo fosse outra pessoa, como se até então o que havia feito era apenas mentir para mim mesmo.
O Jaime Junior desse ano foi dividido em dois, assim como os semestres do ano. Na primeira parte de 2008 o lema era: “eficiência”. Vivi como vivi 2007 inteiro. Noites mal dormidas, brigas e tentativas de retorno com a Silvia, a busca pelas notas altas... O peso do mundo sobre minhas costas. Algum tempo atrás eu li, não sei aonde, que o melhor exemplo para o herói moderno era o Atlas, sabe aquele cara da mitologia grega que carrega o mundo sobre suas costas?, pois é... Talvez seja um bom exemplo para o que eu tenha sido, mas não me orgulho em nada disso. Eu fui um idiota.
Eu fui na virada de 2007 para 2008 para Petrópolis com o Caio e que com a Dani. Enquanto os dois curtiam a cachoeira, sabem o que eu fazia? Ficava lendo “A ética protestante e o espírito do Capitalismo”, pela terceira vez. Sabe, não me julguem mal, mas eu realmente tentava devorar o mundo com os meus olhos, correr atrás do tempo perdido para obter todo conhecimento do mundo. Sabem quantos livros eu li nas férias? Janeiro e fevereiro? Quatorze, sim uma média de sete por mês. Que porra. Há uma frase do Ralph Waldo Emerson, que o Bauman usa, que acho talvez a melhor frase para explicar o nosso tempo e o jeito como eu vivia: “Quando se patina sobre o gelo fino, a segurança está na nossa velocidade”. Ou talvez possa também utilizar um trecho de Alice no país das Maravilhas, também utilizado pelo Bauman (meu guru, hehehe), que é: “Agora, aqui, veja, é preciso correr o máximo que você puder para permanecer no mesmo lugar. Se quiser ir a algum outro lugar, deve correr pelo menos duas vezes mais depressa do que isso!”. Era assim que eu me sentia, deveria correr duas vezes mais para sair do lugar, a sensação que tinha era que se não o fizesse ficaria no mesmo lugar e ficar no mesmo lugar na camada de gelo fino significa afundar. Isso, pode parecer louvável, engraçado, sei lá, mas não é nenhum dos dois... é ridículo, é quase doente. Vivi mal pra caralho por causa dessa porra chamada “princípio de eficiência”. Uma porra que me fez ligar tremendo e chorando pro meu pai, depois de três noites dormindo duas horas, vivendo a base de café e pó de guaraná, para falar que eu corria risco de ficar com DP em uma matéria na faculdade de música. O pior não foi isso, foi ouvir o professor falando: “você atingiu a nota para passar mas acho que você tem que fazer a matéria de novo.” Meu stress era tanto que não agüentei quando eu ouvi a voz do meu pai no telefone, chorei que ninguém uma criança. Só naquele dia eu tive 4 provas, sim, 4, 3 na de música e uma na de história. Minhas notas foram boas, mas a pergunta que me faço é: Pra quê?
A “mudança” veio junto com as férias. Em uma viagem que o pessoal da Unifesp fez para Minas aconteceu algo envolvendo três pessoas, eu era uma delas. Esse “algo” marcou a vida dessas três pessoas, de maneiras diferentes, mas sem dúvida foram marcas fortes para os três. Raiva, pena, amor, ódio, calor, frio, sobriedade, ebriedade, não é a toa que todo mundo conhece Minas pelo seu “barroco”, pois foi lá que os opostos se tocaram. Como diz Milan Kundera, quando os opostos estão tão próximos e quase se tocam “a existência humana perde suas dimensões e adquire uma INSUSTENTÁVEL leveza”. Quando os opostos estão próximos, tudo o que damos valor perde seu peso, quando o amor e o ódio estão vivamente presentes, ao mesmo tempo, o sentido que dávamos para eles perde seu valor, porém esta falta de peso, deixa sobre nossos ombros uma leveza insustentável. Foi assim que Minas se apresentou para mim e foi ali que começou minha “pós-modernidade”. Eu sempre fui um cara sonhador, vivia preso no futuro, “planejando” o que seria minha vida, ou, um cara meio passadista, sempre gostei de me lembrar da infância, relacionamentos passados, etc. Whatever, eu não estava preso no presente, estava sempre preso em um dos dois extremos, e foi quando os extremos se tocaram que o presente foi ouvido. Lembro-me bem de uma conversa que tive com uma das pessoas envolvidas neste “algo” que lhe falei “engraçado não consigo mais pensar no passado e nem ter esperanças no futuro”.
Provavelmente, vocês estejam pensando: “ah coitado”. Novamente peço, não pensem isso. Tem uma frase no filme “Pequena Miss Sunshine” que o tio da menina fala com o seu irmão mais velho sobre Proust, ele fala que o Proust era um cara fracassado, porém, chegou no final da vida e viu que não fossem estes anos de sofrimento, ele não seria quem ele era. Por isso 2008 foi um ano fantástico, pois foi através dele que consegui desmascarar o mundo e a mim mesmo.
Logo após o “algo” de Minas, e devido a minha falta de esperanças no futuro pude me desmascarar. Quando eu pensava “eu vou fazer isso, aquilo e tal”, eu pensava de forma muito realística, “não, você não vai, porque você é assim e daquele jeito”. Eu havia me enxergado. Todas as minhas limitações, todas as minhas potencialidades, apareciam diante dos meus olhos. Eu ouvi certa vez que o mito da medusa representa o fato de olharmos para nós mesmos, ficamos petrificados não porque olhamos para um monstro com cobras ao invés dos cabelos, mas porque olhamos para nós mesmos, porém, no reflexo, o que vemos é a figura monstruosa. Foi isso que aconteceu, olhei-me nos meus próprios olhos e vi o que era.
Desde as aulas de Contemporânea I comecei a enxergar o mundo em que vivemos como um mundo onde não me reconhecia. Assim como um “flauner”, passei a observar as pessoas e a sociedade e comecei a pensar: ah, então o mundo contemporâneo é assim... Puts, fudeu, sou uma peça que não se encaixa nesse mundo. Até “pode” ser que me encaixasse na velha modernidade, porém, estamos em outra modernidade agora, “a segunda”, “a líquida”, “a pós”, como queiram chamar, mas está aí o problema. A modernidade vendeu a todos a possibilidade de construir algo eterno e essa mentalidade permanece nos nossos dias. Quando Marx disse “Tudo que é sólido desmancha no ar – tudo que é sagrado é profanado”, ele estava falando dos sólidos e dos sagrados que estavam derretendo em sua época, o Antigo Regime, a Igreja, os valores tradicionais, etc, porém, vivemos num tempo onde novamente esta frase necessita ser repetida. Tudo que a modernidade construiu, seus “sólidos”, está sendo desmanchado, por isso que prefiro o termo “pós-modernidade”, e o que nos resta é essa sensação de estar perdido. A modernidade está virando sobre si mesma. Venderam para a gente que no final todo mundo ia ser feliz, que chegaria um momento onde todos seriam “felizes para sempre”, porém, isso não existe.
A questão da felicidade é algo que vem me assombrando desde 2006, quando comecei a perceber, cada vez mais, que este “felizes para sempre” não existe. Apesar de saber que não existe, era o que eu realmente desejava. É bobo, eu sei, mas era o que acontecia. Porém, depois de Minas, meu desencanto e minha angústia eram tão grandes que precisavam serem exteriorizados, daí surgiram os contos. Os contos foram algo que foram utilizados como válvula de escape. Foram essenciais nesses segundo semestre e, também, foram essencial na minha reflexão sobre o mundo.
Porém, se eu, para parafrasear Marx, fui forçado a enfrentar com sentidos mais sóbrios minhas reais condições de vida e minha relação com os outros homens, ainda havia algo que não havia mudado, ele: “o princípio de eficiência”. Demorei um pouco para que caísse a ficha do quão nociva estava sendo a vida que estava levando. Isso explodiu no TCC. Em agosto eu tinha um tema, em Setembro eu tinha outro, em outubro eu tinha que entregar a primeira parte do trabalho. Foi uma loucura, não foi fácil. Resolvi mudar o tema pois realmente o antigo, Guitarra e Internet, não estava me dando tesão, na verdade, o problema era bem pior, não estava conseguindo ter vontade de caminhar nesse tema, foi então que resolvi mudar para Chico Buarque e me encontrei. Resultado, fiz um TCC de quase 80 páginas em 1 mês. O tema: “Tradição e Modernidade em Chico Buarque”. Novamente, ela, a modernidade, me perseguia e foi extremamente prazeroso perceber que também perseguiu o Chico, durante um tempo, hahaha. Daí surgiu a mágica do TCC em 1 mês. Uma vez, falei com a Michele: “se na banca, eles me perguntarem ‘como você sabe que o Chico estava realmente passando por isso?’ A resposta que darei será algo como ‘de acordo com a bibliografia’, mas a real, aquela que estará ecoando na minha cabeça será ‘eu sei, tenho certeza, porque é isso também que estou passando’, hehehe. Talvez, tão importante quanto essa retrospectiva, para entender o meu 2008, seja o meu TCC. Ali esta também o meu conflito.
Mas voltemos ao “principio de eficiência”, termo que aprendi em um dos livros que li sobre o Chico Buarque. Gostei tanto que comecei a me enxergar nele. Esse um mês que vivi para o TCC foi insano. Vivi para o TCC, dando ênfase no vivi, não é exagerar. Não saía de casa, não lia os textos da faculdade de história, não viajava com os amigos, não vi meu pai, nem meu irmão, foi foda. Tudo para o TCC, na verdade aí já não era tanto um principio de eficiência, mas sim uma obrigação, uma obrigação que me dava tanto prazer que me fez enxergar o jeito como eu estava vivendo.
Nessa pesquisa, duas coisas me fizeram pensar e muito na minha vida. Uma foi um parágrafo do “Tudo que é sólido desmancha no ar” do Marshall Berman, onde, em sua análise do Fausto de Goethe, ele diz que um espírito da terra fala para o protagonista algo do tipo: por que você, ao invés de tentar ser um Übermensh (super-homem) “não luta para se tornar um Mensh – um autêntico ser humano?” Foi então que percebi que tinha perdido minha humanidade, eu vivia como um Fausto, mais humilde, que lia Weber, enquanto seus amigos curtiam a cachoeira, que passou um mês trancafiado em sua torre em Suzano vivendo para um TCC. Havia perdido o que era devidamente humano. Depois disso comecei a me questionar bastante sobre isso. Vale a pena tentar ser um Übermensh e perder tudo de mais belo que ser um Mensh pode te oferecer? Depende, isso pode ser uma escolha e não cabe a nós julgar sobre isso. Porém, a grande ingenuidade dessa escolha é que, mesmo que você passe a vida trancafiado em uma torre, tentando absorver todo conhecimento do mundo, tentando tocar guitarra o mais rápido possível, fazer os passos de dança perfeito, construir o viaduto perfeito, se tornar o atleta perfeito, etc. nada disso é garantido. Um músico que passa horas treinando ficará bom tecnicamente, mas talvez não atinja a sensibilidade de um Beethoven, ou talvez atinja, seja um gênio e não seja descoberto exatamente porque passou tempo demais em sua torre. Não temos nenhuma garantia.
A outra foi uma música do Chico chamada “Cara a Cara”, cujo refrão final é:

Vou correndo, vou-me embora
Faço um bota-fora
Pega um lenço agita e chora
Cumpre o seu dever
Bota força nessa coisa
Que se a coisa pára
A gente fica cara a cara
Cara a cara cara a cara
Com o que não quer ver

Para fazer a análise dessa música usei muito a metáfora do “gelo fino”. Essa música, segundo Adélia Bezerra de Menezes é guiada pelo “princípio de desempenho”. Porém, o mais fantástico nessa música é o fato do personagem não poder parar, porque, senão, ele fica “cara a cara com o que não quer ver”. E o que seria isso? Talvez sua própria condição de vida. Através desse trecho eu percebi o porquê de tanta correria. Fugia para não “enfrentar com sentidos mais sóbrios minhas reais condições de vida e minha relação com os outros homens”. Final de 2006, 2007 e metade de 2008 corri, como quem foge de sua sombra, só depois de Minas, só depois que o freio de mão foi puxado, minha sombra, e esse exemplo cai bem, pois podemos usar literalmente aqui o conceito de sombra de Jung, pôde me alcançar. E então as Máscaras (as minhas para MIM) caíram.
O final de semestre foi tão “tenso” - ou até mais - quanto o primeiro, porém, consegui vencê-lo com leveza, sem o peso do mundo sobre as costas. Consegui manter a minha média na faculdade de História e tive a minha melhor média na faculdade de música nos quatro anos. Esse semestre tive quatro 10... Acho que isso nunca mais ocorrerá na minha vida acadêmica, hahaha, nunca mais. Foi pesado, mas leve, como o peso da gravidade, o qual sentimos, mas pelo qual passamos indiferente. Uma força que não tentamos controlar ou vencer. E aprendi algo extremamente importante: Sou eu que controlo o que faço e não o que faço que me controla. O mal da modernidade é justamente ter ultrapassado todos os limites humanos, sentimentais, biológicos, mentais, etc. Tornamo-nos apenas a machinae animatae de Descartes. Eu não sou uma máquina, eu não sou um Ubermensh, sou um homem.
Desde então a INSUSTENTÁVEL leveza foi substituída por uma leveza indefinida, talvez sonhadora, talvez ébria, talvez desejada. Apesar da cirurgia da minha mãe que foi um período tenso, coisas muito legais aconteceram comigo no final deste ano. Há um post no meu antigo blog que falava sobre momentos felizes que eu gostaria de guardar em um retrato na parede. Esse mês de Dezembro tive um, tirei dez no TCC. Quando vi quase tive um treco de felicidade, hahaha.
Bem, mas já falei demais... Só gostaria de dizer que termino 2008 com uma leveza edificante, que traz bons fluídos e uma desconfiança de que 2009 será sensacional. Bem, já que falei para 2008, “que seja o ano de alguém”, gostaria de ser um pouco mais egoísta esse ano e falar “que seja o meu ano”, hahaha, que 2009 traga coisas boas, não só para mim mas para todos. As metas eu deixo para outro post.
Beijos e Abraços e obrigado por este ano, amigos.
J. J
PS: Não vou reler para corrigir porque estou cansado, então me perdoem pelo erros.

quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

CONTO XXI - O ÔNIBUS


A chuva caía insistente na estrada fazendo com que o motorista tivesse que guiar com o máximo de cuidado. Era noite. O caminho sem iluminação. O farol do ônibus iluminava as gotas de chuva, projetando a frente a única luz que se via naquela estrada. De um lado, mato, de outro, mais mato. Carros, em ambos os lados da rodovia, eram raros. O ônibus mantinha seu guiar solitário, desbravando o asfalto esburacado. O motorista era a única alma acordada. Guiava o veículo com habilidade, na chuva, no escuro e nos buracos, enquanto um pouco mais de dez passageiros dormiam despreocupados.
As pessoas sentavam-se separadas. Excetuando o casal de namorados sentados na frente, dormindo abraçados, todos os viajantes estavam espalhados pelos cantos do ônibus. Alguns aproveitavam a poltrona livre a seu lado parra esticar as pernas e dormir mais confortavelmente, afinal a viagem era longa. Outros aproveitaram o local vago para descansar sua bagagem.
O banco confortável, o ar condicionado ligado em uma temperatura amena, a música individualizada que tocava em alguns mp3s, tudo isso fazia as pessoas se esquecerem da chuva, do escuro e dos buracos. Ninguém se preocupava com o caminho a seguir, só desejavam ser levadas, conduzidas sem nenhuma participação no processo para a tão aguardada cidade-destino.
O motorista saiu da estrada. A confortável linha reta havia se transformada em uma curva não muito acentuada. Alguns passageiros, percebendo a mudança de direção, acordaram se preparando para a parada. Chegaram a uma lanchonete a beira da estrada aberta 24 horas. Aqueles que ainda não haviam acordado com a mudança de direção, acordaram com as luzes imponentes da lanchonete que puderam ser avistadas quando o ônibus foi estacionado, ou quando o motorista anunciou: “Pararemos durante quinze minutos”.
O ônibus, aos poucos, ia sendo esvaziado. As pessoas saíam para ir ao banheiro, comer algo ou apenas para esticar as pernas. A viagem seria longa. O casal de namorados continuou abraçado nos bancos da frente. Apesar de terem acordado, resolveram ficar dentro do veículo depois de trocarem meia dúzia de palavras. Se reacomodaram e voltaram a se abraçar. Antes da parada terminar já estavam dormindo, ela deitada sobre peito dele, como se necessitasse ser protegida e ele, que apesar de dormir, parecia seguro em sua função de protetor.
No fundo do ônibus, outra pessoa resolveu continuar dormindo. André acordou, percebeu que tinham chegado a uma parada, viu quando as pessoas saíram, mas resolveu permanecer no ônibus. Não quis abrir mão dos quinze minutos de sono que teria enquanto as pessoas aproveitavam a lanchonete. Virou-se para o lado e, olhando o movimento de fora, pela fresta da janela não coberta pela cortina do veículo, adormeceu.
Após os quinze minutos, o motorista verificou se todos os passageiros estavam presentes e partiu. De volta a estrada, novamente ele guiava o ônibus através da chuva, da noite e dos buracos. Logo após a partida, ainda era possível ver algumas pessoas acordadas, algumas ainda saboreando as guloseimas adquiridas na lanchonete, porém, sozinhas em suas poltronas, em menos de uma hora já estavam dormindo. Apenas um senhor, de aproximadamente uns 60 anos, personagem importante para nossa trama, permaneceu acordado.
O ônibus seguia sua viagem tranqüilamente, apesar dos buracos na estrada. Foi num destes buracos, o qual o motorista não conseguiu evitar, que André, e quase metade do ônibus, acordou. Ele acordou assustado, mas logo percebeu que o tranco recebido deveria se tratar das conhecidas imperfeições daquela estrada. Antes de fechar os olhos e voltar a dormir, resolveu mudar de posição e virou-se para dentro do ônibus. O susto do buraco não havia sido suficiente. Ao virar-se, percebeu uma presença ao seu lado, o que lhe gelou os mais recônditos cantos de sua alma.
Havia uma pessoa sentada ao seu lado, não que isso fosse estranho em uma viagem de ônibus, mas com certeza o era quando havia dezenas de lugares vazios. André, logo se preocupou. É impressionante como o sono nos parece supérfluo quando algo nos ameaça, não que André estivesse sendo ameaçado de forma concreta, mas a dúvida, aquela dúvida de não saber ao certo quais são as verdadeiras intenções de um estranho que se aproxima, é que é verdadeiramente ameaçadora, pois, fica no limiar entre uma ação injusta e o arrependimento de não ter agido na primeira oportunidade. “Quais são as intenções desse cara?”, se perguntava André, já não conseguindo mais pregar os olhos.
Esse “cara”, que tanto preocupava André, era o senhor que permanecia acordado, o qual já falamos acima. Sua aparência dava razão para desconfiança de André. Ele vestia um par de sandálias velhas, uma calça jeans desgastadas e uma camiseta xadrez de um marrom e preto já desbotados. O jeito que se vestia era ameaçador pelo simples fato de transparecer que nada tinha a perder, que nada possuía que pudesse ser roubado, nem mesmo um relógio de pulso.
André permanecia angustiado com aquela presença ao seu lado. Seus pensamentos eram incontroláveis: “O que ele quer? Por que não se sentou em outra poltrona já que há muitos lugares vagos? Se se sentasse em outro lugar poderia esticar suas pernas, dormir de maneira mais confortável. Agora, ficamos eu e ele desconfortáveis, dormindo em apenas uma poltrona por causa deste idiota, que raiva. É incompreensível a atitude deste cara, com certeza ele está tramando algo. Será que está querendo me roubar? Sim, definitivamente, ele vai me roubar”. André parecia prever seu próprio destino.
Impaciente bufou. O velho, percebendo que o rapaz ao seu lado havia acordado, se apresentou.
_ “Ola! Não sabia que você estava acordado. Prazer meu nome é Estevão.”
O gesto simpático do senhor, que talvez servisse para acalmar o rapaz, só piorou a situação. “Merda, antes fingisse que estava dormindo. Esse velho devia estar esperando eu acordar para me assaltar, merda.” O senhor ainda permanecia com a mão no ar esperando uma resposta de André.
_ “Daniel, me chamo Daniel”. André deu a mão ao velho e o cumprimentou. Ele havia mentido o seu nome por medo. Já somos convidados a interpretar personagens nos espaços públicos, que mal teria dar um novo nome a essa máscara. Já que, para ele, era tão certo que aquele velho mal vestido se tratava de um assaltante ou algum malfeitor, proteger seu nome verdadeiro era uma precaução compreensível. A falta de passado é uma das vantagens no contato entre estranhos, vantagem que nos permite mudarmos de nome, de profissão e até mesmo de atitudes. Essa possibilidade de mentirmos tudo a nosso respeito é, também, decorrência da falta de futuro destas relações.
Apesar dos braços fortes do senhor sentado ao seu lado, talvez fruto de anos de trabalho duro e sem descanso, o que preocupava André era invisível aos olhos. O lhe causava preocupação era a desconhecida intenção daquele homem, suas estratégias para o crime e, acima de tudo, as armas que poderia esconder. Em um confronto de mão com mão, talvez levasse vantagem, porém, não saberia a ameaça que aquele estranho poderia representar com uma faca ou com um revolver em um canto escuro do fundo do ônibus. Tinha medo.
_ “Você vai descer na rodoviária ou antes?” Perguntou o senhor.
Que pergunta era aquela, pensou André. Uma pergunta um tanto quanto suspeita. Por que ele havia perguntado o local que o rapaz desceria? André logo pensou que era para melhor tramar o assalto. Ele desceria antes, mas devido ao medo que sentia decidiu mentir novamente.
_ “Vou descer só na rodoviária”. Essa afirmação não lhe faria mal, afinal, um local mais movimentado seria menos perigoso.
_ “Eu também”, respondeu o estranho de nome Estevão.
_ “Que bom”. Disse André querendo terminar aquele colóquio.
André, mesmo desconfiando daquele homem, resolveu se virar em direção a janela e fingiu dormir. Talvez, a única coisa mais difícil do que o contato com um estranho que lhe causa medo, é lhe dar as costas. A atitude de André, temos de reconhecer, foi extremamente corajosa. Apesar disso, qual seria a verdadeira intenção de André com esse gesto? Será que o medo da conversa era maior do que o medo de uma faca apontando inesperadamente em suas costas? A turbulência de seus pensamentos nos dá a impressão de que essa atitude seria uma fuga, um sair de cena para reorganizar seus pavores, suas ações e seu personagem.
“Desgraçado. O que é que esse cara quer? Por que não fala logo? Será que vai esperar eu chegar na rodoviária para me assaltar?” Perguntas e mais perguntas surgiam na tempestuosa mente do rapaz. Ele pensou em se levantar e trocar de lugar, já que havia diversas poltronas vazias, porém, isso não seria de bom tom para a “civilidade”, aquela regra que aprendemos e que tem a função de deixar esses encontros entre estranhos tão leves quanto uma pluma: sem futuro, sem passado e sem profundidade.
Meia hora tinha se passado desde que havia mudado de posição, mas ele não conseguia dormir. Os minutos que passou, ali, imóvel, olhando para a escuridão que era desbravada pelo veículo, começaram a pesar sobre seu corpo. “Se eu ao menos tivesse o banco ao meu lado vago, poderia dormir com mais conforto”, pensou ele, enquanto decidia se virava para o outro lado ou não. Tinha a esperança do velho, a estas horas, já estar dormindo.
Virou-se. O senhor ao seu lado continuava acordado. Ele sentia cada vez mais raiva daquele homem chamado Estevão, isso se esse fosse realmente o seu nome verdadeiro. Afinal, se André havia mentido, o que lhe garantiria que o velho estava lhe falando a verdade? Se por um lado, a falta de passado desses encontros nos dão a vantagem de, na hora, inventar o nosso personagem, por outro, se mostra desvantajosa, pois nunca sabemos ao certo com quem estamos contracenando.
A falta de ameaça de uma idéia ameaçadora é um dos grandes problemas para a belicosidade dos homens. É incontável o número de guerras e combates que já foram travados por causa de uma simples suposição. André não queria cometer este erro, entretanto, também não desejava esperar pacientemente o golpe do inimigo, afinal, a mesma idéia ameaçadora que atiça a guerra, também causa paralisia. Foi para fugir deste estado de paralisia que André resolveu falar:
_ “Estevão... é esse seu nome, não é?”
_ “Sim, Estevão.”, respondeu o senhor.
_ “Então, Estevão, eu não me lembro de você quando saímos. Você, pelo que parece não estava no ônibus quando saímos, estava?” perguntou André.
_ “Realmente eu não estava. Eu entrei no ônibus durante a parada”.
André se surpreendeu com a resposta daquele senhor. Sem analisá-la bem e sem pensar direito nas conseqüências de sua próxima pergunta, falou:
_ “E o motorista sabe que você está viajando clandestinamente?”
O velho deu uma risada tão verdadeira que assustou André. Sua risada poderia ter acordado, facilmente, todas as pessoas do veículo, se elas não estivessem dormindo um sono profundo.
_ “Ah, Daniel. Você é muito engraçado. Eu comprei a passagem no guichê da última parada. Para mim, é mais cômodo comprar aqui. Além de ser perto da minha casa, é mais barato, pois, eu não preciso pagar a distância que já foi percorrida”.
_ “Você mora perto daquela parada?” perguntou André ao senhor.
_ “Sim, moro eu, minha filha e minha neta. Estou fazendo esta viagem para visitar um parente que está doente”.
André havia entrado em um terreno perigoso: a profundidade. Essas pequenas gotas de informação fornecidas gratuitamente por Estevão poderiam destruir suas defesas contra aquele estranho. Alguém que morava com a filha e com a neta, além de viajar esse longo percurso para cuidar de um parente doente, não poderia ser uma pessoa ruim, não poderia ser um assaltante. O fato é que André não queria que Estevão entrasse em sua intimidade e, antes que ele fizesse a fatídica pergunta, “e você, onde mora?”, aproveitando a momentânea cumplicidade, resolveu tirar a limpo aquela situação que tanto lhe incomodava.
_ “Estevão! Eu posso lhe perguntar algo?”
_ “Sim, claro. Fique a vontade”.
_ “O número da sua poltrona é realmente essa do meu lado? Porque quando o ônibus está vazio não precisamos seguir essa numeração, sabia?” André perguntou achando que talvez aquela situação fosse apenas uma falta de sorte na venda das passagens e um viajante extremamente preocupado com as normas da companhia rodoviária.
_ “Olha Daniel, para falar a verdade, eles não me deram uma numeração. Me entregaram a passagem em branco e falaram para eu me sentar aonde eu quisesse.
Essa não era a resposta que André queria ouvir, a preocupação continuava, entretanto ele decidiu levar esta história até o fim.
_ “É exatamente isso que eu não entendo. Você tinha a liberdade de escolher qualquer lugar para se sentar e, mesmo assim, você quis se sentar ao meu lado. Por quê?
_ “Bem, liberdade é uma palavra complicada e polissêmica. Eu não acho que o simples fato de não ter impedimentos para escolher o lugar para me sentar, seja um certificado para a minha liberdade. Eu realmente prefiro usá-la ocupando os espaços vazios que eu definir. Afinal, eu escolhi você, porém, você não me escolheu. Que liberdade você teve de escolher a pessoa que se sentou ao seu lado. Nenhuma. Eu preferi compartilhar esse poltrona ao seu lado do que me sentar sozinho e estar sujeito a escolha de alguém”.
O medo, que antes era do marginal, se transfigurou no medo do mala sem alça. André só conseguia pensar: “Puts, que cara chato”.
_ “Tá, tudo bem, respeito sua idéia de liberdade, mas não seria mais confortável para nós dois, se você se sentasse em outro lugar?” Perguntou o rapaz.
_ “Sim, eu não tenho a menor dúvida. Porém, é por causa do conforto que cada uma destas pessoas escolheu a distância. O conforto nos separou. Foi o conforto de cada poltrona que nos fez esquecer os buracos “desconfortáveis” que aparecem durante o caminho. Essas pessoas não mexeriam uma palha para reclamar de tudo o que é exterior a suas poltronas, porém, coitada da empresa rodoviária se deixar uma janela sem cortina, uma acento sujo, ou qualquer outro fator que atrapalhe o bem-estar destas pessoas. Elas só se preocupam em exigir seus direitos como consumidoras e não como cidadãs. Toda defesa dos problemas coletivos é deixada de lado, pois...”.
_ “Beleza, Estevão, eu sou uma dessas pessoas, eu quero conforto. Não vou ficar aqui, escutando esse papo chato de liberdade, direitos, etc. Eu vou me levantar e vou me sentar em outro lugar e não quero saber de você me “escolher” de novo, ok? Vou usar a minha liberdade, ouviu bem, a minha liberdade, para sentar aonde eu quiser e ninguém vai me impedir”, disse André, demonstrando certa raiva.
Estevão, um pouco preocupado com a atitude do rapaz, falou:
_ “Calma, Daniel. Se você quiser eu posso ir para outro lugar”.
_ “Olha, eu gostaria muito, Estevão”.
O velho respirou e disse olhando nos olhos do rapaz:
_ “Então me convença”.
Ao ouvir esta resposta André pareceu desacreditar no que acabava de escutar. Ele se levantou, pegou sua mochila e saiu. Decidiu sentar-se longe daquele “velho maldito”, como ele mesmo proclamou. Sentou-se lá na frente, próximo ao casal que dormia abraçado. Para eles o conforto não parecia tão importante, mas André tinha certeza de que para si era o essencial. Agora se sentia livre e feliz.
O ônibus continuou seu caminho tortuoso pela noite, pela chuva e pelos buracos. A viagem ainda seria longa. André havia, como o resto daquelas pessoas, se espalhado nos dois bancos que ocupava deleitosamente. Estevão continuava incorruptível; reto, grave e sem sono, em um único lugar. Dentro do veículo, os passageiros continuavam em suas poltronas confortáveis, aproveitando a agradável temperatura do ar condicionado e individualizados em seus mp3s, do lado de fora, a chuva, a noite e os buracos, pareciam entidades místicas que fugiam ao controle da daquelas pessoas. Nada podiam fazer. Nada queriam fazer. Só desejavam ser conduzidos.

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

CONTO XX - EPIFANIA


Entrei no quarto apressado. Ela me esperava sem a blusa na sala de minha casa. Passei o dedo pela estante de cds e não achava aquele que queria. Repetia alto o nome do disco, inconscientemente, como se de alguma forma o título daquele álbum ressoasse como um mantra que o trouxesse para mim. O vinho estava aberto, duas taças já haviam sido sorvidos por cada um. Ela me esperava um pouco ébria e sem a blusa na sala de minha casa. A música era essencial, era o tempero que faltava para completar a paisagem que vinha em minha mente enquanto eu dedilhava os cds espalhados pelo quarto. Nada.
Será que o havia emprestado para alguém? Tenho certeza que não. Poucas pessoas conheciam esse artista. Apenas aquela garota que me esperava na sala havia se entusiasmado quando lhe disse que tinha este disco, talvez apenas ela conhecesse esse artista. Os meus dedos dedilhavam os cds na estante. Nada.
Nessas horas, onde há uma garota ébria e sem a blusa na sua sala e você fica procurando o cd que ela pediu para dar “aquele clima”, é que você se martiriza por ter comprado tantos discos inúteis. Consumo supérfluo. Desejava ter apenas um neste momento. Aquele era o único álbum que desejava achar. Nada.
“A pressa é inimiga da perfeição”, já dizia minha mãe. Cheguei ao final dos cds e não achei aquele que gostaria. Tive que repetir a procura, um por um, prestando mais atenção naquele dedilhar. Finalmente o vi. Puxei o cd da estante e abri a embalagem. Nada.
Tive vontade de gritar quando percebi que o cd não estava lá.Rapidamente, no ápice do desespero, comecei a espalhar todos os cds pelo quarto, todos aqueles cds supérfluos que já não escutava havia anos. Na caixinha do Metallica estava João Gilberto, na do João Gilberto, Bob Marley; na do Bob, o Nove Luas do Paralamas do Sucesso, álbum muito bom que estava procurando a tempos. Fiquei feliz por um momento, ao ver que finalmente o tinha achado, porém, o desespero voltou quando lembrei que ainda não tinha encontrado o disco que a garota, que me espera sem a blusa e um pouco ébria na sala, havia me pedido. Nessa procura insana pelas caixinhas dos cds, via todas as fases da minha vida se transfigurando sob meus olhos. Algumas me davam mais vergonhas do que outras, porém, compreendi o tamanho anacronismo que cometia comigo mesmo ao julgar o meu próprio passado pelo gosto do presente. Isso não importava. Desejava apenas achar aquele maldito cd. Nada.
A busca continuava. Paulinho da Viola na embalagem do Racionais Mc’s, Spice Girls na caixinha do Ramones. Aquela desordem me enlouquecia. Me sentia perdido, tinha vontade de gritar. O que a garota que me espera sem a blusa na sala de minha casa pensaria a respeito de minha demora? Não sei, seria melhorar não demorar. De repente abri a caixinha do Cannibal Corpse. Epifania.
Finalmente, achei o cd. Me senti zonzo com a descoberta, não pelo vinho, mas por causa de uma arrebatadora epifania. Por um micro-segundo, enquanto eu maldizia a desordem das caixinha, me questionava por que, de uns anos para cá, havia desenvolvido o péssimo hábito de não guardar os cds nas sua respectivas embalagens. Foi então que percebi que este hábito não era só meu. Quase todo mundo tinha adquirido essa mania. Será que as caixinhas que antes definiam tudo, já não eram mais úteis? Será que os ouvintes já não se importavam tanto com a sacralidade das embalagens e transitavam facilmente entre elas sem se preocupar com rótulos? Será que a desordem dos cds era um espelho da desordem de nossas vidas? Será que estávamos tão perdidos que não nos reconhecíamos mais em nenhuma das caixinha? Afinal, seríamos nós cds sem embalagens? Epifania.
Como alguém que acorda depois do desmaio, fui jogado de volta ao meu corpo. Não havia tempo para se pensar nisso. Uma voz me chamava. A voz era dela que me esperava um pouco ébria e sem a blusa na sala de minha casa. Tinha em mãos o que faltava. Música.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

CONTO XIX - CHARLOTTE


Estava tudo encerrado. Charlotte foi enterrada e as pessoas começavam a se dispersar. O final de tarde daquele sábado, triste sábado para aquelas pessoas, estava nublado e anunciando uma tempestade. Talvez o céu tivesse também suas lágrimas para aquela que se foi.
O que consolava aquela gente vestindo o negro do luto e óculos escuro, cúmplices de olhos marejados, era o fato de todos já esperarem esta morte. Charlotte já havia sido desenganada pelos médicos. Todos sabiam que logo ela os deixaria. O fato de ela ter vivido dois meses a mais do que o esperado, não foi suficiente para criar esperanças vãs para aquela gente.
As pessoas iam embora juntas, porém, solitárias em seus pensamentos. Poucas conversas podiam ser ouvidas. A marcha negra caminhava pelo verde do gramado do cemitério, procurando a saída daquele lugar que lembrava o fim inexorável que espera a todos.
Enquanto a turba continuava sua caminhada fúnebre, três dos convidados para o adeus derradeiro, convidados, pois Charlotte havia feito uma lista, antecipadamente, das pessoas convidadas para seu próprio enterro, permaneciam junto ao túmulo. Os dois homens e a mulher se abraçavam, olhando para a lápide recém fechada.
A mulher chorava copiosamente. Tinha segurado suas lágrimas durante toda cerimônia, porém, agora, sem aquela multidão de rostos desconhecidos chorava sem vergonha, sendo consolada pelos dois homens que a ela estavam abraçados.
O Silêncio reinava. Só era interrompido pelo choro soluçado da mulher. O rapaz de blazer preto a puxou para próximo de si. Encostou o rosto dela em seu peito e a abraçou forte. O outro, de óculos escuros, se contentou em afanar levemente o cabelo da mulher.
Era difícil dar adeus a Charlotte. Era difícil imaginar a vida sem as noites de vinho e poesia em seu apartamento. A mulher chorava desesperadamente e escorregava seu corpo no homem de blazer em direção ao chão. Os dois homens, vendo este desfalecimento desesperado, a seguraram.
“Vamos, é melhor irmos embora. Ficar aqui não trará Charlotte de volta e, além do mais, uma tempestade se aproxima de nós”, disse o homem de blazer, enquanto segurava a mulher. Os três partiram, mas o único que ousou a olhar para trás foi aquele de óculos escuros. Olhou na esperança de rever Charlotte, porém, só encontrou a lápide vazia.
Na caminhada em direção a saída, eles seguiam o exemplo da multidão que já havia feito esse caminho anteriormente permanecendo em silêncio. Os três, passo a passo, caminhando de luto sobre o jardim verde, sem dizer uma palavra, mas com um pensamento em comum: Charlotte.
Ao saírem do cemitério se depararam com a praça, que fica em frente, barulhenta e cheia de gente. Parecia que os três tinham atravessado o portão da vida, voltado à realidade. Os três se entreolharam e foi o homem de óculos escuro quem teve a idéia: “Vamos beber alguma coisa naquele restaurante do outro lado da praça”. Os outros dois, sem dizer nada, apenas balançaram a cabeça concordando.
Recusaram as mesinhas que ficavam no exterior do restaurante, onde jovens bebiam cerveja e os casais namoravam, para acharem um canto escuro em seu interior. Um lugar escuro, a meia luz, no ocaso do sábado, era tudo o que eles precisavam para continuar suas tristezas.
Os três sentaram em silêncio e ali permaneceram. A mulher deixando escorrer algumas lágrimas sobre sua face, mas sem soluçar. O homem de blazer de braços cruzados sobre a mesa. E, o outro, ainda de óculos escuros.
O silêncio só foi quebrado quando o garçom chegou para lhes oferecer o menu. Eles sabiam o que deveriam pedir. Sem pestanejar o homem de óculos escuros, disse: “Nos traga uma garrafa do seu melhor vinho”. Olhando para os outros dois, no lado oposto da mesa, falou: “Tenho certeza que Charlotte gostaria que bebêssemos vinho, sua bebida favorita e, além do mais, é uma forma de lembrarmos-nos de todos os encontros que tivemos em sua casa, regados por vinho e poesia.
O vinho chegou. Os três brindaram “à Charlotte” e degustaram o rubro líquido de Dionísio. O silêncio permanecia soberano entre goles e respirações pesadas.
Após meia hora de silêncio foi a mulher quem decidiu exteriorizar sua angústia: “Sabe o que eu não entendo, por que vocês nunca ficaram juntos? Charlotte lhe amava”, disse para o homem de blazer. “Lembro-me do dia em que estávamos eu e ela em sua casa, tomando vinho e escutando Ella Fitzgerald. Charlotte amava Ella. Era um sábado à noite, íamos sair, porém, ela se sentiu mal por causa da sua doença e decidiu cancelar nosso passeio. Eu estava em casa, pronta para sair quando ela me ligou cancelando. Fiquei triste e preocupada, pensei em ir lá, porém, ela falou que queria dormir, descansar. Já passava da meia-noite, eu estava sem sono, lendo um livro, quando ela me ligou chorando me pedindo para ir a sua casa. Vocês sabem o que eu faria por aquela mulher. Peguei o carro e fui”.
A mulher parou para tomar mais um gole do vinho. O homem de blazer tentou falar algo, porém, a mulher não deixou, levantou a mão indicando que ela ainda não havia terminado. Continuou: “Ao chegar lá a vi chorando, com uma garrafa de vinho aberta e com uma foto sua nas mãos dela. Sentei-me ao seu lado e perguntei o que estava acontecendo. Ela me disse que o amava, sendo que cada vez que olhava para sua foto nas mãos dela, chorava desesperadamente. Eu ainda não a entendia muito bem, quando ela me explicou. Havia cancelado o nosso encontro para sair com você. Fiquei um pouco chateada, mas o estado em que ela se encontrava me deixou preocupada, decidi não esbravejar. Ela me disse que vocês tinham ido à inauguração de um restaurante de um amigo seu e lá, ela havia se declarado para você, declarado todo o amor que sentia. Você a amava, por que recusou seu amor? Por quê? Ela ficou acabada. Chorava copiosamente quando me ligou. Eu realmente não entendo? Eu fiquei com ela a noite toda, ouvindo suas mágoas, bebendo vinho e escutando Ella Fitzgerald. Você a amava, por que recusou seu amor?” A dúvida da mulher virou desespero, ela repetia “por quê?”, “por quê?”, diversas vezes e chorava desconsolada. Os dois homens só observavam.
O homem de blazer estava emocionado, nervoso, angustiado, uma mistura de tudo. Via o desespero daquela mulher e sabia que era amor, sabia o quanto ela amava Charlotte. Ele, pausadamente, disse: “Eu acho que você está enganada”. A mulher se enfureceu e começou a socar-lhe o peito desesperada. O homem a segurou e lhe abraçou forte. Ela chorava desesperada e, se sentindo amparada pelo abraço do amigo, se entregou as lágrimas.
Ele, então, sem desfazer o abraço, continuou: “Você está enganada. Bem... Eu não sei que motivos, Charlotte teria para mentir, mas a história que aconteceu não foi bem essa. Realmente nos encontramos no restaurante de meu amigo, porém, fui eu quem me declarei a ela. Você sabia que eu a amava, se a história que você está contando é verdade, porque eu teria recusado o amor da mulher que mais amei na minha vida. Charlotte sabia disso, porém, nunca tive alguma ação por parte dela, que ultrapassasse a linha da amizade. Nunca fui correspondido neste amor. Quando, em um jantar romântico, eu disse que lhe amava e que queria ficar com ela, mesmo sabendo de sua condição, sua resposta foi que amava outra pessoa. Apesar de amá-la, eu nunca acreditei realmente que Charlotte pudesse amar alguém. Charlotte era uma mulher sensacional, uma mulher que não poderia ser de uma pessoa só. E, quando lhe perguntei a quem amava, foi o seu nome que ela disse”.
A mulher, ao ouvir isso, empurrou o homem para soltar-se daquele abraço. Ela tremia. “Por que você está mentindo? Por quê? Por que você quer me magoar desse jeito?” dizia ela. O homem, reconhecendo o estado em que se encontrava sua amiga, resolveu continuar a história: “Você sabe que eu não teria motivos para mentir, esta é a mais pura verdade. Charlotte me disse que te amava e que, finalmente, havia resolvido assumir este amor que tentou esconder por anos. Ela me disse que, apesar de amar você e saber que este amor era recíproco, não poderia aparecer na sociedade tendo um relacionamento homossexual, isso não seria bom para seus negócios. Porém, com a proximidade do fim de sua vida, havia resolvido viver este amor. Foi isso que aconteceu. Agora, por que ela não te disse a verdade, eu não sei”.
“Ela estava com sua foto na mão, por quê?
“Eu já disse que não sei por que ela não lhe contou a verdade”.
“Ela mentiu para um de nós dois. Por quê?”
“Não sei, mas foi o seu nome o qual ela disse no restaurante”.
“E foi com sua foto nas mãos que ela chorava desesperada”.
O homem de óculos escuro tinha uma outra versão da história. Charlotte havia lhe ligado e, pela descrição dos dois, no mesmo dia, provavelmente, entre o restaurante e a chegada da mulher. Ela havia pedido que fosse a sua casa e que levasse um vinho. Era por volta das dez da noite quando ele chegou à casa de Charlotte. Assim que ele entrou em sua sala, aquela mulher começou a tentar beijá-lo. O homem não sabia o que fazer e logo a empurrou. As lembranças daquele dia eram nítidas em sua cabeça. “O que você está fazendo?” perguntou para Charlotte. “Eu te amo. Eu sei que é tarde para dizer isso, tarde porque eu nunca deveria ter me separado de você e tarde porque estou morrendo, mas é a mais pura verdade. Eu te amo”. O homem ficou atônito, não acreditava no que estava ouvindo. “Charlotte, o que você está dizendo. Achei que tínhamos superado isso há anos. E você sabe que amo minha família, minha mulher e meus filhos. Você sabe. Por que fez isso?” Charlotte pegou o vinho que estava nas mãos daquele homem e disse: “Vamos abrir esse vinho, relaxar e passar a noite juntos. Eu te amo, eu estou morrendo, já é hora de deixar de me enganar e assumir o meu amor. O que tivemos no passado foi tão intenso, tão bom, nunca esqueci aqueles anos”. “Já faz dez anos Charlotte”, disse o homem. “Éramos adolescentes. Muitas coisas mudaram. Agora, eu sou um homem casado, o nosso tempo já passou. Você não é mais do que uma grande amiga”. Charlotte, enlouquecida, voltou a tentar beijá-lo. Ele segurou seus braços, mas ela mesmo assim continuava tentando lhe beijar. Ele a empurrou no sofá e disse: “Charlotte, que merda, o que está havendo com você? Já disse, sou um homem casado, porra! Você está louca? Que merda. Adeus!” e saiu sem olhar para trás.
De volta ao presente e vendo aqueles dois discutirem sobre quem estava com a razão, quem era o verdadeiro amor de Charlotte, ele pensou em toda aquela situação. Ele se questionava o porquê daquela atitude de Charlotte. Havia passado anos e ela nunca tinha dado o menor sinal de que desejasse voltar. Ele agora estava casado e muito feliz. Não sabia se acreditava realmente em Charlotte. Como disse o homem de blazer, ele também desconfiava que Charlotte pudesse amar alguém de verdade. Todo aquele mistério lhe perturbava a alma. Por que havia mentido para ele? Por que havia mentido para os outros pobres coitados que tanto a amavam? O fato era que ele foi o escolhido, o único a ouvir “eu te amo” da própria boca de Charlotte. Ela era uma mulher muito complexa, todos a admiravam, todos a desejavam. Será que ela realmente o amava? Quem sabe? Talvez quisesse apenas descobrir, antes de morrer, como era a sensação de se declarar para alguém e não ser correspondida. E ela sabia que aquele homem amava sua família, amava sua esposa e que sua resposta para todas as tentativas de beijá-lo seria “não”, que todos os “eu te amo” cairiam em ouvidos surdos.
Ela havia lhe plantado uma dúvida que lhe atormentaria pelo resto da vida. Vendo aqueles dois continuarem aquela discussão que não iria levar a nada, ele entendeu e, finalmente, rompeu o silêncio: “Vocês não vêm? Não entendem? Charlotte sempre foi uma mulher misteriosa, sempre esteve cercada de enigmas. Esta mentira, porque se as duas versões são verdadeiras, foi Charlotte quem mentiu, é apenas mais um de seus truques, de seus mistérios que nos atormentarão, enquanto ela descansa em paz. Esta é apenas mais uma maneira dela se manter imortal em nossas vidas. Assim, nunca saberemos quem é seu verdadeiro amor. Nunca saberemos nem mesmo se ela já amou alguém de verdade. Assim, vocês levam a dúvida de serem amados e, junto, o sentimento do ‘se’, pois Charlotte sabia, perfeitamente, assim como nós sabemos que o ‘poderia ter sido’ leva mais da imortalidade do que aquilo foi. Charlotte sempre foi dada a mistérios, este é apenas mais um deles. Nunca podemos desconfiar da engenhosidade daqueles que conhecem a verdade que mais nos assusta: que a morte se aproxima. Nunca podemos desconfiar da engenhosidade daqueles que têm pouco tempo para se tornarem imortais”.

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

CONTO XVIII - MORTOS

Ele sorriu. Fazia anos que não via o rosto dela. Ao pegar um livro na estante da biblioteca, descobriu uma foto velha e amarelada. Sr. Galeão quase chorou de emoção ao ver o retrato da esposa. Sentiu um sopro de vida lhe preenchendo a alma, algo que não sentia há anos. Ao rever o rosto sorridente de sua amada, se deu conta da tragédia evitada: já estava esquecendo suas feições. “Como era lindo seu sorriso”, pensou ele.
Pensou em sua vida desde que ela partiu. Nada. Apenas sangue correndo em seu corpo, sem motivo de correr. Aquele rastro de vida que o fazia querer ser melhor, que o fazia sonhar, sumiu. Era apenas um zumbi, sem vida, sem sonhos e sem função. Os filhos casados, a casa grande, a solidão. O título daquele livro o fez refletir e chorando perguntou a si mesmo: “Se a vida é sonho, estaremos todos mortos?”


CONTO XVIII - MORTOS

Ele sorriu. Fazia anos que não via o rosto dela. Ao pegar um livro na estante da biblioteca, descobriu uma foto velha e amarelada entre suas páginas. Sr. Galeão quase chorou de emoção ao ver o retrato da esposa. Sentiu um sopro de vida lhe preenchendo a alma, algo que não sentia há anos. Ao rever o rosto sorridente de sua amada, se deu conta da tragédia evitada: já estava esquecendo suas feições. “Como era lindo seu sorriso”, pensou ele.
Pensou em sua vida desde que ela partiu. Nada. Apenas sangue correndo em seu corpo, sem motivo de correr. Aquele rastro de vida que o fazia querer ser melhor, que o fazia sonhar, sumiu. Era apenas um zumbi, sem vida, sem sonhos e sem função. Os filhos casados, a casa grande, a solidão. O título daquele livro o fez refletir. Chorando, perguntou a si mesmo: “Se a vida é sonho, estaremos todos mortos?”

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Medo da Eternidade

Não dá, não há possibilidades de escrever algo que preste em época de prova, assim vou postar o que é o conto mais genial que já li, "Medo da Eternidade" da sempre genial Clarice Lispector.
----



Jamais esquecerei o meu aflitivo e dramático contato com a eternidade.
Quando eu era muito pequena ainda não tinha provado chicles e mesmo em Recife falava-se pouco deles. Eu nem sabia bem de que espécie de bala ou bombom se tratava. Mesmo o dinheiro que eu tinha não dava para comprar: com o mesmo dinheiro eu lucraria não sei quantas balas.
Afinal minha irmã juntou dinheiro, comprou e ao sairmos de casa para a escola me explicou:
- Como não acaba? - Parei um instante na rua, perplexa.
- Não acaba nunca, e pronto.
- Eu estava boba: parecia-me ter sido transportada para o reino de histórias de príncipes e fadas. Peguei a pequena pastilha cor-de-rosa que representava o elixir do longo prazer. Examinei-a, quase não podia acreditar no milagre. Eu que, como outras crianças, às vezes tirava da boca uma bala ainda inteira, para chupar depois, só para fazê-la durar mais. E eis-me com aquela coisa cor-de-rosa, de aparência tão inocente, tornando possível o mundo impossível do qual já começara a me dar conta.
- Com delicadeza, terminei afinal pondo o chicle na boca.
- E agora que é que eu faço? - Perguntei para não errar no ritual que certamente deveira haver.
- Agora chupe o chicle para ir gostando do docinho dele, e só depois que passar o gosto você começa a mastigar. E aí mastiga a vida inteira. A menos que você perca, eu já perdi vários.
- Perder a eternidade? Nunca.
O adocicado do chicle era bonzinho, não podia dizer que era ótimo. E, ainda perplexa, encaminhávamo-nos para a escola.
- Acabou-se o docinho. E agora?
- Agora mastigue para sempre.
Assustei-me, não saberia dizer por quê. Comecei a mastigar e em breve tinha na boca aquele puxa-puxa cinzento de borracha que não tinha gosto de nada. Mastigava, mastigava. Mas me sentia contrafeita. Na verdade eu não estava gostando do gosto. E a vantagem de ser bala eterna me enchia de uma espécie de medo, como se tem diante da idéia de eternidade ou de infinito.
Eu não quis confessar que não estava à altura da eternidade. Que só me dava aflição. Enquanto isso, eu mastigava obedientemente, sem parar.
Até que não suportei mais, e, atrevessando o portão da escola, dei um jeito de o chicle mastigado cair no chão de areia.
- Olha só o que me aconteceu! - Disse eu em fingidos espanto e tristeza. - Agora não posso mastigar mais! A bala acabou!
- Já lhe disse - repetiu minha irmã - que ela não acaba nunca. Mas a gente às vezes perde. Até de noite a gente pode ir mastigando, mas para não engolir no sono a gente prega o chicle na cama. Não fique triste, um dia lhe dou outro, e esse você não perderá.
Eu estava envergonhada diante da bondade de minha irmã, envergonhada da mentira que pregara dizendo que o chicle caíra na boca por acaso.
Mas aliviada. Sem o peso da eternidade sobre mim.


LISPECTOR, Clarice. Medo da eternidade. In: A descoberta do mundo. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984. p. 446-8.

terça-feira, 11 de novembro de 2008

CONTO XVII - PRÓXIMAS... TÃO PRÓXIMAS


- Olha vô! Vou entrar na internet para o senhor ver o que é isso que tanto falam.
O jovem sentou-se na frente do computador ansioso para mostrar o mundo onde passava horas. O senhor sentou-se na cama do rapaz e aguardou sem saber muito bem o que lhe esperava.
- Pronto, estou conectado com o mundo, vô, com o mundo. - disse o jovem acentuando bem a frase repetida.
- A internet é uma revolução. Podemos falar com pessoas no Japão, na Argentina, na Irlanda... É uma beleza essa tecnologia. O mundo nunca esteve tão próximo.
O jovem era infatigável nos elogios à rede mundial de computadores.
- E o conhecimento que ela nos dá? Incrível, vô, incrível. Você quer saber uma coisinha é só entrar no Google e pronto, temos centenas de páginas, senão milhares, sobre o assunto que queremos e tudo isso em menos de um segundo”.
“E o Orkut? Vô, você consegue achar várias pessoas, ser amigo delas, saber do que elas gostam, ficar nas comunidades comentando, é demais. Nossa eu tenho quase mil comunidades, é muito legal.
- Ah! O senhor lembra-se do Carlinhos, aquele meu amigo de infância? Então, o achei no Orkut. Não é demais?
O velho, sentado, ficava olhando a empolgação do neto, se sentindo um estrangeiro naquele mundo, sem entender o que era Google, Orkut, comunidade... Mas acreditava que aquilo era uma revolução. Realmente deveria ter mudado a vida de muitas pessoas. Mas, o que aquilo acrescentaria em sua vida? Sua época era outra, época onde o mundo inteiro cabia dentro de uma praça, onde as crianças brincavam soltas como passarinhos, longe das grades dos condomínios. Tempo onde a notícia era criada no boca a boca da cidade, tempo onde o Japão era tão crível quanto os unicórnios, ninguém nunca os tinham visto. O velho pensava nestas coisas, enquanto o jovem continuava a falar sobre a internet.
- Vô, você se lembra das cartas?
- Cartas? Que cartas?
- Aquelas que antigamente as pessoas mandavam umas para as outras?
- Antigamente nada, rapaz, eu mando até hoje.
- Nossa, vô, que coisa mais antiga. Hoje temos um jeito muito melhor de mandar cartas. Além de não dependermos mais do correio, ela chega instantaneamente até a pessoa, chama-se e-mail. Você deveria criar um, todo mundo tem um.
- Para que, meu filho? Eu nem tenho computador em casa.
- Vô, todo mundo tem.
- Mas, eu não preciso. Há coisas que você nunca vai entender. Eu sou de um outro tempo, um tempo onde tínhamos as coisas que precisávamos, afinal...
- Vô, agora dá para baixar até filme na internet. É sério, filmes que ainda nem saíram no cinema. Eu tenho uma porção. É só fazer o download e gravar em uma mídia. Se o senhor quiser, eu te empresto algum.
- Obrigado, Jorginho. Não quero, prefiro ficar com os meus livros.
- Ai, vô, livro é tão chato, tão demorado. Não tenho saco.
- Nossa, vô, olha quem entrou no MSN, minha amiga da Inglaterra. Na verdade, eu to xavecando ela para ver se rola alguma coisa.
- Como assim? Você vai namorar com uma menina da Inglaterra? Sem conhecer?
- Namorar não... É que agora com a Web Cam, bem... Vô, deixa pra lá.
- Eu já não entendi quase nada do que você falou... Orkut, MSN... Ficar sem entender como você faz para namorar uma garota inglesa, não é o problema.
O velho, já um pouco cansado daquela conversa, olhou no relógio e, mesmo faltando ainda quinze minutos para o horário o qual deveria sair, falou:
- Bem, está na hora de eu ir buscar sua avó na aula de piano.
- Mas já, vô? Eu nem te mostrei o Youtube.
- É, meu filho, mas eu preciso ir mesmo. Outro dia você me mostra.
O jovem e o velho se levantaram e foram até o corredor do prédio. Enquanto esperavam o elevador chegar ao andar, o rapaz continuava a apontar as benfeitorias de sua sociedade:
- Hoje o mundo é pequeno, vô. Eu tenho amigos na Inglaterra, no Chile, na Espanha, em Angola... As pessoas estão cada vez mais próximas.
Neste momento o elevador chegou. Dele saiu uma garota loira, meio baixinha, com um sorriso lindo. Ela, educadamente cumprimentou os dois e seguiu para o seu apartamento. Os dois entraram no elevador, e o jovem continuou a falar:
- Não é incrível, vô? Você conectado com uma pessoa do outro lado do mundo? Tão próximo?
O velho como se quisesse mudar de assunto falou:
- Que garota bonita essa que passou, deve ter a sua idade, qual é o nome dela?
- É a vizinha, mas não sei seu nome, nunca conversei com ela.
O velho meio triste respondeu:
- É, meu filho. É impressionante como nos dias de hoje as pessoas estão próximas... Tão próximas.

domingo, 2 de novembro de 2008

CONTO XVI – ESTRANHOS E SEGREDOS


Ela me olhou. Olhou como se olhasse para um cachorro ou para uma árvore qualquer. Olhou-me como se eu não fosse algo que pudesse perturbar sua serenidade. Ela poderia ter olhado para as pessoas na rua, que passavam alheias a nossa troca de olhares, do lado de fora do ônibus em movimento, para a criança que chorava pirracenta, para a mãe que preocupada com a ordem tentava conter este choro, ou para o velho em pé, que esperava uma alma caridosa para lhe ceder o lugar. No entanto, ela me olhou.
Eu, como não sou do tipo que foge de olhares, retribuí a preferência em meio a todas aquelas possibilidades. Olhei para a garota como se enxergasse uma obra de arte, como se houvesse encontrado aquilo que faltava para deixar a minha vida completa, como se quisesse lhe desvendar a alma. Um olhar apertado e profundo, que transpassou seus olhos castanhos e lhe deixou com uma sensação dúbia de incômodo e curiosidade.
Ela, perturbada com o meu olhar de resposta, desviou sua atenção. Voltou-se para a rua que corria do lado de fora daquele transporte. A garota estava sentada no último banco antes da porta, aquele mais alto, de braços dados com um rapaz que deveria ser seu namorado. Eu, espremido em um ônibus lotado, estava de pé, a uns dois, três bancos do casal. Apesar da quantidade de pessoas apertadas como mercadorias, em um transporte coletivo na volta do trabalho, nada atrapalhava nossa troca de olhares, nem mesmo o rapaz que lhe acompanhava e lhe cedia o braço. Este estava dormindo ingenuamente.
Ela continuava olhando para fora, talvez estivesse preocupada com a chuva que ameaçava cair. Eu sabia que tinha lhe plantado uma semente de curiosidade, sabia que quando voltasse seu olhar para dentro do veículo procuraria os meus olhos. Eu estaria ali, esperando o seu olhar.
Ao contrário do que imaginava, ela não me procurou. Talvez soubesse que mesmo sem me olhar, eu mantinha meus olhos sobre ela. A garota de olhos fechados, como se fingisse uma sonolência, deitou sua cabeça no ombro do rapaz que dormia. Ele acordou com o gesto, beijou-lhe a cabeça e voltou a dormir.
Eu não havia desistido, sabia que ela ainda me procuraria, procuraria os meus olhos. Mesmo que houvesse amor entre a garota e o rapaz que dormia inocente, há no ser humano algo instintivo, algo irracional que nos impulsiona a querer ser desejado. O desejo é um combustível altamente explosivo e eu, ali, parado de pé esperando, sabia disso. Eu sabia que o desejo de ser desejado era maior que todo amor, fidelidade ou decência moral que ela poderia ter.
Não precisei esperar muito. Alguns segundos depois daquele sono fingido, ela, ainda encostada no ombro do rapaz, abriu os olhos e me encontrou. A garota incomodada, rapidamente fechou os olhos. Talvez o peso na consciência – o amor, a fidelidade, a moral – a tenha feito fechar os olhos, ou, apenas, não estivesse acostumada a ser olhada daquele jeito por um homem. Seu companheiro dormia.
Eu continuei com o meu jogo, não podia voltar atrás. Eu deveria fazer o que ela esperava de mim. Sem desgrudar meu olhar, um momento sequer, caminhava com meus olhos sobre seus lábios, seu nariz, seus olhos fechados, seu cabelo e sobre seu decote. Ela deveria imaginar que, enquanto ela fingia que dormia, eu tentava desvendar os seus segredos mais íntimos. Era isso o que ela esperava de mim.
Novamente, ela abriu os olhos e me encontrou. A troca de olhares durou por mais tempo. Eu sabia como jogar este jogo e desviei o olhar. Eu precisava fazer ela acreditar que tinha vencido, que eu, por timidez, não havia conseguido encará-la por tanto tempo. Esse desvio proposital transformaria nossa troca de olhares de incômoda e atrevida, em interesse mútuo, em cumplicidade. Esse era um passo que precisava ser dado, eu sabia disso, eu tinha total controle da situação, apesar de ela imaginar que havia vencido.
Agora, seria eu que me deixaria ser observado. Olhei para a janela, para a rua, para as pessoas do lado de fora que tentavam se proteger na chuva que começava a cair e para as pessoas que dentro do ônibus se movimentavam para fechar as janelas. Ela, ainda deitada no ombro do rapaz, me olhava. Esta era uma etapa deste jogo.
Meu celular vibrou. Era uma mensagem da operadora avisando para eu recarregar o crédito, mas eu aproveitei a situação. Enquanto lia a mensagem, abri o maior sorriso que consegui. Olhei para ela, estava de olhos fechados, devia ter ficado decepcionada com a minha atitude. Ao ver a minha felicidade, por causa da mensagem, deve ter percebido que havia outras pessoas em minha vida: uma namorada, um romance, amigos, família; e que ela também tinha pelo menos alguém que estava ali, ao seu lado lhe cedendo o ombro e o braço. Ao pensar nisso, talvez tenha percebido o quanto era infame o nosso jogo, mas eu e ela, tenho certeza disso, sabíamos que não havia acabado.
Eu me virei para olhá-la novamente e não poderia ser mais perfeito. Enquanto eu me virava, ela abriu os olhos. Esse movimento sincronizado a assustou. Ela se levantou bruscamente dos ombros do rapaz e voltou-se, novamente, para a janela, que começava a embaçar por causa da chuva. Desta vez o dorminhoco não acordou.
Ela estava impaciente. Olhava para fora, olhava para mim e olhava para as pessoas dentro do ônibus. Sempre voltava para brindar nossa troca de olhares e me encontrava presente, admirando sua inquietude.
Tivemos novamente uma troca de olhares mais demorada. Agora, eu não a deixaria vencer, foi ela quem desviou. Desviou para olhar para aquele que a acompanhava. Era deslealdade aquilo que fazíamos, a garota olhava para o rapaz ao seu lado, talvez estivesse querendo comparar os dois homens, eu e ele. Era deslealdade porque nunca devemos fazer comparações com alguém dormindo. O ser, por mais belo que seja, sempre parece um animal ao dormir. A boca aberta, a respiração forte, os músculos relaxados, são expressões daquela animalidade inerente aos homens, que tentamos manter escondida sobre o manto da civilização. Nesta guerra, eu era o homem, que a olhava penetrante, em pé, rígido e consciente; ele era o animal, flácido, moribundo e desatento com sua amada. Aquilo... Aquela comparação era desleal, mas não poderia mostrar a ela que, por um momento, havia fraquejado em nosso jogo.
Eu percebia o quanto ela estava impaciente. Balançava as pernas, arrumava o cabelo e olhava para o rapaz ao seu lado, talvez com medo de ser pega no flerte com um estranho. Aquele era o nosso segredo. Um segredo selado por dois desconhecidos. Eu decidi entrar também na brincadeira. Olhava para o relógio de cinco em cinco minutos, movia minha cabeça para todos os lados e voltava a olhar para ela, divertia-me com aquilo. Olhava para o rapaz e olhava para ela, como se quisesse dizer: “se não fosse ele ao seu lado, iria falar com você”.
Era divertido, mas estava na hora de terminar a brincadeira. O meu ponto estava chegando. Dei o sinal e fui caminhando para a porta, pedindo licença para as pessoas apertadas no ônibus. Ao passar por ela a encarei como em um poema baudelairiano: “Não mais te hei de rever senão na eternidade?”. Eu era um passante, ela não sabia nada sobre mim, só lhe restaria o rapaz dormindo ao seu lado. O ônibus parou e eu desci. Ainda deu tempo de trocarmos mais um olhar pela janela, que ela tentava desembaçar passando a mão no vidro, antes que o veículo começasse a andar.
A chuva caía. Apesar de eu ter um guarda-chuva na mala, decidi não abri-lo. Precisava lavar os meus pecados. Era doentio e não era a primeira fez que fazia isso. A chuva talvez me redimisse. A garota era feia, o dorminhoco também. Os dois eram um casal que se completava em sua feiúra. Eu, apesar de não ser um galã, nunca tive problemas com mulheres, sempre saí com garotas belíssimas. Não precisava fazer o que havia feito, mas sentia um prazer enorme em fingir desejar e em ser desejado. Era extremamente prazeroso saber que havia colocado na cabeça daquela garota, que ela podia ser desejada por um homem como eu, que ela merecia algo melhor do que aquele rapaz que dormia ao seu lado. Eu não poderia saber o que aconteceria com aquele casal, pouco me importava, para falar a verdade. Mas tenho certeza que em toda briga dos dois, ela pensaria em mim. Pensaria que merecia algo melhor. Talvez existisse amor entre os dois, talvez estivessem namorando há anos, talvez há poucas semanas, estas são coisas que também nunca saberei, algo que a cidade com sua multidão e seus encontros efêmeros não nos permite conhecer, porém, tenho certeza de uma coisa: ela ainda pensaria em mim.

sábado, 25 de outubro de 2008

CONTO XV - O SOLDADINHO


A Kombi mal virou a esquina de sua rua e ele já começou a sentir a ansiedade lhe invadindo a alma. A pequena alma daqueles que têm seis anos de idade. O automóvel buzinou e apareceu no quintal sua mãe, sorridente como sempre ao esperar o filho chegar da escola.
O menino desceu do carro, deu um beijo rápido na mulher que lhe esperava no portão, lhe entregou a mochila e correu para brincar. Em sua pressa, passou pela cozinha e sentiu o cheiro da comida que estava sendo preparada, era hora do almoço. Deu um oi apressado para sua bisavó, que lhe esperava na sala. A velhinha foi repreensiva: “Vem cá menino, dá um beijo na bisa. Que pressa toda é essa. Vem cá.” O menino foi meio a contragosto, mas foi.
Subiu as escadas do sobrado, saltando de dois em dois degraus para chegar mais rápido ao andar de cima. Ao chegar, virou à esquerda, passou por um corredor: uma porta, duas portas, a terceira era a de seu quarto, a porta estava fechada. Parou com todo o respeito em frente daquilo que lhe separava de seus brinquedos. Antes de entrar e enfrentar a felicidade ingênua do brincar com seus bonecos, todos eles soldados de guerra, equipados com metralhadoras, bazucas e um monte de outras armas que ele nem sabia o nome, fechou os olhos e lembrou-se da noite anterior. Brincou até a hora de dormir, criando guerras, bolando estratégias para derrotar os inimigos do seu esquadrão de heróis, sendo que muitos desses rivais nem mesmo eram “humanos”. Ele havia misturado um monte de bonequinhos diferentes para lutar contra os “super-soldados”, o brinquedo novo e mais legal que já tivera. A ansiedade em seus olhos era latente.
Escorregou seus dedos na maçaneta da porta e a abriu. Não viu nada, parecia que um furacão havia varrido os heróis e os vilões do campo de batalha, nada. Sua cama estava lá, seu armário estava lá, a máquina de costura de sua bisavó, que tinha sido usada na noite anterior como montanha em sua guerra particular, estava lá, mas nenhum dos atores daquele combate se apresentou. Ele entrou meio decepcionado no quarto. Ele sabia o que aquela ausência queria dizer, caminhou, tentando manter a esperança, até sua caixa de brinquedos. Revirou os carrinhos, as espadas, os trenzinhos, e outros objetos que ali estavam, mas não achou o que estava procurando. Ele sabia exatamente o que tinha acontecido.
Dirigiu-se até a cama e se deitou desacreditado. Sentiu-se arrependido: “Eu deveria ter guardado meus brinquedos quando minha mãe falou. Agora o Papai Noel levou tudo embora e só devolverá meus brinquedos quando eu for um bom menino de novo”. Ele sabia que, apesar de não ser dezembro, o bom velhinho nunca parava, estava sempre levando os brinquedos daqueles que se recusam a guardá-los. Ele sabia o que tinha acontecido.
Sua mãe apareceu na porta e o chamou para almoçar: “Vamos descer? O almoço está pronto.” Ele, triste, falou: “Já vou”. A mulher já estava saindo quando escutou o menino chamando: “Mãe... Você viu que o Papai Noel levou os meus brinquedos embora?” “Sério, filho? Que pena. Então é por isso que seu quarto está limpo? Achei que você tivesse subido apressado para arrumá-lo antes que o Papai Noel aparecesse. É, mas pelo visto ele já passou por aqui. Que pena, Guilherme, mas você sabe que é isso que sempre acontece quando você não guarda os seus brinquedos”. “Eu sei”, respondeu o menino. “Agora vá ao banheiro, lave suas mãos e desça para almoçar”. “Está bem, já vou”.
A mulher desceu e começou a aprontar a mesa. O menino ficou, ainda meio desiludido, deitado na cama e olhando para os adesivos colados no teto, em forma de estrelas que brilhavam no escuro. Desanimado, extremamente desanimado, ele não tinha vontade de se levantar, não tinha vontade de comer. Só levantou quando sua mãe lhe gritou do andar de baixo: “Vem almoçar agora, menino”. Ele preferiu não contrariar: “Já vou”. Sentou-se na cama, tirou os sapatos, foi até o armário para apanhar seus chinelos, mas eles não estavam lá. Coçou a cabeça, como se perguntasse a si próprio onde estariam aqueles pares. Olhou pelo quarto e não viu nada. Ajoelhou-se próximo a cama e curvou-se para olhar abaixo desta. Os chinelos estavam lá, mas não foi isso o que mais lhe chamou a atenção. Havia outro objeto embaixo de sua cama que lhe deixou atônito: um dos seus soldadinhos, ali, como se houvesse se escondido do próprio Papai Noel.
Ele se esticou todo em baixo da cama para apanhar aquele objeto. Depois, ajoelhado de frente para cama, ficava encarando aquele brinquedo, tentando entender como este havia escapado da magia do bom velhinho.
Sua mãe lhe ensinara que o Papai Noel voava com o seu trenó mágico para perto das janelas dos meninos bagunceiros e, se a criança não tivesse guardado os seus brinquedos, ele, com sua mágica, recolhia todos os bonecos, carrinhos, jogos, tudo que estivesse espalhado. Só devolvia quando o menino merecesse, novamente.
Porém, aquele soldadinho em suas mãos tinha escapado da magia. Como isso era possível? Não fazia sentido. Ele pensava: “Será que a magia do Papai Noel não é tão boa assim?” “Se ele usasse mágica de verdade, todos os bonequinhos”, inclusive aquele que estava em suas mãos, “deveriam ter sido levados”. O que não aconteceu. Ele sabia que havia algo estranho, mas um novo berro de sua mãe o fez lembrar-se do almoço. Calçou os chinelos e desceu as escadas correndo.
Ao chegar à cozinha, sua mãe anunciou: “Não quero nem saber. Hoje eu fiz bife de fígado e você vai ter que comer.” Ele olhou para aquela carne com desdém e falou: “que merda”. A mãe e a velhinha sentadas à mesa se espantaram com o palavreado da criança. A senhora logo tratou de lhe dar uma bronca: “Que isso menino, onde você aprendeu essa palavra. É muito feio isso que você falou, criança não deve falar essas coisas”. O garoto pediu desculpas, porém, de maneira rebelde, pensou: “é uma merda mesmo”.
Ele não conseguiu almoçar direito, só ficava pensando naquele objeto encontrado embaixo da cama. Ele tentou imaginar explicações. Talvez, Papai Noel descesse do trenó para pegar manualmente os brinquedos. Porém, ele logo desistiu da idéia. Seria impensável o velhinho se ajoelhando no chão para recolher os brinquedos, um por um. Além do mais, sua mãe sempre lhe disse que era através da mágica que ele levava toda a bagunça. Só a magia explicaria, pois, ele deveria ter muitas casas para visitar.
Não quis comer muito e sua mãe logo lhe dispensou da mesa. Voltou ao quarto, porém, sem tanta pressa. Parecia que a cada passo que dava naqueles degraus mais ele se afastava de sua inocência e menos ele conseguia explicar toda aquela situação.
Chegou ao quarto e deitou-se novamente. Com aquele brinquedo na mão, ficava imaginando respostas, nenhuma lhe convencia. Cada vez mais, ele chegava mais perto da única resposta que ele não queria obter. Sempre que duvidava da existência do velhinho, tentava se lembrar dos poucos, porém marcantes, natais vividos. A situação estava cada vez mais crítica.
Ele se levantou decidido a descobrir a verdade. Talvez fosse muito jovem ainda, para saber que se libertar de uma mentira nem sempre é garantia de felicidade. Talvez não soubesse que sua ingenuidade estava em jogo. Se deixasse de acreditar na magia, deixaria de acreditar em tudo aquilo que faz a vida melhor e menos sofrida. Mas ele não sabia disso, não sabia o que estava em jogo.
Procurou pelo quarto mais algum soldadinho. Não achou nada. Vasculhou em baixo da escrivaninha, da máquina de costura de sua bisavó, no meio da caixa dos brinquedos e no meio de suas roupas. Nada, absolutamente nada. Abriu às portas do seu guarda-roupa, na primeira porta, nada, na segunda, nada, foi na terceira onde ele achou algo estranho.
A terceira porta que abriu tinha, na parte alta do guarda-roupa, um saco plástico preto, provavelmente um saco de lixo. Ele nunca tinha visto aquilo antes. A curiosidade lhe corroia a pequena alma.
Foi até a escada verificar se alguém estava a caminho, ninguém. Fechou a porta, guardou o soldadinho no bolso e começou a empurrar a máquina de costura para perto do guarda-roupa. Apesar do peso ele conseguiu realizar a incrível façanha.
Com a máquina perto do armário, ele poderia subir nela e alcançar o saco preto. A dúvida lhe paralisava, como se não tivesse certeza de que quisesse saber o que estava naquela sacola. Ele queria olhar o que estava dentro, mas o receio da mudança lhe ameaçava. Talvez soubesse, apesar da pouca idade, que o volume presente naquele saco mudaria sua vida para sempre, talvez soubesse que nem toda liberdade é garantia de felicidade, ou talvez, apenas estivesse com medo do que iria encontrar lá dentro. Nunca se sabe ao certo o que passa na cabeça das crianças.
Ele tomou coragem. Apoiou-se na máquina e subiu. Andou para ponta, bem para perto do armário e, nas pontinhas do pé, alcançou o saco plástico. Ele caiu em seus braços. O barbante que o fechava, separava dois mundos para aquele o menino.
Com aquele objeto na mão, ainda não sabia se queria abri-lo. Tateou o saco e conseguiu sentir as formas guardadas ali dentro, tinha quase certeza que eram os seus soldadinhos. Assim, resolveu abrir aquela sacola. Desamarrou o barbante e ao olhar para dentro daquele plástico preto, pensou: “nossa, achei meus soldadinhos”.
Estavam todos os soldados lá, inclusive os inimigos daqueles heróis verdes. Ele sentiu uma alegria grandiosa e se lembrou da noite passada, onde ficou brincando de guerra com aqueles pequenos homenzinhos. Estava quase descendo para contar para sua mãe o que havia encontrado e para, enfim, brincar com seus soldadinhos, quando, por um minuto, parou. Hesitante, lembrou-se novamente de sua mãe e pensou: “Talvez, ela ainda queira acreditar no Papai Noel”.
Demorou alguns minutos para que o pequeno interrompesse sua inércia. Colocou a mão no bolso, agarrou firme aquele soldadinho, fruto de toda esta questão, abriu o saco e o jogou lá dentro. Depois, fechou e colocou o plástico preto novamente no lugar. Desceu e empurrou a máquina de costura de sua bisavó para o lugar de origem. Deitou-se na cama e ficou a pensar, tinha deixado o soldadinho verde no saco plástico, tinha sido um bom menino, mas os brinquedos ainda continuavam guardados. Nada aconteceu, tinha descoberto a verdade, mas decidiu não contar a ninguém. Era um segredo muito perigoso.

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

CONTO XIV - IMPERIALISMO?


Eu entrei na sala de aula e todos olharam para mim. A cada passo, a cada marca do chão, mais os olhares me perseguiam e me julgavam. Eu sentia as cabeças virando para trás para acompanhar o meu caminho até a carteira que eu sentava. Tentei não dar bola, mas aquela situação me incomodava deveras, até a professora havia parado a aula para me encaminhar com os olhos. Já não bastasse chegar atrasado ainda tinha que sofrer esta humilhação.
Adolescente passa por cada coisa, desejava com todas as minhas forças ser adulto naquela hora, pois, adultos nunca se abalam com essas coisas e sempre têm respostas para tudo, mas não os jovens... Os adolescentes sofrem.
Sentei-me, tentei não olhar para frente, tentei não encarar ninguém. Peguei o caderno na mochila e fingi que estava preparado para escrever... Preparado, preparado uma ova, quem poderia estar preparado depois de tanta humilhação. A professora se virou e continuou passando lição na lousa, o silêncio permaneceu por alguns minutos, muitos ainda me olhavam, olhavam para os meus pés sujos de lama e para as marcas que sujavam a sala.
Que vergonha! Odiava morar em um bairro pobre, odiava ser pobre, odiava ter que andar na estrada de terra para vir para a escola, estrada esta que virava lama pura quando chovia. Odiava a chuva que havia caído na noite anterior e que deixou pela manhã a estrada enlameada me fazendo passar por essa vergonha. Odiava ser o filho da faxineira e ter bolsa em uma escola particular justamente por este motivo.
Todos ali tinham dinheiro e me olhavam sabendo que eu não o tinha. Uns me encaravam com nojo, “esse pobre, esse bárbaro, esse incivilizado”, outros com pena, “coitado, precisamos ajudá-lo, ele não tem condições de se virar sozinho”. A professora estava de costas passando lição na lousa.
Por mais que a professora se esforçasse ninguém prestava atenção na matéria, eu era a atração. “É melhor eu ficar longe deste menino, ele deve ser perigoso”, eu via nos olhos de uma menina, que usava um sapatinho branco impecável, que inveja.
Comecei a copiar a matéria e tentei esquecer a humilhação. O chão cheio de barro rodeando a minha carteira era uma atração. De tempos em tempos alguém olhava para trás para ver o produto da barbárie, era novo, era exótico, era selvagem, era barro.
O sinal tocou para minha alegria, era a hora do recreio. Esperei todos os alunos saírem. Fingi que procurava alguma coisa na mala e quando todos, inclusive a professora, já haviam saído, me dirigi ao pátio do colégio.
Lá cruzei com a minha mãe fazendo a faxina na escola e limpando a falta de educação daqueles que achavam que sempre haverá alguém para limpar suas sujeiras. Dei um oi tímido, não quis olhar muito em seus olhos, pois ela saberia que estava triste e saberia qual era o motivo. Ela vivia me falando que eu tinha que me orgulhar do lugar de onde vinha e que eu deveria agradecer por ter saúde e por poder estudar em uma escola boa. Ela sempre terminava seu discurso me aconselhando a não dar atenção àqueles meninos. Por isso, falei oi e saí rápido.
Cheguei perto da quadra e todos continuavam a me olhar, só que de maneira diferente. Um dos meninos da sala chegou perto de mim e falou: “Que bom que você chegou, estávamos te esperando para começar o jogo”. Os times foram separados e eu o primeiro a ser escolhido. Todos sabiam da minha habilidade com a bola, na quadra eu era rei, lá aqueles meninos endinheirados se curvavam à minha técnica, lá eu era algo que eles não podiam comprar e lá a periferia era o centro do mundo.
Driblei, lancei, corri. Fiz diversos gols, todos vinham me abraçar quando a rede balançava. Porém, a minha fama acabou com o sinal do fim do recreio.
De volta à aula, de volta aos olhares, eles continuavam os mesmos. Havia dez meninos suados após a partida de futebol, mas as meninas olhavam com olhares recriminadores apenas para mim: “selvagem”.
Olhei para frente e vi um dos meus companheiros de jogo com uma camiseta oficial do Milan, objeto que nunca poderia comprar e pensei: Será que eu era algo que realmente eles nunca poderiam comprar? Não sei. Talvez a periferia seja sempre um produto para a metrópole.

terça-feira, 7 de outubro de 2008

CONTO XIII - O CONTORSIONISTA INVISÍVEL


Todos na rua, a cidade parecia viva. A mãe segurando a criança pela mão esperava o sinal fechar para finalmente atravessar a avenida. Do outro lado, um casal apaixonado aproveitava o passar alucinado dos carros para se beijar. A garota do lado sentia inveja, tinha acabado de levar um fora de um rapaz que ela gostava muito, mas que não queria nada com ela.
A noite já estava alta, deveria ser umas onze horas, alguns se preparavam para o grande espetáculo que aconteceria. Os jovens bebiam. Apesar do frio cortante, preferiram as mesinhas do lado de fora, assim poderiam ver a paisagem, as garotas, além de terem uma melhor vista do grande show. O homem da farmácia fechou a loja para assistir o evento. Ao descer as portas de ferro do estabelecimento, sentiu o frio que caia sobre a cidade e lembrou-se que tinha um casaco do lado de dentro, achou melhor ir buscá-lo, todavia, seria melhor ir rápido, o espetáculo já iria começar, apressou-se.
O vermelho se iluminou no alto da noite. Os carros vendo aquela cor pararam todos em fila, até parecia que estavam estacionando para assistir o tão esperado evento. Com as máquinas paradas, as pessoas atravessaram a avenida. O casal se desgrudou e andou de mãos dadas. A menina invejosa andou mais rápido para fugir do raio daquela felicidade. A mãe soltou a mão da criança para lhe demonstrar que confiava nela para atravessar sozinha. Junto com o resto das pessoas um cão meio aréu seguia o fluxo, talvez soubesse que a noite seria longa, talvez ouvisse o ronco de sua barriga com fome, talvez quisesse apenas chegar ao outro lado.
Um bêbado tropeçava sozinho e ia andando se escorando nas paredes. Viu o homenzinho verde, iluminado, de braços abertos do outro lado da rua e achou que poderia atravessá-la, mas logo o piscar intermitente daquele sinal lhe avisou para esperar um pouco mais. Cambaleante esperava os carros pararem novamente. Logo, algumas pessoas chegaram ao seu lado, todas com um olhar inquiridor. A esposa comentou com o marido: “como pode um homem chegar nesse estado?” O marido indiferente balançou a cabaça e soltou um, “pois é”, extremamente chocho.
Um homem elegante, vestido de terno e gravata, tinha acabado de sair do banco e olhava desconfiado para o resto das pessoas. Ele transparecia seu medo de ser assaltado, transparecia a quantidade de dinheiro que tinham acabado de sacar no banco. Bobagem, o show seria de graça.
O bêbado cambaleou demais e caiu na frente do homem de roupa social, este não o ajudou a se levantar. Não que sustentasse uma ideologia contra bebedeiras em dia de semana, achasse aquela situação deprimente ou fosse mal educado, não, ele não pensava em nada disso, o único movimento involuntário e irracional que conseguiu fazer foi levar a mão no bolso de trás da calça para ver se sua carteira ainda se encontrava lá, talvez aquele homem ébrio tivesse feito isso para furtar, de maneira quase mágica, seu bem mais precioso naquele momento. Mas não, sua carteira ainda estava no bolso e o bêbado ainda estava no chão.
O sinal fechou. Os carros pararam. As pessoas apressadas passavam por cima da ebriedade jogada no chão. Lugar, teria para todas as pessoas, mas talvez a pressa se justificasse pelo desejo de uma boa vista para o espetáculo. Desconhecidos para lá, desconhecidos para cá, uma massa amorfa se movia atravessando a rua, perdidos em seus pensamentos: “se aquele cheque cair antes do dia quinze, estarei perdido”. “Será que estou grávida? Não, não posso estar, Deus me livre”. “Caramba, que gostosa”. “Odeio meu emprego, preciso arrumar outro trabalho, não agüento mais”. “Será que alguém na cidade lê pensamentos? Nossa, que loucura isso que pensei... lógico que não”. “Ela nem sabe, mas eu até pensei em cantar na televisão. Será que consigo?”. Apesar dos pensamentos distintos, talvez todos estivessem se preparando para o evento que ocorreria alí, próximo à agência bancária da esquina, talvez estivessem ansiosos e excitados para ver a apresentação, ou talvez, estivessem apenas querendo chegar em casa o mais rápido possível. Uma pena, o show já estava para começar, o nosso artista já havia chegado.
O menino chegou na esquina e olhou para todos os lados tentando captar as expressões de seu público. Deveria ter uns doze, treze anos, porém, fora desde cedo treinado a fazer esses movimentos quase sobrehumanos, não haveria risco. Com os olhos tentava explicar essas miudezas para as pessoas daquela avenida, não desejava, em hipótese nenhuma, colocar mais preocupações e medos infundados da cabeça delas.
O sinal abriu e os carros partiram. Tristes por perderem o espetáculo que já iria começar? Talvez. Um pequeno público se aglomerava na esquina, embora estivessem de costas para o nosso artista. A essa altura o bêbado já tinha se levantado sozinho e se escorava no poste esperando o sinal fechar novamente.
O público era bom, talvez, tivesse umas dez, doze pessoas alí, paradas esperando o luminoso homenzinho verde do outro lado da rua, porém, o menino ainda estava meio tímido, apesar das mais de quinhentas apresentações feitas. O frio da cidade, talvez, lhe prejudicasse, talvez, a pele gelada por fora, por dentro fosse responsável por aquele friozinho na barriga, peculiar aos momentos prévios de todas as apresentações artísticas. Ele estava tímido e talvez, fosse por isso que tremia tanto.
O sinal fechou. O público foi-se embora, mas o garoto não estava preocupado. Ele conhecia seu ofício, sabia que naquele espaço o público se renovava. Seria até melhor, contemplaria um maior número de pessoas com sua arte.
Respirou fundo e friccionou as mãos nos braços e nas pernas para esquentar os músculos. A ação que iria fazer, não recomendada de forma alguma para pessoas que não tenham esse tipo de treinamento, exigia os músculos aquecidos. Ele, finalmente, tomou coragem e entrou em cena, os carros parados no sinal vermelho já estavam impacientes.
Seu ato havia começado. Ele se escorou na parede e foi deslizando até o chão. Este movimento ajudava a criar todo o clima de suspense envolvido no espetáculo. Ele deitou de lado no chão frio e áspero da calçada e levou em um só tempo os joelhos próximos ao peito. A segunda ação de sua apresentação foi levar o moleton batido que vestia, por cima do joelho, esticando-o quase até os pés. Dentro daquela agasalho, que também servia de cobertor, ele se exprimia, se apertando todo, encolhendo todos os espaços possíveis. Tenho certeza que, se pudesse, se fosse humanente capaz de realizar esta ação, teria esticado a própria pele do peito por cima do joelho, teria entrado para dentro de si para fugir do frio que lhe motivava a realizar tão surpreende contorsão. O menino era um show. Era impressionante o que fazia.
Talvez, os carros parados no sinal fechado não tivessem uma boa visão da apresentação, uma pena. Dentro do Ka vermelho, um casal brigava por motivos banais. Estavam muito tempo sem discutir e precisavam brigar um pouco para acabar com a infelicidade que é ser muito feliz. Dentro do Honda Civic preto não seria possível ver nada, o vidro filmado, quase cem por cento negro, não deixava quem é de fora entrar, talvez essa escuridão também atrapalhasse sua visão para ver o espetáculo. Dentro do Vectra cinza, o motorista só pensava em levar o carro para o depósito para saber quanto faturaria por aquele veículo. Pensava quase alto, “não posso encontrar a polícia, não posso encontrar a polícia”. O jovem, que dirigia o Gol verde metálico, tinha seu show particular dentro do carro. Música alta, aparelho de dvd, toda a tecnologia para não o deixar entediado nem nos sinais vermelhos.
A tecnologia tinha cumprido seu papel, havia destraído aquele jovem. Só percebeu que o sinal abriu quando o Santana branco começou a buzinar atrás dele. O ka, o Honda Civic, o Vectra, o Gol verde metálico, o Santana, e todos os outros carros que estavam parados seguiram seu caminho perdendo a apresentação do pobre menino. Talvez sua apresentação tivesse mais impacto com os transeuntes.
As pessoas começaram a se aglomerar na calçada e o menino lá, firme e forte continuando seu espetáculo. A prostituta se desiquilibrou com o salto alto, por causa de um buraco que havia no chão, e quase caiu, sendo segurada pelo seu cliente, que se aproveitou da ocasião para roçar a mão em seu seio. Os dois jovens, apesar do cansaço do trabalho, conversavam alegres sobre os planos para o fim de semana. Uma mulher aproveitou o sinal fechado para colocar as sacolas pesadas no chão. Havia feito compras no supermercado, o leite e os produtos de limpeza estavam pesados, era melhor descansar as mãos, pois, teria ainda alguns minutos de caminhada até chegar ao metrô. O senhor parecia estar muito cansado, tinha o rosto abatido, tinha idade para ser aposentado, mas pelo uniforme que vestia ainda trabalhava. O cansaço em seu rosto era explícito. O sinal abriu todos saíram apressados, com exceção do senhor que andava quase se arrastando.
No canto daquela esquina, encostado na parede do banco, o menino continuava seu show. Ele parecia uma pedra, era mágico. Estava todo encolhido dentro do seu moleton cinza, sujo e rasgado, porém, era uma pedra que tremia. Mesmo assim, era inacreditável que alguém pudesse apresentar tal performance. Quanto mais tremia, menor ficava. Era como se pudesse se comprimir até desaparecer de verdade, era como se comprimisse até se solidificar em pedra, era impressionante. Os sinais abriam, os sinais fechavam e o menino se comprimindo. Os carros iam, as pessoas também e o menino continuando sua apresentação.
De repente, sua apresentação chegou ao final, chegou à contorsão máxima. Travou seus músculos uns nos outros, como se fossem engregagens de uma máquina que tivesse parado e solidificou-se, parou de tremer, parou de sentir frio. As pessoas nas ruas, com seus casacos pesados tremiam, mas ele não. Talvez tivesse arrancado a própria pele por debaixo do moleton para se cobrir. As pessoas paravam e seguiam, os carros paravam e seguiam e o menino inerte. Teria morrido? Estaria respirando? Esse contorsionista ousava contra perigo. O que será que havia lhe acontecido?
Carros, pessoas, carros, pessoas. Verde, vermelho, verde, vermelho. O público se renovava e ele com toda sua experiência controlando a situação. A noite começou a sumir e o sol surgiu para ver o espetáculo. A luz do poste, que iluminava o nosso artista, se apagou vencida pela clareza do sol. O menino imóvel, inerte, sem tremer. Os minutos finais de seu ato eram preocupante, eram sufocantes. Teria morrido? Venceria a frieza daquela cidade? O público nessa hora da manhã já era mais intenso, alguns correndo para ir para o trabalho, outros correndo para ir estudar, pessoas e carros correndo para cumprir seus compromissos.
Um movimento. O pé havia se mexido, era impressionante. Ele vagarosamente, como se acabasse de acordar de uma noite dormida na rua, esticou os pés que saíam do moletom batido. Espreguiçava-se como se nada tivesse acontecido, como se seus músculos não tivessem se contraídos a noite inteira. Estava vivo, era incrível, era mágico. Sentou-se encostado na parede, passou as mãos nos olhos como se os estivessem limpando e bocejou. Sua boca ficou aberta em um grave bocejo por uns trintas segundos. Abriu os braços devagar e se espreguiçou todo. Talvez este fosse o único jeito de colocar cada músculo, cada osso no seu devido lugar. Respirou o ar matinal da cidade e se levantou. Olhou para um lado e para o outro e saiu de cena, era impressionante. A cidade, talvez, quisesse aplaudi-lo, quisesse saudá-lo, quisesse parabenizá-lo, mas nada disso aconteceu, talvez estivesse sem reação perante àquela apresentação, era fantástico. Talvez... Mas a verdade era que, muito provavelmente, ninguém o tinha visto, todos passaram por cima de seu corpo empedrecido sem perceber sua presença. Era incrível, era inacreditável, era invisível.