sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

CONTO XXII - DENTES-DE-LEÃO


Sara tinha só oito anos quando presenciou algo que marcaria sua vida para sempre. Era um domingo de sol e ela e seu avô brincavam no meio do jardim, sentados na grama, rodeados de flores. A casa do simpático velhinho era enorme e comportava um jardim que dava inveja ao prepotente concreto da cidade. Ele sempre gostava de dizer que era uma casa construída no meio de um jardim e não o contrário, o que é tão comum nos dias hoje.
Não é difícil ver anúncios publicitários onde condomínios tentam vender a paz da natureza como uma de suas qualidades: “Tantos metros quadrados de área natural preservada”. A família bonita, feliz e falsa como toda aquela propaganda, demonstra toda alegria inerente ao contato com a natureza e isso graças aos “tantos metros quadrados de área natural preservada”. Que beleza. Mais há uma pergunta que está implícita, que apenas as pessoas que querem realmente enxergá-la conseguem perceber: “Quantos metros quadrados de área natural foram devastados para a construção do condomínio?” Pois, se há uma parcela preservada, há também uma parcela não-preservada, a qual foi sacrificada para que mais um monte de casas de auto-padrão fossem construídas. Os “tantos metros quadrados de área natural preservada” não são mais do que uma compensação. Compensação esta, que ainda poderia ser oferecida como um atrativo a mais para a venda. Compensação esta, que não era uma ato de benevolência, mas que estava prevista por lei. É impressionante a cara-de-pau de publicitários e homens de negócio, que omitem as perguntas mais importantes para vender seu objeto.
É exatamente por isso que a casa do avô de Sara era importante e fazia inveja ao concreto da cidade. “Uma casa no meio de um jardim”, ele sempre dizia. Em um mundo onde a beleza, a felicidade, o amor, etc. são categorias que podem ser padronizadas e explicadas racionalmente, os homens se tornam insensíveis a tudo que subverta a ordem da racionalidade. Tudo tem que ter uma função. “Para que uma casa no meio de um jardim?”, perguntariam aqueles que acham supérfluo uma árvore plantada no quintal, um canteiro cheio de margaridas, cheio de dentes-de-leão, além de outras flores. A grama encharcada, quando chovia, sujava os sapatos caros das visitas, seria melhor azulejar todo aquele gigantesco quintal. Muitos até aconselhavam o avô de Sara: “Com um quintal desse tamanho você poderia construir uma piscina, aumentar a garagem para que mais carros pudessem ser colocados, entre outras coisas”. Mas isto era supérfluo para o simpático velhinho. O que importava, verdadeiramente, era a natureza englobando aquela casa.
Há lições que aprendemos quando crianças e que ficam guardadas em nosso inconsciente, escondidas em algum lugarzinho de nossa cabeça até o dia em que somos chamados de volta. O que nos parece uma epifania é, na verdade, a cera derretendo em nossas costas depois de tanto tempo hipnotizados pelo sol. As asas que nos pareciam tão seguras, construídas para levantar voou e chegar ao astro prepotente, não são mais do que aquilo que nos tirou os pés do chão. Sara tinha apenas oito anos quando aprendeu uma dessas lições.
Ela e seu avô aproveitavam o domingo de sol sentados no jardim. As brincadeiras se desenrolavam. Brincavam de mal-me-quer bem-me-quer com as margaridas, assopravam os dentes-de-leão que construíam uma neblina de sementes que voam ao vento calmo, rodeando as duas personagens daquela paisagem, deitavam-se ao chão e tentavam descobrir desenhos nas nuvens. Os dois, descalços, afundavam os pés na terra e sentiam a grama entre os dedos. Ficavam olhando em silêncio para o céu azul, sentindo uma leveza a qual Sara, com a ingenuidade da infância, achava que lhe acompanharia por toda a eternidade.
O avô, sentindo uma energia quase que transcendental trazida pelo vento, teve vontade de compartilhar com a neta um ensinamento. “Venha Sara, quero te ensinar uma coisa”. O avô correu na frente e pegou em suas mãos um dente-de-leão. A menina adorava brincar de assoprar as sementes daquela flor e logo se empolgou com a brincadeira. O avô, preocupado que o ensinamento passasse batido pela empolgação da garota, logo falou: “Calma, Sara, agora vamos apenas olhá-lo”. A menina ficou decepcionada, mas compreendeu que o avô tinha algo sério para lhe mostrar.
Os dois se sentaram na grama e o velho levantou a flor para que esta ficasse bem a frente dos olhos da menina e perguntou: “O que você vê?” A menina com sua ingenuidade inerente aos seus oito anos respondeu rapidamente: “Ora, um dente-de-leão”. “Sim, Sara. Que mais? Tente olhar cada sementinha individualmente”, perguntou o velho, percebendo que havia sido muito amplo em sua pergunta. Sara olhou para cada uma daquelas coisinha brancas espetadas na flor e, apesar de todo seu esforço, respondeu: “Não enxergo nada além das sementes”.
O avô se achegou mais perto da menina e sussurrou em seu ouvido: “você pode guardar um segredo?” A menina fez que sim com a cabeça, balançando-a para cima e para baixo rapidamente, curiosa em compartilhar algo secreto. O velho, experiente, sabia que, para que seu ensinamento fosse apreendido, deveria envolver sua história em um ambiente fantástico. A magia sempre foi um caminho para ensinar aqueles que ainda não estavam afetados pela prepotência da racionalidade humana.
“O que você vê não são sementes, são, na verdade, pequenos homenzinhos”, disse o avô. A menina arregalou os olhos estupefata e repetiu sem pensar no que dizia, totalmente de forma mecânica: “pequenos homenzinhos”. O velho achou a atitude da menina uma graça, ela estava completamente hipnotizada com a idéia que ele havia plantado em sua cabeça. Pegou o dente-de-leão das mãos do adulto e começou a olhar aquela flor mais atentamente. “Pequenos homenzinhos?”. Pressionava os olhos tentando enxergar algum detalhe que pudesse comprovar a novidade.
“Sim, cada haste dessa, fincada na planta, é um homenzinho. Não de verdade, lógico, mas de um outro tipo”. A menina continuava tentando achar os detalhes olhando fixamente para a flor. O velho apontou com o dedo e mostrou: “olha, a haste não parece um corpo? Sobre este corpo podemos até ver os seus cabelos brancos, assim como os meus”. Sara iluminou-se, ela havia enxergado os pequenos homenzinhos que seu avô havia lhe falado. Sua alegria era intensa, ela nunca desconfiaria que ali, bem próximo a ela, fincados em uma flor com a qual costumava brincar, havia um mundo paralelo ao dela.
Sara ficou imaginando quantas vezes havia soprado aqueles homenzinhos para longe apenas para se divertir. Sentiu-se culpada. “Vô, quando assopramos as sementes, matamos os homenzinhos?” O avô sorriu com a ingenuidade da menina. Ele teve que pensar um pouco. Não era uma pergunta que ele estava esperando em seu ensinamento, mas acabou usando esta para emendar sua lição. “Bem, sim e não. Quando assopramos as sementes para longe estamos separando os homenzinhos de sua flor-origem, porém, isso é natural. Se nós não assoprarmos, o vento fará isso. Há um momento na vida desses homenzinhos que eles precisam voar. Uma força exterior e muito maior do que eles, os forçará a voar. Assim que acontece”. O velho respirou fundo e iniciou sua lição: “O mesmo acontece com a gente. Aconteceu comigo e acontecerá com você. Você irá crescer e será soprada para longe de sua flor-origem. Vagará pelo mundo atrás daquilo que lhe trará felicidade, sendo que muitas vezes vagará sem sentido, acumulando coisas, ignorando os pequenos e alegres momentos da vida, não respeitando seu corpo, sua mente e seus princípios, tudo para alcançar seus objetivos”. O velho não esperava que a neta entendesse o que estava falando, na verdade, ele estava narrando sua própria juventude e, de certa forma, desejava evitar que Sara seguisse o mesmo caminho. “Você talvez não entenda o que estou falando, mas quero que se lembre, um dia, de nossa conversa”.
A menina não percebera a gravidade da voz do avô, ela ainda estava entretida com a nova descoberta, com os homenzinhos que habitavam aquela flor. “Sara”, a menina voltou a si com o chamado do velho, “assopre o dente-de-leão, faça os homenzinhos voarem”. A menina sorriu e fez o que ordenava o mais velho. O vento que saía de sua boca deu asas àquelas personagens mágicas. Logo se via um redemoinho de sementes girando pelo ar, suspensos pelo sopro de Sara e pela brisa daquela tarde de domingo. Os homenzinhos pareciam perdidos na amplitude do mundo que se abria, depois que as amarras que os prendiam àquela flor tinham sido removidas. Flutuavam, prepotentemente livres.
Sara e seu avô observavam a cena que se passava naquele cenário idílico, presente dentro da cidade que ergue e destrói coisas belas. Assim como, para Sara, os homenzinhos eram percebidos como um mundo paralelo, aquela casa no meio de um jardim se transfigurava em uma São Paulo diferente, quase impossível de se acreditar. Mas eles estavam demasiadamente entretidos com as sementes que voavam ao redor de suas cabeças para pensar nessas coisas.
A menina, sem reconhecer a profundeza da lição de seu avô, arrancou mais duas flores do chão e assoprou, dando liberdade a mais alguns homenzinhos. Alguns pareciam seguros de si e achavam que poderiam racionalmente controlar seu voou, outros pareciam desencantados e se deixavam levar pelo vento dominical. Porém, o que ambos os grupos não percebiam é que haviam perdido a sua unidade. Agora, eram indivíduos soltos pelo mundo. Não eram mais uma flor, eram, apenas, sementes que lutavam para fertilizar o melhor pedaço de terra.
Aqueles que se achavam suficientemente racionais, ficavam flutuando no ar por mais tempo. Eles, antes que pudessem cair em qualquer solo, tentavam projetar o dente-de-leão perfeito. O antigo mundo em que habitavam era contingente demais para eles, qualquer brisa leve, qualquer menina brincando com seu avô, poderia lhes levar para longe, e isso não poderia estar certo. Aqueles homenzinhos desejavam a segurança, um terreno sólido para construir um mundo sólido, onde o acaso não existisse. Eles, tão pouco estavam preocupados com a unidade que se perdera, achavam que cada um era responsável por si mesmo. O contato com a unidade, se é que havia realmente esta unidade, era de responsabilidade de cada homenzinho.
Os outros, que viviam desiludidos com a perda de um mundo coletivo e onde havia algo que lhes desse sentido, vagavam pelo ar desenganados. Aqueles mais racionais tentavam empurrar a todos para a construção do que pensavam ser o dente-de-leão perfeito. Aqueles que eram levados pelo vento e acreditavam que uma brisa ocasional também poderia trazer coisas boas, passaram a ser forçosamente empurrados para um modelo de dente-de-leão construído por aquelas sementes sem sentimentos e amorais.
Porém, a cosmovisão dos homenzinhos, livres das amarras dos dentes-de-leão, passava despercebida para Sara. O que ela podia ver, de fora daquele mundo, era apenas os choques das sementes no ar, a confusão, a desordem, o vento guiando todos aqueles indivíduos. Ela tentava, pensando nas palavras que o seu avô havia dito, que um dia cresceria e também seria soprada, se imaginar no meio daquelas sementes caóticas.

II

Um certo dia, Sara foi soprada para longe. Ela tinha dez anos quando isso aconteceu. Estava na escola quando, no meio da tarde, seu avô veio buscá-la. A menina ficou feliz por sair mais cedo e por ver o avô, porém, a expressão grave daquele senhor fez com que a menina desconfiasse que algo estava errado. O velho se agachou para ficar na mesma altura dos olhos da menina que permanecia de pé, com sua mochila nas mãos. O silêncio foi prolongado. Seu avô, um homem sempre seguro de si, não conseguia achar as palavras para a mensagem que pretendia dizer. “Sara, sua mãe sofreu um acidente de carro e...” As reticências do avô eram demasiadamente auto-explicativas. A menina já estava chorando quando ele acabou a frase, “... faleceu”. A menina correu para os braços do avô e os dois choraram, cúmplices em suas dores.
Uma semana depois, após a missa de sétimo dia, Sara estaria a caminho dos Estados Unidos. Seu pai, um empresário brasileiro que morava em Nova York havia seis anos, desde que se separara da mãe de Sara, veio ao Brasil para buscá-la, apesar dos pedidos indignados do avô para que a menina permanecesse com ele.
Seu pai sempre havia demonstrado o desejo de criar a filha. Ele achava que Lívia, a mãe da garota, não lhe dava uma educação adequada. Desta forma, não houve jeito, Sara teve que ir para os Estados Unidos. Para a menina, a nova vida não foi nada fácil. De uma hora para outra foi obrigada a viver com um estranho, pois, quando seus pais se separaram ela tinha apenas quatro anos e, desde então, só sabia do pai pelos depósitos que sua mãe recebia e presentes enviados de Nova York. A vida nos Estados Unidos lhe pareceu hostil deste o começo: o pai, a língua, os costumes, etc. Seu pai sempre esbravejava: “que absurdo, você tem dez anos e não sabe uma palavra de inglês, sua mãe era uma irresponsável mesmo”.
Roberto, seu pai, logo tratou de resolver essa questão pagando-lhe uma professora particular. Ao final de seis meses, tendo aula todos os dias, a menina estava praticamente fluente. Sara se esforçava ao máximo para chamar a atenção do pai. Ela queria mostrar que era digna de sua atenção. Seu pai era um homem trabalhador, saía de manhã bem cedo, enquanto a menina ainda dormia e voltava já tarde da noite, quando ela já estava deitada. Ele era um dos diretores de uma empresa publicitária americana e dedicava quase que cem por cento de sua vida para o trabalho. Era o que os americanos costumam chamar de workaholic.
Apesar da babá que a acompanhou até os quatorze anos, Sara logo aprendeu a se virar sozinha. Seu pai, sempre ausente, era apenas um patrocinador de suas atividades. Ela preferia não voltar para casa quando a aula terminava - o lar vazio nada lhe acrescentaria - e ficava estudando na biblioteca até tarde da noite. Tornou-se uma viciada nos estudos, suas notas estavam sempre acima de nove. Essa sua atitude era menos uma forma de tentar se adequar ao sucesso do pai, do que uma forma de defesa contra um mundo que lhe parecia hostil. Tornar-se igual a Roberto, seu novo espelho, não era seu objetivo, porém, as atitudes dele faziam com que Sara achasse normal a vida que levava. Correr era uma forma de não encarar o mundo onde vivia. Já dizia o poeta norte-americano Ralph Waldo Emerson: “Quando se patina sobre o gelo fino, a segurança está na nossa velocidade”. Sara se protegia na eficiência. Se fechava no mundo ordenado dos parágrafos, capítulos e pontos finais dos livros que lia. Quanto mais estudava, mais seu futuro lhe parecia seguro. Era sua forma de acreditar que um dia estaria patinando longe do gelo fino. Porém, não percebia que, ao contrário de parar, a tendência era correr cada vez mais rápido. Era escrava da velocidade, acorrentada por sua própria eficiência.
Foi assim que Sara se formou em direito por Harvard. Ela já era, desde os primeiros anos da faculdade, devido sua eficiência quase que sobrenatural, respeitada pelos seus professores e colegas de sala. Estava apenas no segundo ano quando foi convidada a trabalhar em uma grande empresa de advocacia americana, estagiando com um dos mais famosos advogados criminalistas do país. Ela não apenas acompanhava os processos, como também o auxiliava pesquisando profundamente o caso e suas possíveis soluções jurídicas. Todos sabiam que seu caminho já estava traçado. Ela não tinha dúvidas, sentia uma prepotência humilde em relação a isso. Assim que se formasse teria uma sala só sua na empresa e seria uma das grandes neste ramo no país.
Pouco tempo depois de concluída a faculdade, Sara já era conhecida. Havia derrotado no tribunal dezenas de advogados respeitados. Sua carreira decolava na empresa. Tinha apenas 25 anos quando se tornou uma das sócias. Nunca havia perdido um caso. Ela era quase perfeita, era símbolo de vitória certa, era uma das advogadas mais caras do país. Algumas pessoas a odiavam ferozmente. Sara não era ética, ela era eficiente. Não se importava com o crime de seu cliente, se importava com a causa ganha. Ela adorava repetir: “Não me interessa se a pessoa é culpada, me interessa se há provas suficientes para acusá-la”. Tinha o mundo nas mãos. Sara patinava velozmente sobre o gelo fino. Quanto mais rápido ela seguia, mais ela queria desafiar os seus próprios limites. A velocidade era o seu mundo seguro, nele era imbatível, nele o acaso não existia. Tinha completamente sua vida sobre controle.
Porém, um dia o acaso bateu em sua porta. Sara estava advogando em um dos casos mais conturbados dos Estados Unidos. Seu cliente era o filho de um senador que estava sendo acusado de estuprar uma menina de onze anos, filha do caseiro da família em New Hampshire. Esse era um daqueles casos que a mídia costuma acompanhar quase que vinte e quatro horas por dia. Sara era praticamente uma celebridade nacional, ganharia uma fortuna se conseguisse provar a inocência do rapaz. O senador estava lhe pagando montanhas de dinheiro para que livrasse seu filho da cadeia. Um caso desses sujaria sua imagem na política para sempre, seria um desastre para sua família anglo-saxônica branca e protestante. A eficiente advogada estava confiante, era praticamente uma causa ganha. A menina havia esperado dois anos para contar para seus pais o que havia acontecido. Só após a demissão do pai resolveu falar. Para Sara era óbvio: o caseiro havia feito sua filha inventar essa história para se vingar do ex-patrão, e, mesmo que o rapaz fosse culpado, quem conseguiria provar algo dois anos após o crime? Além do mais, a família do senador Stuart sempre foi um exemplo na sociedade e Sara saberia usar isso a seu favor.
No dia do julgamento tudo estava correndo bem. Sara havia conseguido provar para o júri, que o pai da menina não era uma pessoa confiável. Havia descoberto que ele tinha sido preso por roubo, quando tinha vinte anos de idade. “Eu tinha fome. Roubei porque tinha fome”, o caseiro gritava olhando para todos no tribunal. Não interessava, Sara havia provado que ele não era uma pessoa confiável. Do outro lado, Sara mostrou como a família Stuart era respeitada, o quanto participava de atividades beneficentes, etc. Não haveria dúvidas sobre qual família teria crédito. Sua última testemunha seria a menina. A causa estava praticamente ganha, era só fazer a menina se contradizer em sua própria fala.
Sara se levantou e foi em direção a testemunha. Ela caminhava em silêncio pelo tribunal, assim como um Leão que cerca sua presa. Sara pediu para a menina relatar o que havia acontecido segundo “sua versão”. A garota não conseguia pronunciar bem as palavras. Via-se que estava extremamente nervosa, com o pensamento entrecortado e sem sentido. Para Sara, esta atitude era apenas uma prova que a garota estava inventando a história, pois, como ela disse ao júri: “se esta menina realmente tivesse vivido a experiência a qual acusa o meu cliente, não tenho a menor dúvida que se lembraria perfeitamente dos detalhes”.
A garota, talvez por raiva pela falta de crença, talvez por se sentir desafiada, disparou-se a falar. Ela havia sido transportada para o passado e via, desta vez como expectadora, a cena de sua própria violação, a qual descrevia com todos os detalhes. “Era aproximadamente umas dez horas da manhã. Eu varria o quintal da casa a pedido dos meus pais. Eles tinham ido ao supermercado para comprar comida, material de limpeza, entre outras coisas, para receber os patrões, a família do senador Stuart. Então, eu ouvi o barulho de uma buzina e, pensando que eram os meus pais que retornavam do mercado, fui até a entrada para abrir o portão. Chegando lá, percebi que era Mark, o filho do senador, quem chegara. Ele estava sem as chaves. Depois, durante aquela semana, fiquei sabendo que ele não viera para ficar com a família, estava hospedado em outra casa em New Hampshire, talvez de um de seus amigos. Por algum motivo que desconheço, ele resolveu ir até a casa da família Stuart naquela manhã”.
Mark, o acusado, parecia estar incomodado com o relato da menina. Era a primeira vez que os dois se encontravam frente a frente desde o acontecido. Balançava o pé intermitentemente. A garota continuava seu discurso: “deixei ele entrar. Ele estacionou o carro e eu fechei o portão assim que ele passou. Eu continuei varrendo o quintal e ele permaneceu dentro carro. Quase dez minutos tinham-se passado depois que Mark entrou. Como ele ainda permanecia dentro do carro, comecei a ficar preocupada e decidi, então, ver o que estava acontecendo. Cheguei perto do carro e ele estava com as janelas e com os olhos fechados e com a cabeça encostada no banco. Achei que estivesse desmaiado. Bati no vidro da janela e ele abriu os olhos. Devia estar apenas dormindo. Pedi desculpas e saí, porém...”
A menina pareceu hesitar. “Porém” sempre fora uma palavra difícil de se falar. De alguma forma, esta palavra tem o poder de definir vidas que poderiam ter sido guiadas por outros caminhos. Todo “porém” se mostra como o fracasso de uma possibilidade que mudaria o futuro das pessoas. Amores, empregos, fortunas acabam ou começam por causa de um “porém”. No caso da menina, sentada no tribunal, “porém” representava o fim da pureza, da ingenuidade do mundo e, quando falou essa palavra, essa pesada palavra, o que via era a possibilidade de uma vida que podia, e podemos dizer deveria, ter permanecido a mesma. A partir do seu “porém”, ela, sua vida, a vida de sua família, a vida da família Stuart já não seriam mais as mesmas. A partir do seu “porém” seu relato ganharia as feições dramáticas de um teatro hamletiano. A vida caminhava de forma normal, “...porém, ele abriu a porta do carro enquanto eu passava e me puxou para dentro do veículo. Não entendi o que estava acontecendo. Ele enfiou a mão no meu short...” A menina olhava para baixo e fechava os olhos como se pudesse se cegar das imagens que passam em sua mente. Todos no tribunal puderam ver quando, ainda de olhos fechados, a garota derramou suas primeiras lágrimas. “...ele enfiou uma mão no meu short, enquanto... com a outra tampava a minha boca. O máximo que eu podia fazer era gritar um grito mudo, abafado pela mão de Mark. Sentia sua respiração, seu bafo alcoólico sobre o meu rosto.” De repente a garota parou, desatou-se a chorar. Por mais que ela tentasse continuar não conseguia, o que era lágrimas tinha virado desespero, chorava desesperadamente. Sara, fria, controlada como sempre, permanecia em pé em frente da testemunha, confiante na vitória. Ela sabia, o juiz sabia, o júri sabia que nesse mundo não havia espaço para sentimentos. Aquilo era, para Sara, uma ciência quase exata. Não havia acaso, estava tudo sobre controle. Ela havia estudado o caso, havia descoberto os antecedentes do pai da garota e, além do mais, não havia provas suficientes que o crime havia acontecido. Era uma causa ganha. Porém, novamente um porém apareceu para mudar a vida de alguém nesta história, o acaso lhe surpreendeu. A retórica engasgada da garota foi suficiente para libertar as paixões do acusado, mover seus afetos, comovê-lo. Mark, o rapaz acusado, vendo a garota chorando, de maneira inexplicável, se emocionou e disse em alto e bom som no tribunal, enquanto deixava cair suas primeiras lágrimas, para que todos ouvissem: “Eu sou culpado, eu sou culpado, confesso. Eu a estuprei...” Um reboliço atingiu todas as pessoas ali presentes, quase ninguém ouviu o arrependimento de Mark: “...perdão, eu sou um monstro. Eu estava embriagado... eu sou um monstro.” É impossível saber, com certeza, o motivo desta ação. Por que o rapaz teria se confessado? Essa era uma pergunta a qual Sara, parada e boquiaberta no centro do tribunal, também havia feito a si mesma. Ela havia perdido, ela se sentia perdida.

III

Novamente Sara foi soprada para longe. Seu mundo perfeito havia desmoronado. Ela não seria culpada pelo rapaz ter confessado, mas o gosto da derrota era amargo demais para ela. Sara não conseguia entender por que Mark havia se declarado culpado, a causa estava praticamente ganha. Era como se a justiça, feita naquela tribunal, tivesse sido injusta com a advogada. Depois de tanto trabalho, ela não merecia perder.
Só quem já perdeu algo que dava sentido a sua vida, poderia saber o que Sara estava passando. A eficiência era o fio condutor de sua narrativa, sem ela sua personagem não teria vida. Depois da derrota para o acaso, Sara retornou a sua casa e lá ficou. Não foi trabalhar no dia seguinte, nem no posterior. Um mal-estar tremendo lhe invadia a alma. Não tinha forças para nada. Sentia-se como se a vida inteira se transformasse em um engano. Sentia como se a eternidade houvesse lhe sido roubada.
Sara passou a vida procurando a perfeição em seu trabalho e, por isso, se afastou dos amigos, da família e das sensações puras da vida. A derrota em obter a perfeição era como se sua vida deixasse de ter sentido. Jogada no sofá da sala, ela só pensava na morte. Seus pensamentos corriam mórbidos pelo apartamento; a janela, as facas na cozinha, o gás, eram possibilidades. A morte pode parecer uma atitude extrema para aqueles que estão de fora de uma situação de desamparo, mas era para ela uma ação heróica, uma questão de honra. Assim como um samurai, que tira sua vida após a derrota, Sara pensava na morte, porque sentia que havia fracassado em sua missão, uma missão imposta por regras feitas por desconhecidos. Sua vida tinha o sabor de uma promessa não cumprida.
O conforto de seu apartamento havia se transformado em uma desconfortável prisão criada por ela mesma. Sara sentia o peso de dedos invisíveis lhe apontando as falhas. O gosto da derrota tinha o sabor das águas poluídas por absinto. O cheiro fétido de seu corpo, sem banho a uma semana, lhe indicava uma decomposição prematura, física e emocional. As vozes que pareciam gritar em seus ouvidos: “loser”; lhe causavam gélidos arrepios. Os olhos petrificados esperavam a coragem de um Édipo para tornarem-se cegos. O peso descomunal do mundo caía-lhe sobre as costa. O único refúgio que via para si, era a morte.
Sara havia seguido as regras, havia seguido o plano deles, o plano de todos aqueles que lhe mostraram um modelo a seguir para atingir a felicidade. Seu pai seguia o modelo, ela seguiu o modelo. Sara não tinha amigos, suas relações eram estreitamente profissionais, mas tinha o sucesso que solidificaria sua felicidade. Tinha um apartamento em um zona requintada da cidade, um carro de luxo, era sócia de uma das maiores empresas de advocacia do país, tinha dinheiro sobrando no banco. Mas o impulso da morte que sentia naquele momento, fugia do que os “planejadores” chamariam de felicidade.
Toda sua vida lhe parecia um grande engano, como se a velocidade deixasse de fazer sentido, como se lhe houvessem omitido algo importante, como se as regras houvessem sido mudadas durante a partida. Uma promessa não cumprida que lhe jogou no sofá desejando a morte.
Ela se levantou e foi até a cozinha. Olhou as facas e o fogão que lhe proveria o gás, mas não era isso que desejava. Sara precisava de algo sem volta. Não queria começar a passar mal e sentir necessidade de desligar o gás, ou cortar os pulsos e chamar o socorro. A morte deveria ser certa. Talvez, em sua própria morte, ela encontrasse algo que lhe tirasse no mar de incertezas em que estava afundada.
De longe, ainda da cozinha, encarou a janela da sala como um condenado que encara seu executor. Resignada de seu crime, foi caminhando até o objeto que lhe traria a paz. A cada passo que dava, ouvia sua sentença: “A ré é culpada por ter falhado; culpada por deixar seu mundo desmoronar; culpada por deixar escapar por entre seus dedos a eternidade planejada a priori; culpada por falhar em metas auto-impostas, como nunca perder um caso; culpada por decepcionar todos aqueles que esperam a perfeição; culpada por perder; culpada por se sentir infeliz; culpada por não ter ninguém para chorar por ela depois de deixar a vida; culpada; culpada; culpada; e, assim sendo, a sentença que lhe cabe é a morte”. Sara fazia seu próprio julgamento. Não existiam juízes, ela mesma empunhava o martelo que era batido a cada passo em direção à janela.
Sara abriu as cortinas e, olhando para baixo, avistou a avenida que corria em frente a seu prédio. A janela lhe parecia a saída mais certa de uma vida que já não fazia mais sentido. Ela não pensava na dor que sentiria quando seu corpo atingisse o chão, pensava no estardalhaço que a morte caindo do céu poderia causar. Não queria chamar atenção para si. Não queria que seu corpo sem vida, exposto e sem defesa, fosse utilizado como exemplo de fracasso. Odiaria que a sacralidade da morte – da sua morte - fosse profanada por uma mãe que, puxando uma filha horrorizada pelas mãos, apontaria o dedo inquisidor para a massa de pele, osso, sangue e asfalto; morta, ali no chão, para ensinar-lhe algo: “Olha, filha, esse é o destino dos fracassados. Por isso, você tem que estudar, trabalhar, enriquecer o máximo que conseguir. Faça seu destino para não acabar assim”. Sara odiaria a idéia que o seu “não-ser”, fosse usado como exemplo “do que não ser”.
“Como uma das maiores advogadas criminalistas do país não tem um arma?”, pensava Sara. Ela adoraria ter um revólver para resolver seus problemas sem afetar ninguém. Até pensou em postergar o fim de sua vida, talvez fosse melhor planejar com mais calma sua própria morte: comprar uma arma, balas e um silenciador. Assim, poderia morrer sozinha e sem estardalhaço; só o barulho seco da bala sendo cravada no céu de sua boca. Silenciosa, rápida e sem alarde, era dessa forma que desejava a morte.
“Uma vida de sucesso transformar-se-ia em tragédia por uma simples derrota?”, alguns poderiam pensar, porém, para Sara, as coisas não eram tão simples. Para quem aposta alto, toda perda é grandiosa. Se ela fosse uma viciada em jogos, com certeza seria uma daquelas jogadoras que apostam todas as suas fichas de uma vez só, em um único número. Sara guiou sua vida como uma grande guerra, um verdadeiro Blitzkrieg, rápida e brutal. Derrotava quem quer que lhe aparecesse na frente e impedisse seus planos. Ou conquistava o mundo, ou se afundava no inferno. Tudo ou nada. Perder uma batalha, era perder a guerra, perder o sentido da luta. Por isso estava parada em frente aquela janela.
Apesar do revólver ser uma idéia melhor do que saltar do oitavo andar de um prédio, Sara não queria esperar mais. “O que adiantou eu tanto planejar a minha vida?”, pensava ela, enquanto esconjurava toda aquela situação. “O que adiantará eu planejar a minha morte? Nada”. Estava decidida a morrer. Se o fim era certo, o que lhe interessaria os meios? O acaso já havia brincado demasiadamente com a pobre moça, ela queria ser tomada, novamente, com sua própria morte, pela sensação de possuir o controle da situação. Prolongar sua vida era dar espaço para a contingência.
Sara abriu a janela. O som que antes era abafado pelo vidro, agora entrava caótico dentro de sua sala. A cacofonia da cidade lhe parecia o canto das sereias chamando os marinheiros para a morte. O vento forte encharcava o cômodo, esvoaçava suas roupas e desgrenhava seu cabelo. Os documentos do processo, objetos de tanto estudo, pousados sobre uma das mesas da sala, sairiam voando não fossem os pesados pesos de papel que os seguravam. Sara, pela primeira vez depois do julgamento, achou graça. Sorriu timidamente ao ver os documentos se batendo entre si, impulsionados pelo vento; pareciam desesperados procurando a liberdade. Sara, sem se preocupar com a importância daqueles documentos, resolveu libertá-los. Depois de morta, quem a culparia pela bagunça em seu apartamento?
Como uma menina que desconhece as conseqüências de seus atos, ou, que conhece, mas se arrisca em levar bronca pela simples brincadeira, Sara foi caminhando na ponta dos pés, parou em frente a mesa e levantou o primeiro peso de papel. “Ops”, deixou escapar com falsa surpresa. Os documentos saíram voando se espalhando pela sala inteira. Cada vez que levantava um dos pesos de papel, repetia o seu “ops” maroto. Logo, ela estava rodeada por papéis que voavam em torno dela. Aquela multidão de documentos se batendo no ar, lhe jogou, sem piedade, para o passado. Era a cera derretendo em suas costas.
Como um Hermes que volta ao chão com as asas descoladas, Sara despencou do céu para aquela tarde de domingo que brincava com seu avô. “Toda grande queda, antes do solo, nos trás a falsa impressão do voou”, Sara finalmente havia entendido o que seu avô havia lhe dito vinte anos atrás. “Veja, minha neta, como esses homenzinhos parecem perdidos. Veja como permanecem no ar, lutando contra o chão, contra uma realidade a qual não podem fugir. Por mais que eles fujam disso, em algum momento, uma brisa ou um sopro lhes levará para baixo e, durante o declínio, ainda terão a ilusão de estarem voando. O voou, assim como a felicidade, a riqueza, os amores, etc. são dependentes do vento, de uma brisa que os mantenha no ar”. A Sara, vinte anos mais nova, olhava para os homenzinhos sem entender muito bem o que seu avô dizia; a Sara mais velha, sorvia aqueles ensinamentos como se recuperasse a própria humanidade.
Passado e futuro corriam juntos, o tempo havia deixado de existir. Aquela mulher que pensava na morte, agora estava entregue ao redemoinho de papéis e sementes que a rodeava, suspensos no ar enquanto houvesse vento. Ela mesma percebia, agora, o quanto havia voado, o quanto tentou se manter no ar. Na sua ânsia por velocidade, nem percebeu o declínio, a queda e, quando a brisa acabou, o chão.
Sara dividia o mesmo tempo e o mesmo espaço com sua jovem personalidade. O apartamento em Nova York era também o jardim de seu avô. Ela sentia a grama que havia brotado no piso de sua sala. Com os pés descalços, ela afundava seus dedos no gramado que havia surgido naquele cômodo, sorrindo para as outras duas personagens.
Durante sua vida, Sara quis obter a perfeição. Esta era, para ela, a forma de conseguir a eternidade. Todos se lembrariam dela: “a maior advogada”, “aquela que nunca perdeu uma causa”, “aquela que publicou os maiores livros sobre direito”; além de toda riqueza e poder que este reconhecimento lhe traria. Ela tentou construir a vida perfeita. Só o que precisava fazer era seguir o plano que havia traçado, porém - novamente esta palavra - algo mudou em sua vida. Como um músico que não toca sem a partitura, Sara não viu concerto para sua vida, sem o plano. Desconsertada, desejou a morte. A liberdade dos papéis que voavam pela sala, era sua própria liberdade. Sara havia se libertado de uma eternidade insuportável e tirânica, do peso de uma vida repetida dia após dia. Deitada naquele gramado que havia surgido em sua própria sala, perdida no tempo e no espaço, rodeada por papéis e sementes de dente-de-leão, acompanhada da infância de si mesma e da sabedoria de seu avô, Sara percebeu que a fugacidade daquele momento era a coisa mais eterna que ela poderia ter, pois todo infinito é instantâneo. Um sorriso, um abraço, um ensinamento, uma alegria, uma descoberta, são sensações que nem mesmo o mais poderoso dos homens pode retirar de você, sensações que impregnam o nosso corpo quando são vividas com intensidade verdadeira. Tudo que é eterno caminha conosco e a verdadeira eternidade é leve como uma pluma.