domingo, 31 de agosto de 2008

Conto IX - Gomes e o Pássaro


Urrou, parecia que tinha devorado um boi inteiro. Não comia tão bem assim desde o Natal passado, passado na casa de Sinhô Fernandes, quando o dono da fazenda chamara todos os seus empregados para participarem da ceia e comemorarem a boa colheita. Sua respiração era ofegante, nunca vira tanta fartura, sorria e arregalava-se na cadeira batendo no bucho cheio de orgulho.
Procurou suas crianças no meio da festança, viu que estavam as três e mais algumas outras a infernizar o pároco, que insistentemente tentava explicar a elas algumas histórias bíblicas. Riu da situação, se nem mesmo ele entendia a linguagem difícil dos clérigos e dos homens estudados da cidades, o que seria das pobres crianças.
Rivaldo, o filho mais novo, veio correndo até ele com cara de novidade: “Pai, o pároco nos disse que as pessoas boas quando morrem vão para o céu, é verdade?” Normalmente Gomes passaria as questões religiosas para serem respondidas por sua esposa, afinal, era ela quem freqüentava a missa todos os domingos sem pestanejar, mas sentiu-se útil, sentiu-se importante e poderia exercer o seu papel de pai explicando ao pequeno as coisas que sabia, essa era uma delas. “Sim moleque, quando a morte chegar se formos bons vamos para o céu.” Falou ele um pouco irritado e até com um ar prepotente de quem zombava da ignorância do próprio filho.
O filho irradiou-se e não conteve uma segunda pergunta: “Pai, todos os pássaros, então, são pessoas boas? Até mesmo os urubus?” Gomes sentiu o peso da dúvida, lamentava-se por não ter mandado o moleque ir tratar com a mãe já na primeira pergunta. Sabia que as pessoas boas vão para o céu, mas será que virariam pássaros? Nunca tinha ouvido falar disso, mas o filho plantou-lhe a dúvida. Não era grande freqüentador das missas e das poucas que ia, quase sempre sentava no fundo e acabava cochilando. Irritado, levantou-se da mesa e bradou: “Se arreda daqui moleque.” As três crianças, Rivaldo e as outras duas que observavam o colóquio, saíram apressadamente com medo do pai.
Gomes resolveu caminhar para livrar-se do mal causado pela abundância de comida. Andou, andou e foi se assentar na beira do rio. Em paz, olhando o sol refletido nas águas claras e quase raras do rio que não via chuva a meses, voltou-se a pergunta do filho: “Será que os pássaros eram mesmo pessoas boas que tinham morrido?” Não sabia.
Arregalou-se e adormeceu embaixo de uma árvore seca e já quase sem folha. Sonhou com os filhos perguntando coisas que nunca tinha ouvido falar, sonhou com pessoas boas voando com asas dadas por Deus, como anjos. Viu sua mulher, seus três filhos, o pároco, Sinhô Fernandes e muitas outras pessoas da redondeza, todas voavam com graça. Sonhou com a comilança e que era dono de grande fazenda, poderia comer aquela quantidade de comida sempre que quisesse. Sonhou, sonhou.
Já quase no ocaso, acordou. Viu que um pássaro velava o seu sono. Sentiu-se cúmplice da ave, os dois se entreolharam por alguns instante e relembrou-se da pergunta do filho. Lembrou-se de sua mãe, que como o pássaro estava sempre presente em sua cama ao dormir e antes de acordar. Pensou que o filho pudesse estar certo. Girou de lado e ajeitou-se de forma respeitosa, de joelhos em frente ao pássaro, com lágrima aos olhos falou com voz entrecortada: “Se for a senhora, mãe, me dê a sua benção.” A ave voou e posou em sua mão, Gomes a levantou a altura dos olhos e os dois se olharam permanecendo assim em um momento de prece, não sabia nenhuma das rezas que eram ensinadas na Igreja, mesmo assim, com as mais bonitas e poucas palavras que conhecia agradeceu a Deus por aquele momento. O pássaro voou para o horizonte.
Levantou-se e respirou fundo, achara a resposta do filho. Não importava mais o que o pároco ou os homens estudados da cidade diriam, para Gomes todos as pessoas boas virariam pássaros e voariam livres pelo céu azul.

domingo, 24 de agosto de 2008

Conto VIII - V'ela


Ela tateou o quarto no escuro. Acordou, mas parecia ainda estar em um sonho. Escuridão total, Treva. Procurou o abajur, ele não acendeu. Olhou para o rádio relógio, desligado. Parecia que tinha acabado a luz. Suas mãos percorriam o criado-mudo, conhecia o que lhe esperava naquele tatear: o abajur, o rádio-relógio, o porta-retrato, sem foto, detalhe que não era percebido naquela escuridão. De repente, sentiu um objeto diferente, não deveria estar ali. Bateu sem querer em um copo que com a mão que tateava foi jogado ao chão. Barulho. Cacos espalhados pelo chão do quarto escuro. Lembrou-se do celular, sabia que este deveria estar no criado-mudo, depois de tatear as cegas por alguns segundos, achou o desejado objeto, precisava de alguma luz, tentou ligá-lo, nada. Na treva, onde há igualdade seja de olhos fechados ou abertos, ficou parada pensando.
Fechou os olhos tentando dormir novamente, nada. Abriu os olhos tentando enxergar algo, negro. Parece que até a noite estava contra ela, a noite escura e sem lua, sem estrelas, nada apenas a escuridão. Parecia que os anjos haviam tocado a quarta trompeta do apocalipse. A noite estava mais escura do que costumava ser. Precisava de alguma luz.
Resolveu levantar-se. Dor, um grito mudo, sangue escorrendo pelo seus pés, esqueceu-se dos cacos de vidros espalhados pelo chão, lembrou-se quando um, sem misericórdia, rasgou seu pé direito. Colocou a mão no pé, sabia que estava sangrando pela úmida viscosidade do sangue. O pé esquerdo, que se salvara do acidente, procurou mais cacos e empurrou-os calmamente para debaixo da cama.
Sabia que tinha que levantar, agora era necessidade. Deveria fazer um curativo em seu pé. Levantou-se. Tateou apoiada no armário até a porta. Lembrou-se do interruptor, com um fio de esperança tentou ligar a luz, nada. Só o barulho seco da mudança de posição. Ela fez esse movimento várias vezes, ligou e desligou o interruptor infinitas vezes, por um lado por causa da esperança da claridade, e por outro para maldizer o objeto naquele momento sem utilidade.
Tateou a porta, achou a maçaneta, abriu. Surpresa, ouviu vozes ao fundo, achou que eram ladrões. Já imaginou que tinham cortado a energia para assaltar a casa. Desesperou-se. Pensou em voltar para a cama e se esconder, mas precisava fazer um curativo em seu pé. Se ela não via ninguém, os ladrões também não veriam. Respirou fundo e continuou no tatear, sabia que bem em frente a sua porta estaria a parede do estreito corredor, andou até achá-la, nada. Deu mais de dez passos e nada de trombar com a parede que deveria estar a no máximo dois. Não poderia ser, será que não estava em sua casa? Tinha certeza que estava. As vozes ficavam cada vez mais altas. Onde estaria? Quem seriam estas pessoas?
Música, ouviu uma canção melodiosa e sofrida. Ouvia o acompanhar dos instrumentos. Timbres, acordes, melodias e pratos, aquilo tudo estava tão estranho que nem se deu conta que havia energia elétrica para aquela música. Continuou a andar, mais dez passos e a parede não chegava. As vozes ficavam cada vez mais fortes, as pessoas riam, falavam alto, estavam felizes e ela não enxergava nada.
“Vira, vira, vira”. “Vira, vira, Vira, virou”. Algumas das vozes gritavam isso, alguém deveria estar bebendo, quem? Já não tentava explicar o que lhe estava acontecendo, com certeza não estava em casa. De repente viu uma luz. Fogo, luz de velas. Andou, mesmo mancando com o pé machucado e que deixava marcas de sangue pelo chão, rápido até aquele fogo. Sentia que neste caminho ia esbarrando em outras pessoas, as vozes, mas não queria saber, não queria explicar, precisa achar aquela luz. As vozes estavam felizes, tranquilas e ébrias. Estava odiando tudo aquilo, odiava se sentir perdida, odiava se sentir sozinha.
Quanto mais perto chegava da luz, mais perto se perguntava se queria ver mesmo. As vezes cegar-se é melhor do que abrir os olhos. Decidiu enfrentar a luz. Um homem segurava uma vela, ela o conhecia, ele o ajudaria. Chegou para lhe pedir socorro, mas não aguentou olhar nos seus olhos, assoprou a vela para que ela apagasse. Preferia a treva do que olhar novamente para aquele olhar. Não aguentou o que viu. Outra luz se acendeu. Novos olhos, os conhecia também, outro homem com lágrimas nos olhos, outro assopro. Não conseguia encará-los.
De repente a treva se iluminou, a luz saia dos diversos olhares que apontavam para a nossa personagem. Não conseguia manter a cabeça erguida, parecia que aqueles olhos lhe cobravam alguma coisa, talvez confiança, talvez gostariam de ouvir súplicas e arrependimento, talvez apenas lágrimas verdadeiras de quem errou. Ela não daria isso aqueles olhos, nunca. Ao invés disso, xingou e esbravejou, “seus filhos da puta, deixem-me viver a minha vida”. Não importava o quanto xingava, não conseguia encará-los. Vítima, se sentia vítima daqueles olhos acusadores.
Por um átimo fez-se luz. Viu as pessoas em volta, felizes, sem culpa, sem peso na consciência, nem um pouco preocupadas com a falta de luz, algumas ainda viravam doses de tequila. O pouco que viu antes de voltar as trevas era diferente do que sentia na escuridão. Com as luzes acesas os olhos estavam despreocupados, conversando entre si, alguns se olhando hipnotizados desejando um beijo, alguns com um ébrio brilho, alguns sérios de atenção, alguns lagrimejando de tanto rir da última piada contada, na treva, novamente os olhos apontavam para ela, inquisidores. Não sabia o que estava acontecendo, se aquilo era um sonho, desejava acordar, tinha medo de não ser, e se fosse sua vida... o que faria? Xingou mais e mais aqueles olhares, tinham pena, choravam por ela. Ela não conseguia encará-los, fechou os olhos, apertando-os fortemente, como em uma prece, pediu para eles irem embora.
Ao fazer o pedido as vozes se calaram. Um alívio. Ainda de olhos fechados desejava que aqueles olhares inquisidores também tivessem partido, estava com medo de enxergar, “por favor”, pediu. Abriu os olhos, ainda estava escuro, mas não via nada, apenas trevas, todos tinham ido embora. Era insano tentar entender toda aquela situação. Fechou os olhos e suspirou cansada, abertos ou fechados, tudo era escuridão, não fazia diferença naquele momento.
Ao tentar enxergar alguma luz novamente, para sua sorte, viu um olhar acolhedor, que lhe entendia, que lhe compreendia, “ufa, alguem para me ajudar”, pensou ela. Andou em direção àqueles olhos, parecia não chegar nunca, parecia hipnotizá-la. Mais de duzentos passos foram dados até estar próxima daquele olhar, tateou no escuro e percebeu que era uma mulher, segurava uma vela na mão esquerda e um isqueiro na direita. Sentiu que a outra lhe dava aqueles objetos, como se a decisão de acender a vela não dependesse mais de si, mas sim, daquela que tanto procurava a luz. Recebeu com agrado e, por mais que sentisse medo da luz, acendeu o pavio. Por um instante sua vida passou diante dos seus olhos que piscavam freneticamente, a última imagem que viu foi o rosto da mulher que lhe entregou a vela. A outra era si própria, via a se mesmo, e como alguém que mira dentro dos olhos da Medusa, tornou-se pedra, ali, parada em pé, segurando a vela com a mão esquerda e o isqueiro com a direita, pedra.
Não morreu. Apesar de não poder se mexer e só enxergar aquelas mesmas trevas de antes, ainda estava consciente. Ouviu quando a mulher foi embora, seu salto alto batia na madeira do piso. Entendeu que a treva era ela mesma, os olhos que via, diferentes daqueles vistos com a luz acesa, eram os olhos que sua consciência exigia. Descobriu onde estava, não estava no seu quarto, na sua casa, nem em outro lugar qualquer conhecido, estava dentro de si mesma, sem limites, sem espaço e sem tempo, era apenas o verbo no infinitivo: Ser.
Poucas pessoas estiveram onde ela estava, poucas pessoas olharam o que ela olhou, poucos olharam para si próprio sem o reflexo de um espelho, e por isso ela virou pedra. Para viver, somos convidados a olharmos, todos os dias, para nós mesmos refletidos, assim a vida se faz, assim Perseu venceu a Medusa e continuou a viver. Viveu mas não conheceu a si mesmo, o monstro era ele, mas ele não viu, só via, no reflexo de seu escudo, uma mulher com fios de cabelo que eram serpentes. Matou a si próprio e a cada dia que nos olhamos refletidos, matamos a chance de nos conhecermos. A situação fez com que ela se encarasse, sem espelhos. A decisão de acender a vela foi dela, só dela. Só quando estamos desesperados temos coragem de acendê-la.
Um vazio, uma dor. Sua situação era desesperadora, o mito se fez verdade. Pedra e perda. Desconserto, desengano e desespero. Sem movimento, sem alento, sem amigos, sem nada. Estava sozinha, estava em pedra, estava em si mesma. Gostaria de saber se poderia conhecer a si mesma e não virar pedra, gostaria de saber se poderia ouvir o canto das sereias e não se jogar ao mar como fez Ulisses. Gostaria de sair daquela situação, mas com a sabedoria de quem conhece a si próprio. Estava desesperada, não havia tempo, não havia história, estava na eternidade e lá poderia ficar, havia apenas o ser. No eterno, só a consciência é sistema de medida e quando começou a repensar sua vida e arrepender-se de algumas coisas ouviu uma voz que disse: “só as lágrimas verdadeiras desmancham a pedra”. Chorou, mas não deixou de ser estátua, chorou por saber que demoraria ainda muito tempo para se arrepender de verdade, para passar por cima de seu ego, que era aquela couraça de pedra que a aprisionava, chorou por saber que ainda permaneceria muito tempo presa na eternidade e cega com aquela treva. Sabia que demoraria ainda para que as primeiras lágrimas verdadeiras caíssem, talvez isso nunca acontecesse. Chorava copiosamente pois tinha medo de sua situação, não porque se arrependesse dos seus pecados. Chorava por ela, não pelos outros, era pedra.

sábado, 16 de agosto de 2008

Conto VII - Do outro lado da rua

Abriu os olhos aos poucos, o som do despertador, nada animador para um sábado de manhã, era terrível. Virou para o lado, o objeto continuava tocando. Seu colega de quarto tomou coragem, levantou, desligou o alarme, chamou: “Raul, você vai se atrasar para o trabalho”; e voltou a dormir, ele merecia. Os dois tinham ficado até de madrugada festejando com mais alguns amigos e amigas a promoção de Raul, este havia subido de cargo no emprego e finalmente teria dinheiro de sobra para comprar um carro, idéia que já vinha perseguindo há anos.
Custou a levantar. A coragem só veio quando lembrou de sua promoção, tinha que levantar, tinha que se mostrar digno daquela confiança e saltou da cama, pegou sua toalha, suas roupas e foi ao banheiro. Tomou banho, escovou os dentes, fez a barba, estava impecável. Colocou sua roupa social, tão social quanto o papel que pretendia exercer: um futuro executivo de sucesso. A promoção era apenas a alvorada de sua vida. O sol começava a nascer de verdade para Raul, o progresso dentro da empresa era inevitável, ele atingira aquilo que todos chamavam de Felicidade. Teria seu salário dobrado, poderia comprar o seu tão sonhado carro, poderia morar sozinho, poderia até, se quisesse, casar com Joana, mas ainda não era hora.
Saiu de casa pisando firme, decidido em mostrar a todos que o “novo chefe” estava passando. Desceu o elevador, passou pelo saguão vazio e quase silencioso, não fossem o som de seus sapatos, cumprimentou o porteiro e saiu, ainda pensando em sua promoção. “Posso comprar o meu carro, não acredito, vou poder morar sozinho, comprar um celular novo, roupas novas...”. Continuou a prever o futuro.
Atravessou a rua e andou mais cinco minutos para chegar no mesmo ponto de ônibus de todo dia. “Essa vida está acabando”, pensou ele. Encontrou as mesmas pessoas de todos os sábados, o italiano que vai comprar jornal na banca, a madame passeando com seu cachorro, alguns adolescentes com os livros dos cursos de inglês e a garota do telemarketing sempre atrasada para pegar o ônibus.
Seriam as mesmas personagens de todos os sábados de manhã não fosse um grupo de mendigos na praça do outro lado da rua. Raul olhou com indignação aquele grupo de vagabundos. Ele estava indo trabalhar, ele era digno, ele tinha sido promovido, ele tinha uma Roupa Social diferente da deles. Sujos, rasgados, fedorentos; tão animais quanto o cão que os acompanhava na balburdia. Aquilo incomodava Raul e as pessoas que passavam por aquela rua.
Os “vagabundos” estavam bêbados, “pra variar”, como pensou Raul. Havia três homens, uma mulher e um cachorro, todos se assemelhavam, todos eram movidos pelos instinto. O quadrúpede, as vezes, parecia ser mais racional do que os bípedes. Um dos homens dançava com a mulher, enquanto os outros dois cantavam um forró e batiam palmas, marcando o ritmo.
“Irracionais, vagabundos. Deveriam estar trabalhando e não bebendo e zoneando por aí”. Estavam sujos e maltrapilhos, mas aquela felicidade era tão verdadeira... incomodava Raul. Não conseguia entender como aqueles seres podiam estar tão felizes. Não tinham dinheiro algum, o que tinham foi gasto em uma garrafa de 51 que bebiam com exagero. Não tinham casa, não tinham carro, não tinham emprego, não tinham celular, não tinham promoção. Não tinham nada do que trazia felicidade para Raul. Nada?
“Eles não têm nada para oferecer, por que o cachorro ainda está com eles? Por quê?” Raul não entendia o prazer de estar ali com eles, desvalidos e felizes. Não entendia a felicidade deles. Era uma felicidade tão verdadeira, e, apesar da situação, os cinco seres demonstravam uma amizade extremamente sincera, os quatro bípedes e o quadrúpede.
Ao pensar nisso, lembrou de seus amigos e das zoeiras que faziam. Lembrou-se da cumplicidade que tinham e da alegria de estarem juntos e olhou os homens, a mulher e o cachorro com outros olhos. Imaginou-os vestidos com outras Roupas Sociais e viu seres humanos, pessoas comuns, pessoas como ele. Então, finalmente ele entendeu: não estavam presos a construções criadas pela sociedade, não buscavam a felicidade trazida pelo dinheiro, pela satisfação material, pois esta não era acessível a eles, mas sim, viviam a felicidade em estado bruto, aquela experimentada, não procurada, aquela que está nas coisas simples e que não podem ser desmanchadas, uma felicidade compartilhada, uma felicidade sólida.
Seu ônibus chegou ao ponto, as pessoas se apertavam para entrar, os que já estavam dentro reclamavam, os que queriam subir também. Todo mundo se acomodou e o motorista partiu. O ônibus se foi, Raul ficou. Ele atravessou a rua e foi em direção ao seus iguais. Tirou a Roupa Social que vestia e desafrouxou a gravata. Chegou perto dos homens que estavam batendo palmas, marcando o ritmo da música que cantavam e fez o mesmo. Logo ofereceram-lhe um gole de cachaça, ele tomou e voltou as palmas. Raul se sentiu feliz, feliz em estado sólido. Sabia que não estava preparado para se libertar de todas as construções e cobranças da sociedade, não era tão corajoso assim, logo voltaria para sua felicidade “fabricada”, mas pelo menos hoje viveria aquilo. Desistiu de ir trabalhar naquele dia, os papéis que tinha que preparar para sua primeira reunião como chefe não eram tão importantes assim, e continuou batendo palmas. Cantaram, beberam e almoçaram na casa de Raul. Ele passou o dia inteiro com seus novos amigos. Foi o dia mais feliz de sua vida, ele descobriu a essência do que chamam de Felicidade.

domingo, 10 de agosto de 2008

Conto VI - Mundo Playmobil

João chegou na casa dos seus pais. Fazia meses, quase um ano, que não os visitava, muito trabalho na capital. Seus pais moravam em uma cidade do interior onde todos se conheciam, o ar era puro, o tempo era outro, tudo era diferente, aquela cidade era quase uma Arcádia, perdida no meio do Estado de São Paulo.
A visita de João não era uma visita comum. Seus pais iriam mudar de casa depois de passarem toda as suas vidas naquele local, criado seus filhos, João e Paulo, este último morto em um acidente de carro, construído uma história. Embora aquela casa enorme, se comparada aos apartamentos de São Paulo, não tivesse nenhum registro físico, uma prova dos acontecimentos ali passados, suas paredes, seus móveis estavam repletos de memórias. Era impossível para o casal de velhinhos olhar o balanço preso na macieira em frente a entrada e não lembrar de João e Paulo se balançando. Os objetos contavam uma história que só poderia ser revivida na memória das personagens que ali moraram.
Os pais de João, dona Margarida e seu Faustino, não queriam se mudar, porém, uma empresa iria construir no terreno que cerca o pequeno sítio deles, um novo condomínio de luxo. A Arcádia perdida tinha sido descoberta, venderiam a “paz”, a “natureza” do lugar por um preço bem alto, para trazer um “relax” para aqueles que têm dinheiro para pagar. Ofereceram uma grana alta para que o casal saísse de lá, dinheiro esse que compraria até uma das casas do super condomínio. A princípio eles recusaram, do que adiaria saírem de lá, estavam ali já há muito tempo e, além do mais, esse dinheiro não serviria para muita coisa. Não pensavam em dinheiro, a dinâmica era outra na vida dos dois velhinhos, porém, começaram a receber algumas ameaças por telefone, fato o qual João não sabia, Margarida decidiu que seria melhor se não contassem para ele, e resolveram aceitar o dinheiro.
O casal mudaria para cidade vizinha, um pouco maior do que a antiga, mas quase tão pacata. Compraram um novo sitio em um bairro afastado. Não quiseram comprar uma casa no condomínio. Aquele local que era só deles, até o fim do ano estaria cheio de ricaços metidos a besta. Eles nunca se acostumariam com esses novos vizinhos.
A visita de João foi, então, por esse motivo. Ele aproveitaria o final de semana prolongado para ajudar seus pais a empacotar e a fazer a mudança das coisas para a nova casa. Empacotar, esvaziar, desmontar os objetos foi relativamente rápido, apenas um dia de trabalho. No final da tarde, já com quase tudo guardado sua mãe pediu-lhe mais um favor. Dona Margarida pediu ao filho que fosse até o sótão e olhasse para os brinquedos, fotos, cadernos, entre outra coisa de sua infância, para ver o que ele iria querer levar com ele. João lhe disse para se livrar de tudo aquilo, pois nada daquilo servia mais, porém, ela insistiu.
João subiu ao cômodo onde seu Faustino guardava as coisas “antigas” da casa, o casal tinha um sério problema para se livrar dos objetos sem uso. Lá, aquele homem que já tinha passado dos trinta anos, achou inúmeras coisas. Ferros de passar quebrados, pneus antigos, caixas com fotos e cadernos, com pregos, parafusos e ferramentas, uma televisão em preto e branco que ainda funcionava, tudo isso deveria estar ali há anos. João também achou seus brinquedos, todos postos numa prateleira, feita com muito esmero por seu Faustino, a qual João ajudou a construir na infância. Sua bola de futebol estava ali, mucha deveras, mas estava ali, pedindo para ser chutada novamente, seu peão, umas raquetes de frescobol, uma pipa, alguns bonecos e, o que chamou mais atenção de João, uma casinha de brinquedo montada com bloquinhos de madeira.
O homem, com a cara espantada por aquilo ainda existir, pegou o objeto, fitando-o por alguns minutos. João não conseguia acreditar, ele lembrava claramente do dia que montou aquela casinha pela única e última vez. Como um quebra-cabeça emoldurado aquela “construção” ainda permanecia intacta na prateleira de seu Faustino. João costumava dizer que tinha construído uma casa igual a que ele morava. Ele não se lembrava mais porque nunca mais mexeu com aqueles bloquinhos, mas a permanência daquilo, intocável, e lutando contra a lógica – montar, desmontar e montar de novo - do próprio brinquedo, o intrigou.
Como em uma epifania, João viu naquela casinha montada com frágeis bloquinhos de madeira uma das melhores metáforas para a vida e o mundo em que vivemos. João pensou quão efêmeras sãos as coisas, assim como os bloquinhos. Aquele brinquedo, estar ali intacto, vai não apenas contra a lógica do brinquedo, como também a própria lógica da vida. Tudo em nossos dias, são peças substituíveis, assim as pessoas vivem. As roupas, os sapatos, os celulares, as casas, os empregos, os amigos, os amores, tudo apenas uma passagem.
João lembrou dos seus amigos de infância, todos se casaram e se mudaram, foram cuidar das suas vidas e não os vêm a muito tempo, nem sequer um telefonema, nada Suas namoradas, todas “mulheres da sua vida”, “amores eternos”, nenhuma ficou para ver como anda sua vida, nem para ser eterno. Lembrou também de todos os empregos, cargos e funções pela qual passou. Em todos os lugares em que trabalhou teve grandes amigos. Onde estão eles agora? Quantos celulares já teve? Desde que se mudou para São Paulo em quantas casas já morou? Tudo efêmero, apenas algumas pessoas e objetos permaneceram ao longo dos anos.
Somos peças na vida de outras pessoas, a lógica da vida é a mesma do brinquedo – montar, desmontar e montar de novo -, o problema é que quando acabamos de construir algo, seja por insegurança, seja pelo fato das “peças” não caberem mais na “construção”, olhamos o “objeto” e pensamos: não gostei, poderia estar melhor. Montamos coisas que provavelmente não gostaremos no final, construímos casas as quais não iremos querer morar. Destruímos tudo e começamos uma nova empreitada. Tudo que é sólido desmancha no ar.
João voltou a si com a voz de sua mãe lhe chamando para jantar. O brinquedo ficou, seus pais ficaram, alguns amigos ficaram. Por que essas coisas subverteram a lógica da vida, por que permaneceram? Em que bases foram construídas essas relações? O que vale realmente a pena construir e não mexer mais, como aquele brinquedo? Quais peças não são mudadas?
João fechou a porta do cômodo atrás de si e desceu as escadas se preparando para o último jantar naquela casa. Amanhã a tarde começariam a mudança. Olhou em volta, seus pais sentados na mesa, dona Margarida colocando macarrão no prato de seu Faustino, os móveis antigos de sua infância, os pratos, os talheres, tudo cheirava a história. A casa não conseguiu subverter a lógica da vida, precisa ser sacrificada por um “bem maior”, a tranquilidade de pessoas ricas. Ela seria apenas mais uma peça a ser mudada pelo sistema. Enquanto seus pais oravam agradecendo a refeição, ele pensou: estou desenganado, sei bem como o mundo funciona, espero conseguir entender porque as coisas permanecem e aceitar quando as peças mudarem na minha vida. Abriu os olhos e aproveitou o resto da noite com seus pais.

sábado, 2 de agosto de 2008

Conto V – Mono

Estava andando no meia da Avenida Paulista, adoro andar naquele lugar, não sei, me sinto mais adulto do que realmente sou quando ando por alí. Era por volta da uma da tarde. Havia tido um dia maravilhoso. Apesar de ter acordado cedo, esta atitude era por um bom motivo: iria assistir uma palestra que estava programando havia meses. Um sociólogo polonês, o qual gosto muito e que discute sobre a pós-modernidade, iria dar uma palestra e lançar seu novo livro aqui no Brasil, naquela avenida.
Acordei cedo como já disse, peguei o trem lotado. Lógico que essas coisas acabam estressando um pouco, mas a expectativa para a palestra era maior e valeu a pena. A palestra foi incrível, durou aproximadamente uma hora e depois houve mais duas horas para perguntas e debates. Foi demais, saí de lá atônito, surpreendido, com mil pensamentos na minha mente, resumindo sai de lá: bobo.
Era nesse clima que andava por volta da uma da tarde na avenida paulista. Minha cabeça latejava, mas não de dor de cabeça, mas sim de atividade mesmo. Não conseguia parar de pensar na palestra. Um ser em atitude blasé, totalmente absorvido na subjetividade, andando pela calçada da Avenida. A distração era tanta que nem percebi o tumulto, pessoas correndo ao redor de mim.
Uma bomba, foi isso que me vez perceber a confusão. O estouro, o gás, a correria, a polícia, os manifestantes. Resultado, fiquei surdo do ouvido esquerdo por algumas horas, tossindo que nem um condenado e com alguns hematomas pelo corpo, pois, devido a correria e minha distração acabei sendo jogado no chão e pisoteado.
Quando consegui levantar e entender o que estava acontecendo, saí de perto daquela confusão, me escondendo em uma travessa da avenida. Demorei meia hora, pelo menos, para parar de tossir e os olhos pararem de arder. Olhei para o meu braço esquerdo, estava todo ralado, nem lembrava como isso aconteceu. Mas, o que mais me incomodava era a surdez do meu ouvido esquerdo. Fiquei preocupado, a bomba havia estourado bem perto de mim, não havia nada, nem som fraco, nem mesmo um “pin”, nada, simplesmente o silêncio. Esperei aquele tumulto se acalmar. Algum movimento social deveria estar fazendo uma passeata e acabou entrando em choque com a polícia, como quase sempre acontece. Dessa vez não estava na passeata, era um simples coadjuvante.
Voltei para avenida procurando o primeiro metrô que pudesse me levar para casa. Vi um grupo de manifestantes e policiais discutindo, eles formavam um verdadeiro corredor polonês, assim como o sociólogo, na calçada. Quem quisesse passar por ali teria que ou passar no meio do tumulto ou invadir a rua. Estava cansado daquilo tudo, resolvi enfrentá-los e passei pelo meio dos dois grupos.
Foi estranho esta situação. Apesar de escutar os gritos dos policiais, eles não tinham definição, porém, os manifestantes, parados no lado direito da rua, o mesmo lado do meu ouvido bom, eu conseguia ouvir bem. Eles diziam: seus filhos da puta; seus paus mandado de merda; estamos lutando por uma causa justa, vocês estão agredindo pessoas de bem, etc. Fiquei pensando, quão absurda era atitude daquele poder coercivo, que impedia uma manifestação social e a tentativa da população reivindicar seus direitos. Absurdo.
Ainda bem que consegui sair daquele tumulto e entrei no metrô. Ao olhar a carteira para recarregar meu bilhete único percebi que estava sem dinheiro. Não acreditei quando lembrei que o banco ficava depois daquela discussão, teria que passar novamente através daquele clima tenso. Não acreditei, mas tomei coragem e subi de novo as escadas me preparando psicologicamente para aquilo.
Respirei fundo e entrei no “corredor”, porém, algo engraçado aconteceu. Meu ouvido direito, desta vez, ficou do lado dos policiais e pude escutar perfeitamente o que eles falavam: Seus filhos da putas; seus metidos a revolucionários; estamos tentando manter a ordem, só estamos tentando fazer nosso trabalho, etc.
Os discursos eram tão parecidos que saí daquele corredor chocado, até olhei para trás novamente para ter certeza que estava ouvindo o outro grupo. Parei por um instante, respirei e voltei a andar pensando na insanidade daquela situação. Ambos os lados se atacavam, gritavam, esbravejavam, mas em nenhum momento pararam para se ouvir. Já estavam com suas falas prontas, seus julgamentos inexoráveis, não era necessário o diálogo, pois para cada um não havia dúvidas quem estava certo.
Enquanto me dirigia ao banco para pegar o dinheiro que finalmente me levaria para casa, pensava naquela situação. Ambos os grupos estavam errados, eles não se escutavam, não queriam saber de pontos de vistas que fossem diferentes dos deles, não estavam preparados para ouvir o “outro”, saber seus problemas, entender sua agressividade e seus motivos. O que enxerguei, coisa que eles dentro daquela confusão não conseguiam enxergam, foi que ambos eram filhos da puta e ao mesmo tempo não eram tanto como diziam, ambos lutavam por causas justas e ambos eram pessoas boas. Eles estavam cegos, se viam como inimigos e nem estavam preparados para tentar ser outra coisa.
Peguei o dinheiro, mas na saída do banco, ao olhar para aquele tumulto insano, revolvi tomar a outra direção, mesmo que o metrô fosse mais distante, tudo bem. Caminhei um pouco mais, todavia tive tempo para pensar naquilo tudo. A palestra já não fazia parte dos meus pensamentos, agora o que bombardeava a minha mente era justamente a incompetência humana para entender o outro. E isso não está presente apenas entre manifestantes e policiais.

sexta-feira, 1 de agosto de 2008

Conto IV - Pinóquio em Concerto, sem colóquio em desconserto.

Pinóquio em concerto, consertado e elevado com o som que lhe tocava a alma de madeira. Movimentos articulados, jeito de menino, mas que pena... Perdera a cara de pau.
Menino bom, de fino trato, poderia fazer qualquer uma das moças mais feliz do que a própria Felicidade, porém, seus olhos feitos com as sobras de madeira da carpintaria de seu criador, já estavam pregados, fitavam sem cansar a beleza daquela que emprestou o nome para a própria Beleza se chamar.
Pinóquio, que agora era menino, tinha o medo e a vergonha dos homens, se escondia e disfarçava, fechava os olhos e fingia ignorar a Beleza. Por um átimo desejou sua vida de brinquedo de volta, assim poderia olhar, sem ser notado, com aquela cara de bobo sorridente que é comum à todos os bonecos.
Já não dava para voltar atrás, Pinóquio sentia os cupins lhe estraçalharem o peito... Parou e pensou: “Não sou mais de madeira, sou menino.” O que lhe causava tanto aperto, tanta falta de ar? Seria o amor? Não sabia.
Existe conserto para isso? Existe concerto para isso? Perguntou suas dúvidas a um amigo que lhe respondeu: “Sim meu caro. Lá existem Sinfonias, Fantasias, Rapsódias e todas as danças do mundo, mas infelizmente o concerto acaba aí, pois quando quebrado não há conserto, e se sofres deste mal, é danado.
Pinóquio. Pinóquio. Ó Pinóquio. O pobre do garoto estava desconsertado, andava pensativo e aos suspiros pelos cantos, com a cara de bobo dos bonecos mesmo sendo menino, tudo por causa da Beleza. Seu nariz só crescia ao negar quando era perguntado se amava.
Ó Pinóquio, presta atenção menino boneco, faltam as palavras, falta o colóquio. Tinha esquecido desse desejável detalhe.
Colóquio. Tinha se preparado para as primeiras palavras, não pensou em nada, mas sabia aproximadamente o que deveria falar. Colóquio!!!!
Era um cordado, que vivia corado. Lembrou-se das bolinhas vermelhas que tinha no rosto quando era brinquedo. Pinóquio tinha sido pego pela vergonha dos meninos, aquela chamada timidez.
Tornou-se um humano típico, vivia de inventar desculpas para si mesmo: “Não a encontro”. “Depois eu falo”. Depois, depois depois. Até que a vida se cansou e deu um jeito de trombar os dois. Quase, por muito pouco Pinóquio e a Beleza não se chocaram...
Um susto.
Vocativos? Não, apenas interjeições. Não de surpresa e sim de fracasso, de voz engasgada, de falta de palavras e da ausência do diálogo.
Um sorriso. Lindo por sinal.
Pinóquio em hipnose disse: Oi!
Não esperem mais do que isso. Foi um oi e só. Os dois se desviaram do caminho um do outro e prosseguiram.
Até agora não consigo acreditar que o menino perdeu tal oportunidade para o sonhado colóquio. Boneco, depois que virou menino, perdeu a cara de pau.
Agora choras, choras... Mas não se preocupem com o nosso amigo, tentarei consolá-lo. A vida há de lhe mostrar outros caminhos. Por enquanto ajudo-o a consertar os remendos e preparar o traje de gala para o concerto.