segunda-feira, 21 de setembro de 2009

O PEREGRINO


Um peregrino, certa vez, ao atravessar um vilarejo, foi informado da existência de um grande sábio que meditava há anos sob uma velha árvore. Curioso e um tanto eufórico pediu aos habitantes que lhe indicassem o caminho para que pudesse encontrá-lo o mais rápido possível.
Sentia, secretamente, que sua peregrinação pudesse estar perto do fim. Talvez, a sabedoria daquele homem pudesse lhe dar as respostas que tanto desejava, trazendo sentido ao seu caminhar. Como uma curva que desvia o traçado de um rio, sentia que aquele sábio seria um ponto de inflexão em sua vida.
Após seguir quase meia hora por um caminho de terra, marcado numa vasta planície, chegou finalmente à velha árvore, uma das poucas naquele lugar. Logo, ainda distante, reconheceu a figura humana sentada de pernas cruzadas, com as palmas das mãos expostas repousadas sobre a coxa e de olhos fechados em meditação. Ao chegar mais próximo, viu como aquele homem estava magro. Porém, esta constatação não o abalou muito, afinal, aquele sábio, como lhe disseram, estava há anos na mesma posição, embaixo da mesma árvore. A brisa, um pouco mais forte do que o normal para àquela hora da manhã, esvoaçava o longo cabelo sem corte daquele homem, que parecia inabalável.
- O que quer, peregrino? – Pronunciou, sem abrir os olhos, o sábio com uma voz fraca, mas que parecia ressoar dentro do coração do viajante.
- Não sei exatamente o que quero; talvez um sentido, talvez um conselho. Seja o que for, acredito que pode me ajudar a encontrar o que procuro.
- Se não sabe o que procura, por que caminha?
- Para encontrar o que me falta. – respondeu o peregrino.
Neste momento, houve uma pequena pausa no recém iniciado diálogo. Os dois seres contemplavam o silêncio, como se esperassem dele uma resposta. Passado alguns minutos, o sábio voltou a falar:
- É necessário descobrir suas carências, peregrino. Só assim saberá que a busca finalmente terminou, quando encontrar aquilo que lhe falta.
- E como saberei? Ó grande sábio.
- Reflexão, peregrino. Só depois de tanto refletir sei exatamente o que procurei durante toda minha vida e aquilo que guiará minhas ações no futuro.
- Ó grande sábio, compartilhe tal tesouro, fruto de tanta reflexão, com esse pobre sofredor? Diga-me, por favor: o que sempre procurou e o que o guiará?
O homem sentado sob a árvore não respondeu logo, talvez estivesse relembrando os caminhos que o levou àquela certeza. O silêncio novamente se fez naquele diálogo. O peregrino não se atreveu a interromper o furioso solilóquio proferido pelo vento, agora mais forte, que arrancava as folhas das árvores e movimentava tanto a relva quanto as roupas das nossas personagens. Foi em meio à distração do viajante com a ventania, que o sábio respondeu seu pedido.
- O amor. – respondeu ao peregrino, enfaticamente.
- O amor? – perguntou surpreso, voltando a si.
- Sim, o amor. Percebi que o procurei em tudo que havia feito. Meditando, percebi que só ele podia ser o meu principio ético. Sentei-me aqui, sob esta árvore, decidido a só me mover novamente quando encontrar algo que eu possa amar.
O peregrino ficou olhando aquele homem esquelético, em silêncio, esperando que o sábio continuasse sua história.
- Ao amar uma pessoa, amei e amarei por amor; ao trabalhar, trabalhei e trabalharei por amor; ao beber, bebi e beberei por amor. Amei, trabalhei e bebi pelas coisas que amei. Só o amor tem o poder de me fazer levantar e caminhar novamente. Só através dele conhecemos a verdade.
O peregrino sorriu um sorriso ambíguo; finalmente encontrara sua resposta. Sentiu certa tristeza por aquele homem, porém, deu meia volta e continuou a andar sem dizer uma só palavra. Descobriu uma sabedoria dentro de si que contrariava as palavras daquele sábio. Percebeu que o que dá sentido à peregrinação é a própria peregrinação. Percebeu que aquele homem não se moveria mais, pois esperava o absoluto e este só existe enquanto idéia. Muitas vezes, para alcançarmos o que queremos, temos que atravessar o contrário do que buscando e isso só é possível abraçando o devir: só caminhando somos capazes de amar o caminho. Ele nunca mais parou de caminhar.

sábado, 15 de agosto de 2009

O CORPO DESCONHECIDO


Chegou em casa decidida. Ela sabia que não haveria ninguém ali, naquele momento, para lhe impedir de fazer o que se comprometera. Mesmo assim, por precaução, andou por todos os cômodos para garantir que estava realmente sozinha. Não sabia o que estava sentindo, não conseguiria explicar em palavras. Seu corpo tremia, tinha medo. Andava por cada pedaço da casa desejando, paradoxalmente, encontrar e ao mesmo tempo não encontrar alguém em casa. O desconhecido se apresentava. Medo e euforia eram uma coisa só. Estava sozinha.
Entrou em seu quarto, fechou a porta e encostou-se nela, como se quisesse impedir que algo lhe visitasse. Olhou sua cama, estava exatamente do jeito que havia deixado pela manhã. Talvez ainda estivesse quentinha como estivera antes. Seu quarto lhe parecia diferente; era o mesmo, mas era outro. Quiçá era a sua relação com aquele cômodo é que estava prestes a mudar. As paredes, cúmplices de tantos segredos, seriam convidadas a se calarem mais uma vez. Era por isso que olhava desconfiada para o seu quarto, estava lhe medindo, como se dissesse: “És confiável? Podes guardar mais um segredo?”
Deu um passo a frente, mas logo voltou à porta. Espremeu a chave com os dedos e a girou duas vezes. Esta atitude fez com que se sentisse mais segura. Deu alguns passos pelo quarto e começou a sentir um calor insuportável. Resolveu tirar o casaco. Pensou em jogá-lo em cima da cama, mas resolveu dobrá-lo e colocá-lo em cima de sua escrivaninha. Passou os dedos sobre os livros que estavam ali repousados, pegou um e foi sentar-se na cama.
Folheou algumas páginas, sem ler em si alguma frase; só folheava o livro a esmo. Fechou-o bruscamente e, através do ar empurrado para cima com aquela ação, pode sentir o cheiro das páginas envelhecidas. Colocou-o ao chão e aproveitou para tirar o seu tênis e as meias. Era inverno, o chão estava gelado, apesar de todo o calor que o quarto fizera questão de aprisionar.
Levantou-se e foi encarar-se na frente do espelho. Fez algumas caretas para sua imagem refletida e aproveitou para espremer uma espinha que nascia próxima a sobrancelha esquerda. Ela sabia que estava fugindo daquilo que havia se comprometido a fazer. Como em um ato de coragem retirou a pólo que vestia e a jogou ao chão, próxima ao livro que fingiu para si mesma folhear.
Essa sua ação impulsionou outras ações em cadeia. Desabotoou a calça jeans, abriu o zíper e a abaixou aos poucos. Hesitou um pouco, mas resolveu enfrentar sua própria nudez, retirando o que ainda lhe cobria o corpo. Talvez fosse a primeira vez que olhava seu corpo daquela maneira. Através do espelho, nua, pele e pêlo, enfrentava-se; entre momentos de repulsa e atração. Percorria os olhos sobre seu reflexo e via-se como nunca vira antes.
Quem era aquela pessoa refletida? Questionava-se. Foi então que percebeu que estava conhecendo o desconhecido em si. Algo que existia a ela apenas em potência. Como o frio que é a potencialidade do calor ou a noite que é a do dia. Reflexo e refletido eram a mesma coisa, e isso lhe deu coragem. Virou-se e foi em direção a cama, mas antes olhou mais uma vez, por cima do ombro, seu corpo nu.
Deitou-se e cobriu-se. Sentiu o calor gostoso que havia permanecido, talvez desde a hora que levantou, embaixo do cobertor. Embora coberta, permaneceu com os braços para fora, olhando para o teto despretensiosamente. Ainda tinha dúvidas se estava preparada para fazer aquilo a que se havia comprometido. A coragem que a possuiu em frente ao espelho, desaparecera.
Olhou para suas roupas jogadas ao chão, sentiu-se culpada. Durante toda sua vida tentaram lhe proteger de seu próprio corpo e agora era ela mesma que procurava o mal. Sentiu o coração apertado. Uma angústia tomava-lhe todos os sentidos. Questionava-se o porquê de tudo aquilo. Sentiu vontade de levantar-se e vestir sua roupa novamente, mas permaneceu deitada.
“Nada é bom ou mau, a não ser por força do pensamento”, disse lhe uma amiga mais experiente, certa vez. Essa fala ressoou como uma bomba em sua mente. Tomou coragem e enfiou as mãos para baixo do cobertor. Apesar de sua atitude, a angústia que sentia permanecia a mesma. Cravava as unhas com força sobre o seu ventre e contorcia-se, entre desejo e repulsa. Sentiu vontade de gritar. Deixar-se consumir daquela forma, consumiria as certezas que construíra sobre si mesma.
Sua mente e seu corpo lhe provocavam. Suas pernas roçavam entre si e sua respiração gelava o fervor de seu corpo que suava abundantemente. Foi então que resolveu pôr fim em toda aquela angústia que sentia. Escorregou uma das mãos e sentiu a umidade do prazer de um toque desconhecido. Abriu as pernas, arqueou os joelhos e jogou o cobertor para longe. Em suspensão, desfloresceu-se.
Após alguns minutos sua respiração começou a ficar cada vez mais rápida, mais rápida, mais rápida, como se o momento anunciado viesse lhe tirar a fôlego. De repente sentiu seu coração pulsar acelerado, apertou os olhos com força e abriu a boca entregue. Seus músculos ficaram tesos, os dedos de seus pés se encurvaram e aconteceu......Uma grande onda quebrou sobre o seu corpo, fazendo com que ela afundasse seu quadril na cama e levantasse suas costas ao ar em um estado de afogamento temporário. Sua cabeça pendeu para trás e seus lábios deixaram escapar um som sem palavras, meio abafado, como se quisesse ao mesmo tempo esconder e gritar a todos o que sentia. Abriu os olhos: Era o mundo, mas não o mesmo.

terça-feira, 4 de agosto de 2009

O Muro

Tentava acompanhar o que seria, pois a cada passo deixava de ser o que era. Como não podia mais voltar, corria atrás daquele eu que tanto tentava agarrar, mas que sempre me escapava. De repente, aquilo, que é o que ainda não sou, mas deveria ser, correu a frente, tomou impulso e pulou um muro que a mim, em um primeiro momento, pareceu impossível de se pular.

- Você viu o que serei pulando esse muro? – perguntei para um homem que parecia estar tediosamente cumprindo uma missão silenciosa.
- Desculpe-me. Não vi nada. – respondeu-me.
- Ele pulou esse muro, tenho certeza. Preciso dar um jeito de ultrapassá-lo. Você conhece um jeito de fazer isto?
- É só você contornar o muro. Isto feito, você poderá desfrutar, então, das maravilhas do outro lado.
- Quer dizer que o outro lado é melhor do que esse? – perguntei curioso.
- Melhor? – indagou meu amigo surpreso com a ingenuidade da minha pergunta. – Lá, tudo o que você imaginar se torna realidade; lá é o mundo perfeito.
- Nossa! E por que você ainda está desse lado?
- Não posso ir ainda, tenho que contar essa descoberta para o máximo de pessoas que conseguir. Só após esta minha tarefa poderei atravessar. Não vejo a hora, caro amigo. Não vejo a hora!
- Você quer que eu aguarde aqui com você? Digo: Quer ajuda na sua tarefa? A gente podia revezar em turnos para que você pudesse descansar.
- Não meu caro, vá você. Estou bem. Além do mais, se cada uma das pessoas que aconselhei, tivesse esperado aqui comigo, o cumprimento da minha missão seria impossível, pois todos continuariam deste lado. Por isso, vá em paz.
- Tem certeza? – perguntei novamente por educação.
- Tenho. Vá em paz e boa sorte. Não há dúvidas que gostará do outro lado do muro. Como disse, é perfeito; a perfeição na terra.
- Bem, então vou seguir o seu conselho e procurar logo o lugar para fazer a travessia. Ou melhor: Você poderia me ajudar a subir no muro e eu poderia me jogar para o outro lado.
- Desculpe-me, caro amigo, mas não posso. A travessia para o outro lado você deve fazer sozinho. E, por mais que você queira pulá-lo, sozinho não alcançará o seu topo para que possa ultrapassá-lo. Por isso, terá de contornar o muro. Não há outra forma.
- Ok! Mais alguma instrução?
- Não, nenhuma. Vá em paz.

Estava indo, seguindo o meu caminho, quando voltei e perguntei:

- Você sabe quantos quilômetros tem esse muro?
- Isso depende – respondeu meu interlocutor, meio lacônico.
- Depende de quê?
- Depende de você.
- De mim? – perguntei
- Sim! O muro faz parte de você. Quando cansar ou esquecer que ele existe, poderá parar de construí-lo.
- E por que eu iria construir mais do muro, se na verdade quero ultrapassá-lo, como você mesmo me convidou a fazer?
- Porque o outro lado só existirá, enquanto houver o muro.
Foi assim que construí um labirinto.

quarta-feira, 22 de julho de 2009

INV(F)ERNO


Era inverno. Minha família, assim como toda a cidade, migrava para terras mais quentes, onde a vida pudesse se tornar suportável. De tempos em tempos o ato se repetia, toda a população atravessava o grande lago congelado buscando terras melhores, levando junto tudo o que achasse importante.
Agasalhados. Via a minha família, meu pai, minha mãe, minha irmã mais velha e dois irmãos mais novos, caminhando a passos lentos, levando mais coisas do que podiam suportar. O frio era intenso. O vento cortava como uma lâmina a única parte do rosto descoberta, entre a touca e o cachecol. A paisagem era monocromática; o branco refletia tanta luz que quase cegava os nossos olhos. O que nos mantinha caminhando era a terra prometida. A cada passo dado estávamos mais próximos do fim do inverno.
De repente aconteceu. O gelo começou a rachar, talvez fosse fino demais para suportar o peso de toda cidade. Todos ouviram o barulho como se o céu, refletido no lago, começasse a rasgar e pararam; sentiram o chão tornar-se instável. Alguma coisa estava acontecendo.
Os passos lentos e ensimesmados tornaram-se uma grande corrida. As pessoas corriam desesperadas. O gelo que cobria o grande lago começou a rachar bem no início, próximo da origem de nossa viagem; já não era possível retornar. Ou chegávamos ao nosso destino ou morreríamos soterrados pela liquidez.
A primeira coisa a afundar foi a confiança – já não tínhamos certeza se chegaríamos do outro lado – e com ela todos os projetos pessoais e coletivos. Eu, particularmente, tinha o sonho de criar uma escola de música na nova cidade, mas na ensandecida corrida deixei para trás o meu fagote. Era ele ou eu; e, para manter a velocidade, tive que deixá-lo para ser engolido pelo lago. O sonho de construir uma sociedade mais justa e perfeita também ruía a cada passo. Os mais rápidos deixavam para trás os mais lentos, tentando se salvar da rachadura que perseguia a todos. Os laços humanos se tornavam tão fluidos quanto o lago que se rompia. As famílias se separavam e cada membro afundava individualmente.
Alguns tentaram manter a confiança, mas afundaram. Os cientistas tentaram racionalizar as formas de conter o lago, contornar o abismo líquido que surgia, ou criar uma melhor organização para a corrida. Afundaram. Os membros das diversas igrejas tentavam manter a confiança dos fiéis que imploravam a salvação. Afundaram. Os governantes tentaram criar novas leis para conter o pânico que surgia, trazer maior segurança para os corredores e auxiliar aqueles que ficavam para trás. Afundaram. Quem sobreviveu era quem corria: sem família, sem projetos, sem Deus e sem Estado.
Eu continuava correndo. Confesso que carreguei no peito durante algum tempo certa dor. Não era fácil perder todas essas coisas, porém, era a única maneira de continuar vivo e acabei me acostumando. Todo o sofrimento causado pela perda de amigos, amores, parentes, crenças e planos, foi substituído por uma intensa sensação de liberdade. Corria livre intensamente, sem nada que me prendesse, libertado de todas as amarras e do comprometimento com os outros. A rachadura ficava cada vez mais distante e a minha corrida era cada vez mais intensa. Foi então que pensei:
“Sou livre para tudo, menos para parar de correr”. Neste momento fui engolido pelo lago.

quarta-feira, 8 de julho de 2009

TIO?!


Era cedo, algo entre cinco e meia e seis da manhã. Saí de casa apressado; sem café, sem banho e sem paciência. Era segunda-feira, o primeiro dia de uma via crucis eterna que sempre me levava a ressuscitar no domingo; não uma ressurreição de glória, mas uma ressurreição que me levava à escravidão, apenas um recuperar de forças para mais uma semana de sofrimentos.
Saí de casa e olhei para o céu pintado com um azul de noite quando foge; essa era exatamente a cor do escritório que seria o meu cárcere durante o dia inteiro. Era o céu que logo cedo me lembrava o meu destino.
Pacientemente esperei o sinal fechar. Todo dia, no mesmo semáforo, as mesmas pessoas esperavam para atravessar a rua. Todo dia, nenhum sorriso, nenhum “oi!”, nada; apenas a ansiedade de seguir. Às vezes – não sabia se era minha imaginação – eu achava que via os mesmo carros, enquanto atravessava a rua, parados no semáforo, esperando a abertura da válvula para o contínuo fluxo de automóveis.
Quando finalmente o semáforo ficou vermelho para os carros e verde para os pedestres, contente, pisei na rua para atravessar; foi então que ouvi:
- Psiu!
Ignorei e continuei a cruzar a rua.
- Psiu!
Novamente escutei o chamado e resolvi olhar para trás para ver se era a mim, realmente, a quem chamavam. Ao virar, me deparei com um menino aos trapos, sujo e descalço.
Fiz com os olhos uma expressão como quem dissesse: “o que foi?” ou “o que você quer?”, expressão que ele prontamente entendeu me respondendo com um movimento de lábios sem sonoridade alguma. E, isso foi o que mais me assustou, aquele não-som era terrível, era uma espécie de réquiem cantado em minha homenagem. Não me atrevi a ignorar tão poderosa música e, mesmo atrasado para o trabalho, retornei para tentar compreender as palavras do garoto.
- Desculpe-me, não consegui escutar o que você disse.
- Tenho fome. Por favor, tio, compra alguma coisa para “mim” comer.
Fiquei parado ali olhando aquele trapo humano e ele parado me olhando esperando uma resposta, uma comoção, qualquer coisa que tirasse o aperto, a dor, o som de seu estômago que de faminto comia a si próprio, matando-se para sobreviver. Por alguns segundos fiquei sem reação, algo me incomodava naquele garoto, algo me fez hesitar alguns momentos antes de tirar alguns trocados da carteira e lhe dar. O que seria? Será que essa cidade havia congelado minha alma? Será que havia perdido a humanidade? Não sabia, só sabia que aquele garoto não merecia meu dinheiro. Não merecia um trocado da porra do dinheiro suado que eu ganhei. Dinheiro que eu ganhei levando uma merda de vida, acordando cedo, dormindo tarde, fazendo hora extra... Esse fedelho não merece um mísero trocado meu. Fome? Eu não tenho fome, trabalho para não ter fome, estou sempre saciado, cheio, empanturrado e sem fome. Não sei por que como, há muito tempo perdi a vontade de comer.
- Tio?!
O moleque me chamou e me trouxe de volta à realidade.
- Desculpe-me – disse. Abri a minha pasta e comecei a fuçar como se procurasse algo; dinheiro, carteira, etc., era puro teatro. Na verdade, ainda não havia decido se aquele garoto mereceria o meu dinheiro. Olhem aqueles olhos. Olhos de quem pode levar o mundo sob suas costas. Olhem este corpo esquelético. Corpo de quem pode sentir todo frio e fome do mundo. Olhem para mim; o que sei sobre isso? Nada. Quem precisava de ajuda?
Fingi que não havia achado o que procurava na pasta e comecei a mexer nos bolsos do meu terno. Eu poderia ter dado alguma coisa para ele; seria fácil abrir a carteira e lhe dar um, dois, cinco ou até dez reais, não me faria falta, mas não seria justo. Dar-lhe qualquer quantia de dinheiro seria diminuir-lhe, seria rebaixá-lo à necessidade. Eu que era um pobre de espírito que lhe daria a porra do dinheiro para me enaltecer. Provavelmente, esperaria o sinal fechar novamente para fazê-lo na frente de todas aquelas pessoas paradas na calçada. Talvez não se importassem, talvez soubessem como eu a linha tênue que separa o egoísmo do altruísmo. Não poderia ajudá-lo, era eu quem gostaria de lhe pedir ajuda, no entanto, disse:
- Desculpe-me, estou sem dinheiro hoje – e saí andando.

terça-feira, 30 de junho de 2009

UMA VOZ NA ESCURIDÃO


A grade de ferro se abriu e fui jogado para dentro da imunda cela da prisão de Tullianum. O grande monstro de pedra escavada na colina do Capitólio da cidade de Roma, local onde os prisioneiros esperam a morte; condenados a priori pela fome, pela escuridão, pelo ar rarefeito e pela insuportável umidade. Sentia estar entrando nas profundezas do próprio reino de Plutão.
Os dois soldados encarregados de me trazerem ao cárcere deitaram-me no chão e finalmente libertaram-me dos grilhões que me prendiam os pulsos. Senti um alívio dolorido ao ver minhas mãos livres e ensangüentadas. Quando virei, apenas um soldado ainda me vigiava, segurando em sua mão a tocha que iluminou o nosso caminho por toda aquela noite, aguardava a volta de seu companheiro olhando-me com desdém; o outro havia ido pegar o livro onde escreveriam o meu nome, o meu crime e minha sentença: Acúrio, soldado desertor do exército romano da nona legião de Júlio César, condenado a morte.
Os dois soldados se foram esconjurando, pela traição, o meu destino. Os romanos estão cegos, não vêem que César é o verdadeiro traidor, não vêem que logo marchará contra Roma para destruir os ideais da República, eu precisava fugir para...
- É, a partir de agora, você será um desertor para sempre.
Eu mal havia me acostumado com a escuridão e uma voz fraca, em um latim quase indecifrável, cortou meus pensamentos.
- Quem está aí? – Perguntei. Não houve respostas. No entanto, aquela voz continuou a soar dentro de minha mente; já não sabia se era outro prisioneiro, ou se era minha própria consciência.
- É por isso que meu povo só registra o necessário.
- Quem é você? – Perguntei mais uma vez à escuridão.
- Já não sei se sou; sei apenas que fui um grande guerreiro, que na vitória e na derrota fui guiado pelos deuses e que fui o chefe dos celtas, ou... dos gauleses, como vocês nos chamam.
Eu me levantei e tentei, no escuro, seguir aquela voz. Dei uns dez passos a cegas e parei, foi quando tropecei em algo; era um corpo. Será que a voz na escuridão havia se incorporado? Tateei no escuro e senti um corpo vivo, que respirava. Embora a treva, que contaminava o ambiente, cegasse meus olhos, podia ver com os ouvidos o som do ar que lhe saía pela boca, podia ver com as mãos o corpo esquelético, a barba e os cabelos compridos daquele homem. Não havia dúvida, eu sabia quem ele era. Embora ele não tenha me revelado realmente sua identidade, pois a sua resposta, sempre que lhe perguntei o seu nome, era o silêncio, o silêncio que é capaz de descrever o inominável; eu sabia quem ele era: Vercingetórix.
- Há mais alguém aqui? – gritei.
- Não, apenas nós dois. – respondeu-me a voz.
Eu estava atormentado. Por que fui colocado na mesma cela do maior troféu de Julio César? Não sabia. Minha mente estava em ebulição, Marte devia estar ao meu lado. Eu poderia matar ali o indefeso chefe dos gauleses; poderia evitar que aquele traidor dos princípios republicanos desfilasse com Vercingetorix por Roma, demonstrando sua conquista e cumprindo o velho costume da cerimônia triunfal dos generais vencedores. César seria tomado pela ira ao saber que não teria seu brinquedinho para expor para a plebe romana.
Os deuses já haviam traçado o meu destino, não tinha nada a perder, porém, algo me fez hesitar. Por mais que sua morte enchesse de ódio o maior inimigo da Roma republicana, não seria nada virtuoso atacar aquele corpo indefeso, não poderia desrespeitar daquela forma infame este grande guerreiro.
Após alguns minutos em silêncio, o gaulês resolveu retomar a conversa.
- E então, desertor, não vai me contar a sua história?
- Você já ouviu: sou um desertor do exército romano. – Falei meio ríspido.
- Isso é o que você será daqui para frente: um desertor; mas quero saber quem você foi?
Eu não sabia quanto tempo teria que dividir a cela com aquele homem, mas achava que só quando um de nós fosse levado para a morte nos separaríamos, assim, resolvi não criar inimizades e respondi sua pergunta:
- Eu sou Acúrio, ex-soldado da nona legião de César. Nasci em Alexandria, mas vim para Roma ainda criança acompanhando os meus pais, eles eram mercadores e resolveram vender produtos do Oriente aqui em Roma; estes romanos realmente gostam de quinquilharias do Egito. Quando os meus pais morreram, como não tinha nenhum familiar vivo na cidade, resolvi me alistar no exército romano e lá estive até este momento.
- Olha só, você não é apenas um traidor. – O gaulês gargalhou estrondosamente, devia ter alguns anos que não ria daquele jeito. – Mas, então, por que desistiu do exército romano?
- Júlio César é o verdadeiro traidor. Muitos soldados da minha legião sabem que o Cônsul está planejando acabar com a República, mas não fazem nada; são um bando de covardes.
- Resolveu morrer por um ideal. Muito belo da sua parte, porém, ninguém se lembrará disso. Você será apenas um desertor, seu destino foi escrito naquele livro que estava com os soldados que lhe trouxeram.
- Eu não sou um desertor! – Falei irritado. – Estava tentando fugir da batalha para avisar a Cícero ou a Brutus o que César estava planejando. Arrisquei-me mesmo sabendo que seria condenado à morte se fosse pego.
- Eu sei que você não é um traidor, mas as pessoas que irão ler aquele livro não terão a menor dúvida de que você é. É fácil recriminar as ações de um indivíduo sem conhecer suas histórias pessoais. – falou o gaulês.
- Não estou entendendo. O que você está querendo dizer com isso? – perguntei.
- O que estou querendo dizer é que a História do mundo ultrapassa as histórias individuais, e são os nossos vestígios que são eternizados. Ao que parece, o único rastro da sua existência é um livro que te acusa de traição ao exército romano. Embora o meu povo se utilize do alfabeto grego para escrever algumas coisas, nossa religião, comandada pelos druidas, não permite que escrevamos muitas coisas, pois temos medo de eternizar o erro.
- Você está dizendo que as pessoas vão deduzir quem sou apenas pelo que está naquele livro que cataloga todos os condenados?
- Infelizmente, sim. A escrita é uma voz sem rosto. Quem escreve está preso a um hic et nunc, ao presente, as suas circunstâncias. Quem lê está separado de quem escreve; separado deste agora que se perde, substituído por um outro agora, que é o da leitura, e esta separação tende a essencializar o que foi escrito. Um desertor não se torna um desertor circunstancial, mas sim um desertor ontológico.
Sempre aprendemos a olhar os gauleses e os povos não romanos como bárbaros. Parecia-me impossível que tanta sabedoria poderia impregnar este outro que construímos e que deveria ser a antítese dos romanos; se éramos a incorporação da sabedoria, eles deveriam representar a ignorância, se éramos a luz, eles deveriam representar a escuridão.
O gaulês, percebendo o meu silêncio, talvez soubesse que eu estava imerso em meus pensamentos, resolveu continuar:
- Nosso povo mantém suas tradições oralmente. Muitos, ensinados pelos druidas, aprendem de cor uma enorme quantidade de versos com as histórias de nossos antepassados, assim, passado, presente e futuro se unem em uma só temporalidade. O saber herdado se incorpora. O que se aprende torna-se o que se é.
- É o contrario do que acontece com a escrita, não é? – falei.
- Sim. – respondeu o gaulês de maneira sintética.
- A escrita, por causa da separação temporal entre leitor e escritor, entre produção e reprodução, pode produzir o erro. Quem ler aquele livro, que conta apenas alguns fatos da minha história, pode me eternizar como um desertor. Uma mentira será eternizada.
Quando finalmente havia entendido o que o sábio gaulês estava tentando me dizer, os dois soldados romanos voltaram com sua tocha para me buscar:
- Cela errada, seu desertor de merda; vamos te levar para outro lugar.
Eles me puxaram pelo braço e me levaram para este lugar fétido que estamos agora. Quando a tocha se aproximou vi o corpo debilitado do gaulês, porém, seu rosto continuou uma incógnita. Bem, Hoplias, querido amigo que fiz nesta cela imunda, esta é a história do dia em que conheci Vercingetórix, um grande homem. Você sabe que na próxima lua serei morto e por isso gostaria de lhe fazer um pedido: Conte essa história a todos aqueles que dividirem esta cela com você, não quero ser para sempre um desertor, quero uma eternidade diferente, quero permanecer vivo em cada vez que esta história for contada. Por favor, você é a única chance que tenho de ter um final diferente do que foi escrito naquele livro. Conte a história do dia em que aquela voz na escuridão me revelou o segredo da eternidade.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

O HOMEM E O RIO



O trânsito parou. A pressa e a escravidão, que nos são submetidas pelo relógio, levaram todos ao imobilismo do engarrafamento na marginal Tietê. O mundo da via-expressa solidificou-se em carros praticamente estacionados na pista. A marcha proletária de séculos atrás, transformou-se, hoje, no anti-tráfego da classe média. Os noventa quilômetros sinalizados na placa são uma utopia irrealizável por essas horas da manhã.
O rádio é inútil. De que me adiantaria notícias sobre as condições do trânsito? Nada. De que adiantaria para aquele que está na chuva a notícia da tempestade? Antes que o locutor noticiasse o tamanho do congestionamento, desliguei o aparelho. Há certas horas, no turbilhão de um problema, que preferimos a ignorância à verdade. Se fosse dada a um preso, a oportunidade de desconhecer sua pena, talvez sua vida se tornasse melhor, pois desejaria, a cada dia novo, que aquele fosse o dia do fim de seu cárcere. Não me interessava saber a verdade enquanto o meu estômago pronunciava um som sem palavras, um som de quem reclama a falta do desjejum em detrimento da pressa e da pontualidade. A exatidão numérica de minha aflição, só tornaria mais distante a coragem de enfrentar o mar de automóveis parados até onde minha vista podia alcançar.
Meu carro havia se tornado uma prisão, uma prisão particular. Sentia um pouco de inveja daqueles que compartilhavam o enclausuramento com amigos ou familiares. Lutamos tanto por nossas liberdades individuais, por nosso direito de ficar sozinhos, porém, não agüentamos a insuportável presença de nós mesmos. Nestas horas, ela ganha o peso da eternidade. Sentia, da mesma forma, inveja dos motoqueiros que passavam velozes entre os carros, estes voavam como mensageiros dos deuses, e eu permanecia acorrentado como um Prometeu. Nesta hora da manhã a revolução se faz possível; moto-boys escoam pelas brechas do trânsito como água nos encanamentos; voam enquanto seus chefes estão presos no tráfego. Liberdade de movimento; nestas horas da manhã é virada a mesa.
A vontade é de ir a pé. Sair, deixar o carro, e ir a pé, mas não posso, já disse que o carro é uma prisão. Provavelmente, eu pertenço mais às coisas do que elas a mim. Eu queria ter a coragem para mudar essa situação, mas não posso, sou muito fraco. Tanto trabalho para dominar as coisas, para descobrir, quando se está preso em um engarrafamento, que são as coisas que te dominam. É frustrante.
Frustrante mesmo seria se eu quisesse mudar, mas não quero. A infelicidade está aí: querer algo e não ter. Agora, me sinto extremamente infeliz, porque desejava não estar preso neste congestionamento. Fora deste trânsito, porém, minha vida tem uma normalidade feliz. O segredo da felicidade é simples: basta viver entre as suas possibilidades e os seus desejos; fácil assim. Não busco mudanças irrealizáveis, não desejo bens cujo meu dinheiro não pode comprar, não saio do meu espaço seguro que está entre o real e a minha ambição. Desta forma, posso até dizer que estou levemente feliz por estar aqui, neste engarrafamento. Já não desejo sair, pois desejar, já é sofrer pelo impossível.
Um quadro imóvel havia sido pintado. Era definitivamente o anti-tráfego. Estava tudo parado. Até as motos começavam a se enfileirar entre os vãos dos carros. Tudo parado. Encostei a cabeça no banco, fechei os olhos e sonhei acordado. Imaginei-me em uma São Paulo pré-São Paulo, onde o rio Tietê era acompanhado por enormes planícies verdes, o ar era puro e eu caminhava livre por suas margens. Voltei a mim com a sinfonia de buzinas que se iniciava; o que deixava a situação ainda mais difícil. A cacofonia era insuportável, porém, não sei até que ponto mais insuportável do que o silêncio do cárcere automotivo. No insustentável silêncio que se fazia, a ladainha de buzinas era uma prece para o fim daquela situação; uma forma de unir a todos na mesma reclamação. Resolvi buzinar, também tinha o que reclamar.
Como em uma ação que leva a uma reação, depois de minha buzina o homem que estava preso no carro da frente tomou para si a sua liberdade. Saiu do carro e foi em direção ao rio. Em princípio pensei que era o stress que caminhava para tirar satisfação, mas não, ele nem me olhou. Ele foi em direção ao rio, sem olhar para trás, sem esconjurar a vida: sereno.
A serenidade dele era incômoda. Ele olhava para o rio como quem olha para o mesmo rio de minha pré-São Paulo, não para o Tietê que conhecemos: sujo, poluído, canalizado ao redor de uma cidade cinza. Ele olhava para aquele rio como se visse beleza naquilo. A sua serenidade me incomodava, e me incomodava o fato de eu não ter conseguido lhe dar o troco. Ele não tinha se afetado com a minha buzinada; não xingou, não foi tirar satisfação, nada.
Resolvi buzinar de novo. Não era de bom tom abandonar o carro daquele jeito no meio da pista; e se – se mesmo – o trânsito andasse? Buzinei. Nada: irredutível; ele nem sequer olhou para trás. Ele continuava olhando o rio, admirando a paisagem cinza e escutando o gorjear das buzinas.
Voltei-me a concentrar nas planícies da minha pré-metrópole. Aquilo era belo. Caminhava solitário pela vegetação rasteira que circundava as margens do rio. A minha volta, imponente estava a Mata Atlântica, que não era ainda uma memória. Nesse meu caminhar, vi o homem que olhava para o rio serenamente; ele já estava lá, mesmo em tempos imemoriáveis. Como era agradável o som doce da cantiga propagada pelo vento tremulando as águas do rio. Talvez fosse a música, mais do que a beleza visual daquele lugar, que atraísse o homem.
Haveria beleza na cacofonia da cidade? Ainda era, para mim, incompreensível aquela entrega ao rio sem vida. Se ainda o rio tivesse se mantido o mesmo daqueles outros tempos, onde ainda era possível escutar o concerto dos ventos sobre a água... Mas não tinha; o rio estava morto. Há beleza na morte? Aquele homem olhava a morte tão serenamente que eu, de incomodado, passei a temê-lo. Tenho que dar graças por ele não ter se incomodado. Alguém que olha as águas sem vida com tal naturalidade, não teria, penso eu, o menor problema de matar. Escutamos rotineiramente sobre mortes no trânsito por causa de discussões bobas; morreria eu por causa de uma buzinada?
O que ele tanto olha para aquele rio? Desde que saiu do carro permaneceu na mesma posição; incorruptível. Uma vez, eu li em uma revista uma matéria sobre “o prazer de matar”; neste artigo havia entrevistas com caçadores, assassinos e até um alemão que trabalhou em Auschwitz. O que mais me assustou foi a declaração de um condenado por assassinato que disse que, após a morte, gostava de ficar vendo o corpo da vítima se decompor. Ele escondia o corpo em um lugar aberto, porém, escondido – como em uma mata fechada – e ia visitar a morte semana a semana. Aquele homem estava parado vendo a morte, o rio morto, a decomposição de uma cidade, e era isso que me assustava.
Não, ele não olhava a morte. No passado vivo do rio, ele continuava a olhá-lo do mesmo jeito, com os mesmos olhos serenos. Não era a morte que olhava, era o rio em si. Ainda longe daquele homem, sentei-me nas margens do Tietê e procurei entender o que ele tanto buscava. Mal me sentei, saiu das águas uma criança linda; uma menina branquinha, cabelos castanhos, verdadeiramente uma flor. Ela chegou perto de mim e sorriu. Eu logo tirei minha camisa para cobrir sua nudez, mas ela recusou:
- Obrigada, logo terei tudo o que eu quero.
Aquela frase soou como um nada dissonante em meus ouvidos. Ofereci novamente a camisa para cobrir-se e ela apenas sorriu, balançou a cabeça e sentou-se ao meu lado. Aquela pequena flor, que deveria ter uns dez anos de idade, tinha um ar atemporal no seus traços e feições, como se estivesse perdida no tempo e no espaço. Sempre imaginei que a São Paulo pré-colonial fosse habitada apenas por índios. O que fazia ela lá?
De volta à cidade cinza, eu continuava olhando o mar de carros estacionados na via-expressa. Carros e motos enfileirados, tudo parado. E ainda estava ele lá, o homem, incorruptível. Por que olha tanto para o rio? A cidade pulsa. Apesar do congestionamento, a cidade pulsa. Do outro lado da marginal o trânsito flui fácil, a cidade respira, a cidade trabalha. Olhando para os carros ao meu lado, todos estavam em atividade; uns digitando no laptop um relatório a entregar, outros falando com dois celulares ao mesmo tempo tentando fechar negócios; e, nos carros de vidros fumês, quem sabe? Todos estavam em atividade. Aquele congestionamento era a horizontalização de um edifício; cada carro era um apartamento que vivia por si próprio. A vida pulsava na cidade e aquele homem lhe dava as costas para olhar o rio morto. Foi então que entendi.
Aquele homem estava literalmente dando as costas para a vida. A única explicação possível para sua admiração pelo rio era o seu desejo de morte. A cidade pulsava e ele negava aquela pulsação. A cidade corria, apesar do congestio-namento, e ele negava aquela movimentação. Ele admirava o rio morto. Ele desejava o rio morto.
Talvez minha buzinada tenha sido o estopim para seu desejo suicida. Tenho que admitir, foi minha culpa. Talvez aquele som tenha sido a gota d’água de sua paciência para com a vida, para com a cidade. Eu não posso carregar o peso da morte sobre mim, tenho certeza. Talvez seja melhor eu lhe convencer a não saltar. Mas se sair do carro e dar as costas para a cidade, também estarei dando as costas para vida que pulsa; talvez ele me leve junto consigo para as profundezas do Tietê. Não, não quero a morte.
A garota continuava sentada ao meu lado em silêncio na pré-São Paulo. Olhávamos o rio de onde ela nasceu para mim; aquele pequeno anjo.
- Qual é o seu nome? – perguntei.
Ela se levantou e suspirou no meu ouvido sua graça.
- Sério? Então, eu acho que lhe conheço. Sim, você está diferente, mas eu acho que lhe conheço. Mas o que faz aqui nestes tempos imemoriais?
- Eu tenho fome. – respondeu a menina meio que mudando de assunto.
- Vou ver se acho alguma fruta para você comer. – respondi e sai para procurar algo para alimentar a pequena menina.
De volta ao presente, ainda tentava conciliar a minha culpa por ter plantado o desejo de morte naquele homem. Ele olhava para o rio hipnotizado por suas águas turvas. Iria pular a qualquer momento, eu previa. Não havia outro motivo para a serenidade daquele homem ao olhar a morte líquida e turva. Ele iria pular.
A cena de sua saída do carro; decidido em direção ao rio, reverberava em minha mente. Era a cena de quem nega a vida, a vida de uma cidade que pulsa; era o peso da tragédia moderna, era a minha buzina assassina.
Logo, voltei com uma maça para alimentar a pequena flor que havia nascido do rio.
- Lhe trouxe uma maça. Espero que você goste.
A menina arrancou a fruta de minha mão e a engoliu em apenas uma mordida.
- Quero mais. Ainda tenho fome. – declarou a pequena.
- Eu vou pegar mais uma para você.
- Não. Eu quero a árvore inteira.
- A árvore inteira? Você tem certeza que consegue comer a árvore inteira? – declarei rindo, como se aquela frase só pudesse ser pronunciada pela ingenuidade.
- Sim, quero a árvore inteira. Eu sempre tenho fome. Onde está a macieira?
- Daquele lado, ali. – apontei para o lugar onde havia encontrado a árvore e a menina saiu correndo na direção que lhe falei. Sumiu.
O homem continuava olhando o rio morto. O homem continuava olhando o rio vivo. O mesmo homem; rios diferentes. Porém, aos poucos o Tietê do passado ia tomando a forma do presente: as águas iam escurecendo, a vida sendo morta; o homem sendo o mesmo, o tempo sendo uno. Sonho e vigília era apenas uma dura realidade: a cidade cinza que pulsava.
Foi então que aconteceu: incômodo, medo e culpa; o homem se virou, olhou para mim profundamente e caminhou em minha direção. Incômodo, medo e culpa; eu não sabia do que aquele homem seria capaz. Chegou perto do carro e bateu no vidro, eu, mesmo apavorado, abri. Ele abaixou e suspirou no meu ouvido:
- Você nunca deveria tê-la alimentado. Ela sempre tem fome.
- Ela sempre tem fome. – repeti.
“Logo terei tudo o que eu quero”, ela havia me dito e, realmente, conseguiu. Tornou-se uma velha gorda que devora tudo o que vê pela frente. É ela quem parou o trânsito; sentou-se na frente dos carros e impediu o tráfego. Parados: esperamos apenas a hora que ela venha nos devorar.

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

CONTO XXII - DENTES-DE-LEÃO


Sara tinha só oito anos quando presenciou algo que marcaria sua vida para sempre. Era um domingo de sol e ela e seu avô brincavam no meio do jardim, sentados na grama, rodeados de flores. A casa do simpático velhinho era enorme e comportava um jardim que dava inveja ao prepotente concreto da cidade. Ele sempre gostava de dizer que era uma casa construída no meio de um jardim e não o contrário, o que é tão comum nos dias hoje.
Não é difícil ver anúncios publicitários onde condomínios tentam vender a paz da natureza como uma de suas qualidades: “Tantos metros quadrados de área natural preservada”. A família bonita, feliz e falsa como toda aquela propaganda, demonstra toda alegria inerente ao contato com a natureza e isso graças aos “tantos metros quadrados de área natural preservada”. Que beleza. Mais há uma pergunta que está implícita, que apenas as pessoas que querem realmente enxergá-la conseguem perceber: “Quantos metros quadrados de área natural foram devastados para a construção do condomínio?” Pois, se há uma parcela preservada, há também uma parcela não-preservada, a qual foi sacrificada para que mais um monte de casas de auto-padrão fossem construídas. Os “tantos metros quadrados de área natural preservada” não são mais do que uma compensação. Compensação esta, que ainda poderia ser oferecida como um atrativo a mais para a venda. Compensação esta, que não era uma ato de benevolência, mas que estava prevista por lei. É impressionante a cara-de-pau de publicitários e homens de negócio, que omitem as perguntas mais importantes para vender seu objeto.
É exatamente por isso que a casa do avô de Sara era importante e fazia inveja ao concreto da cidade. “Uma casa no meio de um jardim”, ele sempre dizia. Em um mundo onde a beleza, a felicidade, o amor, etc. são categorias que podem ser padronizadas e explicadas racionalmente, os homens se tornam insensíveis a tudo que subverta a ordem da racionalidade. Tudo tem que ter uma função. “Para que uma casa no meio de um jardim?”, perguntariam aqueles que acham supérfluo uma árvore plantada no quintal, um canteiro cheio de margaridas, cheio de dentes-de-leão, além de outras flores. A grama encharcada, quando chovia, sujava os sapatos caros das visitas, seria melhor azulejar todo aquele gigantesco quintal. Muitos até aconselhavam o avô de Sara: “Com um quintal desse tamanho você poderia construir uma piscina, aumentar a garagem para que mais carros pudessem ser colocados, entre outras coisas”. Mas isto era supérfluo para o simpático velhinho. O que importava, verdadeiramente, era a natureza englobando aquela casa.
Há lições que aprendemos quando crianças e que ficam guardadas em nosso inconsciente, escondidas em algum lugarzinho de nossa cabeça até o dia em que somos chamados de volta. O que nos parece uma epifania é, na verdade, a cera derretendo em nossas costas depois de tanto tempo hipnotizados pelo sol. As asas que nos pareciam tão seguras, construídas para levantar voou e chegar ao astro prepotente, não são mais do que aquilo que nos tirou os pés do chão. Sara tinha apenas oito anos quando aprendeu uma dessas lições.
Ela e seu avô aproveitavam o domingo de sol sentados no jardim. As brincadeiras se desenrolavam. Brincavam de mal-me-quer bem-me-quer com as margaridas, assopravam os dentes-de-leão que construíam uma neblina de sementes que voam ao vento calmo, rodeando as duas personagens daquela paisagem, deitavam-se ao chão e tentavam descobrir desenhos nas nuvens. Os dois, descalços, afundavam os pés na terra e sentiam a grama entre os dedos. Ficavam olhando em silêncio para o céu azul, sentindo uma leveza a qual Sara, com a ingenuidade da infância, achava que lhe acompanharia por toda a eternidade.
O avô, sentindo uma energia quase que transcendental trazida pelo vento, teve vontade de compartilhar com a neta um ensinamento. “Venha Sara, quero te ensinar uma coisa”. O avô correu na frente e pegou em suas mãos um dente-de-leão. A menina adorava brincar de assoprar as sementes daquela flor e logo se empolgou com a brincadeira. O avô, preocupado que o ensinamento passasse batido pela empolgação da garota, logo falou: “Calma, Sara, agora vamos apenas olhá-lo”. A menina ficou decepcionada, mas compreendeu que o avô tinha algo sério para lhe mostrar.
Os dois se sentaram na grama e o velho levantou a flor para que esta ficasse bem a frente dos olhos da menina e perguntou: “O que você vê?” A menina com sua ingenuidade inerente aos seus oito anos respondeu rapidamente: “Ora, um dente-de-leão”. “Sim, Sara. Que mais? Tente olhar cada sementinha individualmente”, perguntou o velho, percebendo que havia sido muito amplo em sua pergunta. Sara olhou para cada uma daquelas coisinha brancas espetadas na flor e, apesar de todo seu esforço, respondeu: “Não enxergo nada além das sementes”.
O avô se achegou mais perto da menina e sussurrou em seu ouvido: “você pode guardar um segredo?” A menina fez que sim com a cabeça, balançando-a para cima e para baixo rapidamente, curiosa em compartilhar algo secreto. O velho, experiente, sabia que, para que seu ensinamento fosse apreendido, deveria envolver sua história em um ambiente fantástico. A magia sempre foi um caminho para ensinar aqueles que ainda não estavam afetados pela prepotência da racionalidade humana.
“O que você vê não são sementes, são, na verdade, pequenos homenzinhos”, disse o avô. A menina arregalou os olhos estupefata e repetiu sem pensar no que dizia, totalmente de forma mecânica: “pequenos homenzinhos”. O velho achou a atitude da menina uma graça, ela estava completamente hipnotizada com a idéia que ele havia plantado em sua cabeça. Pegou o dente-de-leão das mãos do adulto e começou a olhar aquela flor mais atentamente. “Pequenos homenzinhos?”. Pressionava os olhos tentando enxergar algum detalhe que pudesse comprovar a novidade.
“Sim, cada haste dessa, fincada na planta, é um homenzinho. Não de verdade, lógico, mas de um outro tipo”. A menina continuava tentando achar os detalhes olhando fixamente para a flor. O velho apontou com o dedo e mostrou: “olha, a haste não parece um corpo? Sobre este corpo podemos até ver os seus cabelos brancos, assim como os meus”. Sara iluminou-se, ela havia enxergado os pequenos homenzinhos que seu avô havia lhe falado. Sua alegria era intensa, ela nunca desconfiaria que ali, bem próximo a ela, fincados em uma flor com a qual costumava brincar, havia um mundo paralelo ao dela.
Sara ficou imaginando quantas vezes havia soprado aqueles homenzinhos para longe apenas para se divertir. Sentiu-se culpada. “Vô, quando assopramos as sementes, matamos os homenzinhos?” O avô sorriu com a ingenuidade da menina. Ele teve que pensar um pouco. Não era uma pergunta que ele estava esperando em seu ensinamento, mas acabou usando esta para emendar sua lição. “Bem, sim e não. Quando assopramos as sementes para longe estamos separando os homenzinhos de sua flor-origem, porém, isso é natural. Se nós não assoprarmos, o vento fará isso. Há um momento na vida desses homenzinhos que eles precisam voar. Uma força exterior e muito maior do que eles, os forçará a voar. Assim que acontece”. O velho respirou fundo e iniciou sua lição: “O mesmo acontece com a gente. Aconteceu comigo e acontecerá com você. Você irá crescer e será soprada para longe de sua flor-origem. Vagará pelo mundo atrás daquilo que lhe trará felicidade, sendo que muitas vezes vagará sem sentido, acumulando coisas, ignorando os pequenos e alegres momentos da vida, não respeitando seu corpo, sua mente e seus princípios, tudo para alcançar seus objetivos”. O velho não esperava que a neta entendesse o que estava falando, na verdade, ele estava narrando sua própria juventude e, de certa forma, desejava evitar que Sara seguisse o mesmo caminho. “Você talvez não entenda o que estou falando, mas quero que se lembre, um dia, de nossa conversa”.
A menina não percebera a gravidade da voz do avô, ela ainda estava entretida com a nova descoberta, com os homenzinhos que habitavam aquela flor. “Sara”, a menina voltou a si com o chamado do velho, “assopre o dente-de-leão, faça os homenzinhos voarem”. A menina sorriu e fez o que ordenava o mais velho. O vento que saía de sua boca deu asas àquelas personagens mágicas. Logo se via um redemoinho de sementes girando pelo ar, suspensos pelo sopro de Sara e pela brisa daquela tarde de domingo. Os homenzinhos pareciam perdidos na amplitude do mundo que se abria, depois que as amarras que os prendiam àquela flor tinham sido removidas. Flutuavam, prepotentemente livres.
Sara e seu avô observavam a cena que se passava naquele cenário idílico, presente dentro da cidade que ergue e destrói coisas belas. Assim como, para Sara, os homenzinhos eram percebidos como um mundo paralelo, aquela casa no meio de um jardim se transfigurava em uma São Paulo diferente, quase impossível de se acreditar. Mas eles estavam demasiadamente entretidos com as sementes que voavam ao redor de suas cabeças para pensar nessas coisas.
A menina, sem reconhecer a profundeza da lição de seu avô, arrancou mais duas flores do chão e assoprou, dando liberdade a mais alguns homenzinhos. Alguns pareciam seguros de si e achavam que poderiam racionalmente controlar seu voou, outros pareciam desencantados e se deixavam levar pelo vento dominical. Porém, o que ambos os grupos não percebiam é que haviam perdido a sua unidade. Agora, eram indivíduos soltos pelo mundo. Não eram mais uma flor, eram, apenas, sementes que lutavam para fertilizar o melhor pedaço de terra.
Aqueles que se achavam suficientemente racionais, ficavam flutuando no ar por mais tempo. Eles, antes que pudessem cair em qualquer solo, tentavam projetar o dente-de-leão perfeito. O antigo mundo em que habitavam era contingente demais para eles, qualquer brisa leve, qualquer menina brincando com seu avô, poderia lhes levar para longe, e isso não poderia estar certo. Aqueles homenzinhos desejavam a segurança, um terreno sólido para construir um mundo sólido, onde o acaso não existisse. Eles, tão pouco estavam preocupados com a unidade que se perdera, achavam que cada um era responsável por si mesmo. O contato com a unidade, se é que havia realmente esta unidade, era de responsabilidade de cada homenzinho.
Os outros, que viviam desiludidos com a perda de um mundo coletivo e onde havia algo que lhes desse sentido, vagavam pelo ar desenganados. Aqueles mais racionais tentavam empurrar a todos para a construção do que pensavam ser o dente-de-leão perfeito. Aqueles que eram levados pelo vento e acreditavam que uma brisa ocasional também poderia trazer coisas boas, passaram a ser forçosamente empurrados para um modelo de dente-de-leão construído por aquelas sementes sem sentimentos e amorais.
Porém, a cosmovisão dos homenzinhos, livres das amarras dos dentes-de-leão, passava despercebida para Sara. O que ela podia ver, de fora daquele mundo, era apenas os choques das sementes no ar, a confusão, a desordem, o vento guiando todos aqueles indivíduos. Ela tentava, pensando nas palavras que o seu avô havia dito, que um dia cresceria e também seria soprada, se imaginar no meio daquelas sementes caóticas.

II

Um certo dia, Sara foi soprada para longe. Ela tinha dez anos quando isso aconteceu. Estava na escola quando, no meio da tarde, seu avô veio buscá-la. A menina ficou feliz por sair mais cedo e por ver o avô, porém, a expressão grave daquele senhor fez com que a menina desconfiasse que algo estava errado. O velho se agachou para ficar na mesma altura dos olhos da menina que permanecia de pé, com sua mochila nas mãos. O silêncio foi prolongado. Seu avô, um homem sempre seguro de si, não conseguia achar as palavras para a mensagem que pretendia dizer. “Sara, sua mãe sofreu um acidente de carro e...” As reticências do avô eram demasiadamente auto-explicativas. A menina já estava chorando quando ele acabou a frase, “... faleceu”. A menina correu para os braços do avô e os dois choraram, cúmplices em suas dores.
Uma semana depois, após a missa de sétimo dia, Sara estaria a caminho dos Estados Unidos. Seu pai, um empresário brasileiro que morava em Nova York havia seis anos, desde que se separara da mãe de Sara, veio ao Brasil para buscá-la, apesar dos pedidos indignados do avô para que a menina permanecesse com ele.
Seu pai sempre havia demonstrado o desejo de criar a filha. Ele achava que Lívia, a mãe da garota, não lhe dava uma educação adequada. Desta forma, não houve jeito, Sara teve que ir para os Estados Unidos. Para a menina, a nova vida não foi nada fácil. De uma hora para outra foi obrigada a viver com um estranho, pois, quando seus pais se separaram ela tinha apenas quatro anos e, desde então, só sabia do pai pelos depósitos que sua mãe recebia e presentes enviados de Nova York. A vida nos Estados Unidos lhe pareceu hostil deste o começo: o pai, a língua, os costumes, etc. Seu pai sempre esbravejava: “que absurdo, você tem dez anos e não sabe uma palavra de inglês, sua mãe era uma irresponsável mesmo”.
Roberto, seu pai, logo tratou de resolver essa questão pagando-lhe uma professora particular. Ao final de seis meses, tendo aula todos os dias, a menina estava praticamente fluente. Sara se esforçava ao máximo para chamar a atenção do pai. Ela queria mostrar que era digna de sua atenção. Seu pai era um homem trabalhador, saía de manhã bem cedo, enquanto a menina ainda dormia e voltava já tarde da noite, quando ela já estava deitada. Ele era um dos diretores de uma empresa publicitária americana e dedicava quase que cem por cento de sua vida para o trabalho. Era o que os americanos costumam chamar de workaholic.
Apesar da babá que a acompanhou até os quatorze anos, Sara logo aprendeu a se virar sozinha. Seu pai, sempre ausente, era apenas um patrocinador de suas atividades. Ela preferia não voltar para casa quando a aula terminava - o lar vazio nada lhe acrescentaria - e ficava estudando na biblioteca até tarde da noite. Tornou-se uma viciada nos estudos, suas notas estavam sempre acima de nove. Essa sua atitude era menos uma forma de tentar se adequar ao sucesso do pai, do que uma forma de defesa contra um mundo que lhe parecia hostil. Tornar-se igual a Roberto, seu novo espelho, não era seu objetivo, porém, as atitudes dele faziam com que Sara achasse normal a vida que levava. Correr era uma forma de não encarar o mundo onde vivia. Já dizia o poeta norte-americano Ralph Waldo Emerson: “Quando se patina sobre o gelo fino, a segurança está na nossa velocidade”. Sara se protegia na eficiência. Se fechava no mundo ordenado dos parágrafos, capítulos e pontos finais dos livros que lia. Quanto mais estudava, mais seu futuro lhe parecia seguro. Era sua forma de acreditar que um dia estaria patinando longe do gelo fino. Porém, não percebia que, ao contrário de parar, a tendência era correr cada vez mais rápido. Era escrava da velocidade, acorrentada por sua própria eficiência.
Foi assim que Sara se formou em direito por Harvard. Ela já era, desde os primeiros anos da faculdade, devido sua eficiência quase que sobrenatural, respeitada pelos seus professores e colegas de sala. Estava apenas no segundo ano quando foi convidada a trabalhar em uma grande empresa de advocacia americana, estagiando com um dos mais famosos advogados criminalistas do país. Ela não apenas acompanhava os processos, como também o auxiliava pesquisando profundamente o caso e suas possíveis soluções jurídicas. Todos sabiam que seu caminho já estava traçado. Ela não tinha dúvidas, sentia uma prepotência humilde em relação a isso. Assim que se formasse teria uma sala só sua na empresa e seria uma das grandes neste ramo no país.
Pouco tempo depois de concluída a faculdade, Sara já era conhecida. Havia derrotado no tribunal dezenas de advogados respeitados. Sua carreira decolava na empresa. Tinha apenas 25 anos quando se tornou uma das sócias. Nunca havia perdido um caso. Ela era quase perfeita, era símbolo de vitória certa, era uma das advogadas mais caras do país. Algumas pessoas a odiavam ferozmente. Sara não era ética, ela era eficiente. Não se importava com o crime de seu cliente, se importava com a causa ganha. Ela adorava repetir: “Não me interessa se a pessoa é culpada, me interessa se há provas suficientes para acusá-la”. Tinha o mundo nas mãos. Sara patinava velozmente sobre o gelo fino. Quanto mais rápido ela seguia, mais ela queria desafiar os seus próprios limites. A velocidade era o seu mundo seguro, nele era imbatível, nele o acaso não existia. Tinha completamente sua vida sobre controle.
Porém, um dia o acaso bateu em sua porta. Sara estava advogando em um dos casos mais conturbados dos Estados Unidos. Seu cliente era o filho de um senador que estava sendo acusado de estuprar uma menina de onze anos, filha do caseiro da família em New Hampshire. Esse era um daqueles casos que a mídia costuma acompanhar quase que vinte e quatro horas por dia. Sara era praticamente uma celebridade nacional, ganharia uma fortuna se conseguisse provar a inocência do rapaz. O senador estava lhe pagando montanhas de dinheiro para que livrasse seu filho da cadeia. Um caso desses sujaria sua imagem na política para sempre, seria um desastre para sua família anglo-saxônica branca e protestante. A eficiente advogada estava confiante, era praticamente uma causa ganha. A menina havia esperado dois anos para contar para seus pais o que havia acontecido. Só após a demissão do pai resolveu falar. Para Sara era óbvio: o caseiro havia feito sua filha inventar essa história para se vingar do ex-patrão, e, mesmo que o rapaz fosse culpado, quem conseguiria provar algo dois anos após o crime? Além do mais, a família do senador Stuart sempre foi um exemplo na sociedade e Sara saberia usar isso a seu favor.
No dia do julgamento tudo estava correndo bem. Sara havia conseguido provar para o júri, que o pai da menina não era uma pessoa confiável. Havia descoberto que ele tinha sido preso por roubo, quando tinha vinte anos de idade. “Eu tinha fome. Roubei porque tinha fome”, o caseiro gritava olhando para todos no tribunal. Não interessava, Sara havia provado que ele não era uma pessoa confiável. Do outro lado, Sara mostrou como a família Stuart era respeitada, o quanto participava de atividades beneficentes, etc. Não haveria dúvidas sobre qual família teria crédito. Sua última testemunha seria a menina. A causa estava praticamente ganha, era só fazer a menina se contradizer em sua própria fala.
Sara se levantou e foi em direção a testemunha. Ela caminhava em silêncio pelo tribunal, assim como um Leão que cerca sua presa. Sara pediu para a menina relatar o que havia acontecido segundo “sua versão”. A garota não conseguia pronunciar bem as palavras. Via-se que estava extremamente nervosa, com o pensamento entrecortado e sem sentido. Para Sara, esta atitude era apenas uma prova que a garota estava inventando a história, pois, como ela disse ao júri: “se esta menina realmente tivesse vivido a experiência a qual acusa o meu cliente, não tenho a menor dúvida que se lembraria perfeitamente dos detalhes”.
A garota, talvez por raiva pela falta de crença, talvez por se sentir desafiada, disparou-se a falar. Ela havia sido transportada para o passado e via, desta vez como expectadora, a cena de sua própria violação, a qual descrevia com todos os detalhes. “Era aproximadamente umas dez horas da manhã. Eu varria o quintal da casa a pedido dos meus pais. Eles tinham ido ao supermercado para comprar comida, material de limpeza, entre outras coisas, para receber os patrões, a família do senador Stuart. Então, eu ouvi o barulho de uma buzina e, pensando que eram os meus pais que retornavam do mercado, fui até a entrada para abrir o portão. Chegando lá, percebi que era Mark, o filho do senador, quem chegara. Ele estava sem as chaves. Depois, durante aquela semana, fiquei sabendo que ele não viera para ficar com a família, estava hospedado em outra casa em New Hampshire, talvez de um de seus amigos. Por algum motivo que desconheço, ele resolveu ir até a casa da família Stuart naquela manhã”.
Mark, o acusado, parecia estar incomodado com o relato da menina. Era a primeira vez que os dois se encontravam frente a frente desde o acontecido. Balançava o pé intermitentemente. A garota continuava seu discurso: “deixei ele entrar. Ele estacionou o carro e eu fechei o portão assim que ele passou. Eu continuei varrendo o quintal e ele permaneceu dentro carro. Quase dez minutos tinham-se passado depois que Mark entrou. Como ele ainda permanecia dentro do carro, comecei a ficar preocupada e decidi, então, ver o que estava acontecendo. Cheguei perto do carro e ele estava com as janelas e com os olhos fechados e com a cabeça encostada no banco. Achei que estivesse desmaiado. Bati no vidro da janela e ele abriu os olhos. Devia estar apenas dormindo. Pedi desculpas e saí, porém...”
A menina pareceu hesitar. “Porém” sempre fora uma palavra difícil de se falar. De alguma forma, esta palavra tem o poder de definir vidas que poderiam ter sido guiadas por outros caminhos. Todo “porém” se mostra como o fracasso de uma possibilidade que mudaria o futuro das pessoas. Amores, empregos, fortunas acabam ou começam por causa de um “porém”. No caso da menina, sentada no tribunal, “porém” representava o fim da pureza, da ingenuidade do mundo e, quando falou essa palavra, essa pesada palavra, o que via era a possibilidade de uma vida que podia, e podemos dizer deveria, ter permanecido a mesma. A partir do seu “porém”, ela, sua vida, a vida de sua família, a vida da família Stuart já não seriam mais as mesmas. A partir do seu “porém” seu relato ganharia as feições dramáticas de um teatro hamletiano. A vida caminhava de forma normal, “...porém, ele abriu a porta do carro enquanto eu passava e me puxou para dentro do veículo. Não entendi o que estava acontecendo. Ele enfiou a mão no meu short...” A menina olhava para baixo e fechava os olhos como se pudesse se cegar das imagens que passam em sua mente. Todos no tribunal puderam ver quando, ainda de olhos fechados, a garota derramou suas primeiras lágrimas. “...ele enfiou uma mão no meu short, enquanto... com a outra tampava a minha boca. O máximo que eu podia fazer era gritar um grito mudo, abafado pela mão de Mark. Sentia sua respiração, seu bafo alcoólico sobre o meu rosto.” De repente a garota parou, desatou-se a chorar. Por mais que ela tentasse continuar não conseguia, o que era lágrimas tinha virado desespero, chorava desesperadamente. Sara, fria, controlada como sempre, permanecia em pé em frente da testemunha, confiante na vitória. Ela sabia, o juiz sabia, o júri sabia que nesse mundo não havia espaço para sentimentos. Aquilo era, para Sara, uma ciência quase exata. Não havia acaso, estava tudo sobre controle. Ela havia estudado o caso, havia descoberto os antecedentes do pai da garota e, além do mais, não havia provas suficientes que o crime havia acontecido. Era uma causa ganha. Porém, novamente um porém apareceu para mudar a vida de alguém nesta história, o acaso lhe surpreendeu. A retórica engasgada da garota foi suficiente para libertar as paixões do acusado, mover seus afetos, comovê-lo. Mark, o rapaz acusado, vendo a garota chorando, de maneira inexplicável, se emocionou e disse em alto e bom som no tribunal, enquanto deixava cair suas primeiras lágrimas, para que todos ouvissem: “Eu sou culpado, eu sou culpado, confesso. Eu a estuprei...” Um reboliço atingiu todas as pessoas ali presentes, quase ninguém ouviu o arrependimento de Mark: “...perdão, eu sou um monstro. Eu estava embriagado... eu sou um monstro.” É impossível saber, com certeza, o motivo desta ação. Por que o rapaz teria se confessado? Essa era uma pergunta a qual Sara, parada e boquiaberta no centro do tribunal, também havia feito a si mesma. Ela havia perdido, ela se sentia perdida.

III

Novamente Sara foi soprada para longe. Seu mundo perfeito havia desmoronado. Ela não seria culpada pelo rapaz ter confessado, mas o gosto da derrota era amargo demais para ela. Sara não conseguia entender por que Mark havia se declarado culpado, a causa estava praticamente ganha. Era como se a justiça, feita naquela tribunal, tivesse sido injusta com a advogada. Depois de tanto trabalho, ela não merecia perder.
Só quem já perdeu algo que dava sentido a sua vida, poderia saber o que Sara estava passando. A eficiência era o fio condutor de sua narrativa, sem ela sua personagem não teria vida. Depois da derrota para o acaso, Sara retornou a sua casa e lá ficou. Não foi trabalhar no dia seguinte, nem no posterior. Um mal-estar tremendo lhe invadia a alma. Não tinha forças para nada. Sentia-se como se a vida inteira se transformasse em um engano. Sentia como se a eternidade houvesse lhe sido roubada.
Sara passou a vida procurando a perfeição em seu trabalho e, por isso, se afastou dos amigos, da família e das sensações puras da vida. A derrota em obter a perfeição era como se sua vida deixasse de ter sentido. Jogada no sofá da sala, ela só pensava na morte. Seus pensamentos corriam mórbidos pelo apartamento; a janela, as facas na cozinha, o gás, eram possibilidades. A morte pode parecer uma atitude extrema para aqueles que estão de fora de uma situação de desamparo, mas era para ela uma ação heróica, uma questão de honra. Assim como um samurai, que tira sua vida após a derrota, Sara pensava na morte, porque sentia que havia fracassado em sua missão, uma missão imposta por regras feitas por desconhecidos. Sua vida tinha o sabor de uma promessa não cumprida.
O conforto de seu apartamento havia se transformado em uma desconfortável prisão criada por ela mesma. Sara sentia o peso de dedos invisíveis lhe apontando as falhas. O gosto da derrota tinha o sabor das águas poluídas por absinto. O cheiro fétido de seu corpo, sem banho a uma semana, lhe indicava uma decomposição prematura, física e emocional. As vozes que pareciam gritar em seus ouvidos: “loser”; lhe causavam gélidos arrepios. Os olhos petrificados esperavam a coragem de um Édipo para tornarem-se cegos. O peso descomunal do mundo caía-lhe sobre as costa. O único refúgio que via para si, era a morte.
Sara havia seguido as regras, havia seguido o plano deles, o plano de todos aqueles que lhe mostraram um modelo a seguir para atingir a felicidade. Seu pai seguia o modelo, ela seguiu o modelo. Sara não tinha amigos, suas relações eram estreitamente profissionais, mas tinha o sucesso que solidificaria sua felicidade. Tinha um apartamento em um zona requintada da cidade, um carro de luxo, era sócia de uma das maiores empresas de advocacia do país, tinha dinheiro sobrando no banco. Mas o impulso da morte que sentia naquele momento, fugia do que os “planejadores” chamariam de felicidade.
Toda sua vida lhe parecia um grande engano, como se a velocidade deixasse de fazer sentido, como se lhe houvessem omitido algo importante, como se as regras houvessem sido mudadas durante a partida. Uma promessa não cumprida que lhe jogou no sofá desejando a morte.
Ela se levantou e foi até a cozinha. Olhou as facas e o fogão que lhe proveria o gás, mas não era isso que desejava. Sara precisava de algo sem volta. Não queria começar a passar mal e sentir necessidade de desligar o gás, ou cortar os pulsos e chamar o socorro. A morte deveria ser certa. Talvez, em sua própria morte, ela encontrasse algo que lhe tirasse no mar de incertezas em que estava afundada.
De longe, ainda da cozinha, encarou a janela da sala como um condenado que encara seu executor. Resignada de seu crime, foi caminhando até o objeto que lhe traria a paz. A cada passo que dava, ouvia sua sentença: “A ré é culpada por ter falhado; culpada por deixar seu mundo desmoronar; culpada por deixar escapar por entre seus dedos a eternidade planejada a priori; culpada por falhar em metas auto-impostas, como nunca perder um caso; culpada por decepcionar todos aqueles que esperam a perfeição; culpada por perder; culpada por se sentir infeliz; culpada por não ter ninguém para chorar por ela depois de deixar a vida; culpada; culpada; culpada; e, assim sendo, a sentença que lhe cabe é a morte”. Sara fazia seu próprio julgamento. Não existiam juízes, ela mesma empunhava o martelo que era batido a cada passo em direção à janela.
Sara abriu as cortinas e, olhando para baixo, avistou a avenida que corria em frente a seu prédio. A janela lhe parecia a saída mais certa de uma vida que já não fazia mais sentido. Ela não pensava na dor que sentiria quando seu corpo atingisse o chão, pensava no estardalhaço que a morte caindo do céu poderia causar. Não queria chamar atenção para si. Não queria que seu corpo sem vida, exposto e sem defesa, fosse utilizado como exemplo de fracasso. Odiaria que a sacralidade da morte – da sua morte - fosse profanada por uma mãe que, puxando uma filha horrorizada pelas mãos, apontaria o dedo inquisidor para a massa de pele, osso, sangue e asfalto; morta, ali no chão, para ensinar-lhe algo: “Olha, filha, esse é o destino dos fracassados. Por isso, você tem que estudar, trabalhar, enriquecer o máximo que conseguir. Faça seu destino para não acabar assim”. Sara odiaria a idéia que o seu “não-ser”, fosse usado como exemplo “do que não ser”.
“Como uma das maiores advogadas criminalistas do país não tem um arma?”, pensava Sara. Ela adoraria ter um revólver para resolver seus problemas sem afetar ninguém. Até pensou em postergar o fim de sua vida, talvez fosse melhor planejar com mais calma sua própria morte: comprar uma arma, balas e um silenciador. Assim, poderia morrer sozinha e sem estardalhaço; só o barulho seco da bala sendo cravada no céu de sua boca. Silenciosa, rápida e sem alarde, era dessa forma que desejava a morte.
“Uma vida de sucesso transformar-se-ia em tragédia por uma simples derrota?”, alguns poderiam pensar, porém, para Sara, as coisas não eram tão simples. Para quem aposta alto, toda perda é grandiosa. Se ela fosse uma viciada em jogos, com certeza seria uma daquelas jogadoras que apostam todas as suas fichas de uma vez só, em um único número. Sara guiou sua vida como uma grande guerra, um verdadeiro Blitzkrieg, rápida e brutal. Derrotava quem quer que lhe aparecesse na frente e impedisse seus planos. Ou conquistava o mundo, ou se afundava no inferno. Tudo ou nada. Perder uma batalha, era perder a guerra, perder o sentido da luta. Por isso estava parada em frente aquela janela.
Apesar do revólver ser uma idéia melhor do que saltar do oitavo andar de um prédio, Sara não queria esperar mais. “O que adiantou eu tanto planejar a minha vida?”, pensava ela, enquanto esconjurava toda aquela situação. “O que adiantará eu planejar a minha morte? Nada”. Estava decidida a morrer. Se o fim era certo, o que lhe interessaria os meios? O acaso já havia brincado demasiadamente com a pobre moça, ela queria ser tomada, novamente, com sua própria morte, pela sensação de possuir o controle da situação. Prolongar sua vida era dar espaço para a contingência.
Sara abriu a janela. O som que antes era abafado pelo vidro, agora entrava caótico dentro de sua sala. A cacofonia da cidade lhe parecia o canto das sereias chamando os marinheiros para a morte. O vento forte encharcava o cômodo, esvoaçava suas roupas e desgrenhava seu cabelo. Os documentos do processo, objetos de tanto estudo, pousados sobre uma das mesas da sala, sairiam voando não fossem os pesados pesos de papel que os seguravam. Sara, pela primeira vez depois do julgamento, achou graça. Sorriu timidamente ao ver os documentos se batendo entre si, impulsionados pelo vento; pareciam desesperados procurando a liberdade. Sara, sem se preocupar com a importância daqueles documentos, resolveu libertá-los. Depois de morta, quem a culparia pela bagunça em seu apartamento?
Como uma menina que desconhece as conseqüências de seus atos, ou, que conhece, mas se arrisca em levar bronca pela simples brincadeira, Sara foi caminhando na ponta dos pés, parou em frente a mesa e levantou o primeiro peso de papel. “Ops”, deixou escapar com falsa surpresa. Os documentos saíram voando se espalhando pela sala inteira. Cada vez que levantava um dos pesos de papel, repetia o seu “ops” maroto. Logo, ela estava rodeada por papéis que voavam em torno dela. Aquela multidão de documentos se batendo no ar, lhe jogou, sem piedade, para o passado. Era a cera derretendo em suas costas.
Como um Hermes que volta ao chão com as asas descoladas, Sara despencou do céu para aquela tarde de domingo que brincava com seu avô. “Toda grande queda, antes do solo, nos trás a falsa impressão do voou”, Sara finalmente havia entendido o que seu avô havia lhe dito vinte anos atrás. “Veja, minha neta, como esses homenzinhos parecem perdidos. Veja como permanecem no ar, lutando contra o chão, contra uma realidade a qual não podem fugir. Por mais que eles fujam disso, em algum momento, uma brisa ou um sopro lhes levará para baixo e, durante o declínio, ainda terão a ilusão de estarem voando. O voou, assim como a felicidade, a riqueza, os amores, etc. são dependentes do vento, de uma brisa que os mantenha no ar”. A Sara, vinte anos mais nova, olhava para os homenzinhos sem entender muito bem o que seu avô dizia; a Sara mais velha, sorvia aqueles ensinamentos como se recuperasse a própria humanidade.
Passado e futuro corriam juntos, o tempo havia deixado de existir. Aquela mulher que pensava na morte, agora estava entregue ao redemoinho de papéis e sementes que a rodeava, suspensos no ar enquanto houvesse vento. Ela mesma percebia, agora, o quanto havia voado, o quanto tentou se manter no ar. Na sua ânsia por velocidade, nem percebeu o declínio, a queda e, quando a brisa acabou, o chão.
Sara dividia o mesmo tempo e o mesmo espaço com sua jovem personalidade. O apartamento em Nova York era também o jardim de seu avô. Ela sentia a grama que havia brotado no piso de sua sala. Com os pés descalços, ela afundava seus dedos no gramado que havia surgido naquele cômodo, sorrindo para as outras duas personagens.
Durante sua vida, Sara quis obter a perfeição. Esta era, para ela, a forma de conseguir a eternidade. Todos se lembrariam dela: “a maior advogada”, “aquela que nunca perdeu uma causa”, “aquela que publicou os maiores livros sobre direito”; além de toda riqueza e poder que este reconhecimento lhe traria. Ela tentou construir a vida perfeita. Só o que precisava fazer era seguir o plano que havia traçado, porém - novamente esta palavra - algo mudou em sua vida. Como um músico que não toca sem a partitura, Sara não viu concerto para sua vida, sem o plano. Desconsertada, desejou a morte. A liberdade dos papéis que voavam pela sala, era sua própria liberdade. Sara havia se libertado de uma eternidade insuportável e tirânica, do peso de uma vida repetida dia após dia. Deitada naquele gramado que havia surgido em sua própria sala, perdida no tempo e no espaço, rodeada por papéis e sementes de dente-de-leão, acompanhada da infância de si mesma e da sabedoria de seu avô, Sara percebeu que a fugacidade daquele momento era a coisa mais eterna que ela poderia ter, pois todo infinito é instantâneo. Um sorriso, um abraço, um ensinamento, uma alegria, uma descoberta, são sensações que nem mesmo o mais poderoso dos homens pode retirar de você, sensações que impregnam o nosso corpo quando são vividas com intensidade verdadeira. Tudo que é eterno caminha conosco e a verdadeira eternidade é leve como uma pluma.