domingo, 10 de agosto de 2008

Conto VI - Mundo Playmobil

João chegou na casa dos seus pais. Fazia meses, quase um ano, que não os visitava, muito trabalho na capital. Seus pais moravam em uma cidade do interior onde todos se conheciam, o ar era puro, o tempo era outro, tudo era diferente, aquela cidade era quase uma Arcádia, perdida no meio do Estado de São Paulo.
A visita de João não era uma visita comum. Seus pais iriam mudar de casa depois de passarem toda as suas vidas naquele local, criado seus filhos, João e Paulo, este último morto em um acidente de carro, construído uma história. Embora aquela casa enorme, se comparada aos apartamentos de São Paulo, não tivesse nenhum registro físico, uma prova dos acontecimentos ali passados, suas paredes, seus móveis estavam repletos de memórias. Era impossível para o casal de velhinhos olhar o balanço preso na macieira em frente a entrada e não lembrar de João e Paulo se balançando. Os objetos contavam uma história que só poderia ser revivida na memória das personagens que ali moraram.
Os pais de João, dona Margarida e seu Faustino, não queriam se mudar, porém, uma empresa iria construir no terreno que cerca o pequeno sítio deles, um novo condomínio de luxo. A Arcádia perdida tinha sido descoberta, venderiam a “paz”, a “natureza” do lugar por um preço bem alto, para trazer um “relax” para aqueles que têm dinheiro para pagar. Ofereceram uma grana alta para que o casal saísse de lá, dinheiro esse que compraria até uma das casas do super condomínio. A princípio eles recusaram, do que adiaria saírem de lá, estavam ali já há muito tempo e, além do mais, esse dinheiro não serviria para muita coisa. Não pensavam em dinheiro, a dinâmica era outra na vida dos dois velhinhos, porém, começaram a receber algumas ameaças por telefone, fato o qual João não sabia, Margarida decidiu que seria melhor se não contassem para ele, e resolveram aceitar o dinheiro.
O casal mudaria para cidade vizinha, um pouco maior do que a antiga, mas quase tão pacata. Compraram um novo sitio em um bairro afastado. Não quiseram comprar uma casa no condomínio. Aquele local que era só deles, até o fim do ano estaria cheio de ricaços metidos a besta. Eles nunca se acostumariam com esses novos vizinhos.
A visita de João foi, então, por esse motivo. Ele aproveitaria o final de semana prolongado para ajudar seus pais a empacotar e a fazer a mudança das coisas para a nova casa. Empacotar, esvaziar, desmontar os objetos foi relativamente rápido, apenas um dia de trabalho. No final da tarde, já com quase tudo guardado sua mãe pediu-lhe mais um favor. Dona Margarida pediu ao filho que fosse até o sótão e olhasse para os brinquedos, fotos, cadernos, entre outra coisa de sua infância, para ver o que ele iria querer levar com ele. João lhe disse para se livrar de tudo aquilo, pois nada daquilo servia mais, porém, ela insistiu.
João subiu ao cômodo onde seu Faustino guardava as coisas “antigas” da casa, o casal tinha um sério problema para se livrar dos objetos sem uso. Lá, aquele homem que já tinha passado dos trinta anos, achou inúmeras coisas. Ferros de passar quebrados, pneus antigos, caixas com fotos e cadernos, com pregos, parafusos e ferramentas, uma televisão em preto e branco que ainda funcionava, tudo isso deveria estar ali há anos. João também achou seus brinquedos, todos postos numa prateleira, feita com muito esmero por seu Faustino, a qual João ajudou a construir na infância. Sua bola de futebol estava ali, mucha deveras, mas estava ali, pedindo para ser chutada novamente, seu peão, umas raquetes de frescobol, uma pipa, alguns bonecos e, o que chamou mais atenção de João, uma casinha de brinquedo montada com bloquinhos de madeira.
O homem, com a cara espantada por aquilo ainda existir, pegou o objeto, fitando-o por alguns minutos. João não conseguia acreditar, ele lembrava claramente do dia que montou aquela casinha pela única e última vez. Como um quebra-cabeça emoldurado aquela “construção” ainda permanecia intacta na prateleira de seu Faustino. João costumava dizer que tinha construído uma casa igual a que ele morava. Ele não se lembrava mais porque nunca mais mexeu com aqueles bloquinhos, mas a permanência daquilo, intocável, e lutando contra a lógica – montar, desmontar e montar de novo - do próprio brinquedo, o intrigou.
Como em uma epifania, João viu naquela casinha montada com frágeis bloquinhos de madeira uma das melhores metáforas para a vida e o mundo em que vivemos. João pensou quão efêmeras sãos as coisas, assim como os bloquinhos. Aquele brinquedo, estar ali intacto, vai não apenas contra a lógica do brinquedo, como também a própria lógica da vida. Tudo em nossos dias, são peças substituíveis, assim as pessoas vivem. As roupas, os sapatos, os celulares, as casas, os empregos, os amigos, os amores, tudo apenas uma passagem.
João lembrou dos seus amigos de infância, todos se casaram e se mudaram, foram cuidar das suas vidas e não os vêm a muito tempo, nem sequer um telefonema, nada Suas namoradas, todas “mulheres da sua vida”, “amores eternos”, nenhuma ficou para ver como anda sua vida, nem para ser eterno. Lembrou também de todos os empregos, cargos e funções pela qual passou. Em todos os lugares em que trabalhou teve grandes amigos. Onde estão eles agora? Quantos celulares já teve? Desde que se mudou para São Paulo em quantas casas já morou? Tudo efêmero, apenas algumas pessoas e objetos permaneceram ao longo dos anos.
Somos peças na vida de outras pessoas, a lógica da vida é a mesma do brinquedo – montar, desmontar e montar de novo -, o problema é que quando acabamos de construir algo, seja por insegurança, seja pelo fato das “peças” não caberem mais na “construção”, olhamos o “objeto” e pensamos: não gostei, poderia estar melhor. Montamos coisas que provavelmente não gostaremos no final, construímos casas as quais não iremos querer morar. Destruímos tudo e começamos uma nova empreitada. Tudo que é sólido desmancha no ar.
João voltou a si com a voz de sua mãe lhe chamando para jantar. O brinquedo ficou, seus pais ficaram, alguns amigos ficaram. Por que essas coisas subverteram a lógica da vida, por que permaneceram? Em que bases foram construídas essas relações? O que vale realmente a pena construir e não mexer mais, como aquele brinquedo? Quais peças não são mudadas?
João fechou a porta do cômodo atrás de si e desceu as escadas se preparando para o último jantar naquela casa. Amanhã a tarde começariam a mudança. Olhou em volta, seus pais sentados na mesa, dona Margarida colocando macarrão no prato de seu Faustino, os móveis antigos de sua infância, os pratos, os talheres, tudo cheirava a história. A casa não conseguiu subverter a lógica da vida, precisa ser sacrificada por um “bem maior”, a tranquilidade de pessoas ricas. Ela seria apenas mais uma peça a ser mudada pelo sistema. Enquanto seus pais oravam agradecendo a refeição, ele pensou: estou desenganado, sei bem como o mundo funciona, espero conseguir entender porque as coisas permanecem e aceitar quando as peças mudarem na minha vida. Abriu os olhos e aproveitou o resto da noite com seus pais.

2 comentários:

Anônimo disse...

Olá meu amigo! Belo conto! Serviu muito para mim... e quantas peças eu achei, outras perdi no meio do caminho, algumas sumiram assim do nada. A vida é assim mesmo, não podemos querer que tudo paralise para sentirmos mais confiáveis e felizes. As coisas simplismente mudam de um dia para o outro, e ainda tenho muito que aprender a aceitar algumas mudanças, que muitas vezes não são brandas, mas sim que nos machucam e são severas com o nosso coração. Beijinhosss

Anônimo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.