domingo, 24 de agosto de 2008

Conto VIII - V'ela


Ela tateou o quarto no escuro. Acordou, mas parecia ainda estar em um sonho. Escuridão total, Treva. Procurou o abajur, ele não acendeu. Olhou para o rádio relógio, desligado. Parecia que tinha acabado a luz. Suas mãos percorriam o criado-mudo, conhecia o que lhe esperava naquele tatear: o abajur, o rádio-relógio, o porta-retrato, sem foto, detalhe que não era percebido naquela escuridão. De repente, sentiu um objeto diferente, não deveria estar ali. Bateu sem querer em um copo que com a mão que tateava foi jogado ao chão. Barulho. Cacos espalhados pelo chão do quarto escuro. Lembrou-se do celular, sabia que este deveria estar no criado-mudo, depois de tatear as cegas por alguns segundos, achou o desejado objeto, precisava de alguma luz, tentou ligá-lo, nada. Na treva, onde há igualdade seja de olhos fechados ou abertos, ficou parada pensando.
Fechou os olhos tentando dormir novamente, nada. Abriu os olhos tentando enxergar algo, negro. Parece que até a noite estava contra ela, a noite escura e sem lua, sem estrelas, nada apenas a escuridão. Parecia que os anjos haviam tocado a quarta trompeta do apocalipse. A noite estava mais escura do que costumava ser. Precisava de alguma luz.
Resolveu levantar-se. Dor, um grito mudo, sangue escorrendo pelo seus pés, esqueceu-se dos cacos de vidros espalhados pelo chão, lembrou-se quando um, sem misericórdia, rasgou seu pé direito. Colocou a mão no pé, sabia que estava sangrando pela úmida viscosidade do sangue. O pé esquerdo, que se salvara do acidente, procurou mais cacos e empurrou-os calmamente para debaixo da cama.
Sabia que tinha que levantar, agora era necessidade. Deveria fazer um curativo em seu pé. Levantou-se. Tateou apoiada no armário até a porta. Lembrou-se do interruptor, com um fio de esperança tentou ligar a luz, nada. Só o barulho seco da mudança de posição. Ela fez esse movimento várias vezes, ligou e desligou o interruptor infinitas vezes, por um lado por causa da esperança da claridade, e por outro para maldizer o objeto naquele momento sem utilidade.
Tateou a porta, achou a maçaneta, abriu. Surpresa, ouviu vozes ao fundo, achou que eram ladrões. Já imaginou que tinham cortado a energia para assaltar a casa. Desesperou-se. Pensou em voltar para a cama e se esconder, mas precisava fazer um curativo em seu pé. Se ela não via ninguém, os ladrões também não veriam. Respirou fundo e continuou no tatear, sabia que bem em frente a sua porta estaria a parede do estreito corredor, andou até achá-la, nada. Deu mais de dez passos e nada de trombar com a parede que deveria estar a no máximo dois. Não poderia ser, será que não estava em sua casa? Tinha certeza que estava. As vozes ficavam cada vez mais altas. Onde estaria? Quem seriam estas pessoas?
Música, ouviu uma canção melodiosa e sofrida. Ouvia o acompanhar dos instrumentos. Timbres, acordes, melodias e pratos, aquilo tudo estava tão estranho que nem se deu conta que havia energia elétrica para aquela música. Continuou a andar, mais dez passos e a parede não chegava. As vozes ficavam cada vez mais fortes, as pessoas riam, falavam alto, estavam felizes e ela não enxergava nada.
“Vira, vira, vira”. “Vira, vira, Vira, virou”. Algumas das vozes gritavam isso, alguém deveria estar bebendo, quem? Já não tentava explicar o que lhe estava acontecendo, com certeza não estava em casa. De repente viu uma luz. Fogo, luz de velas. Andou, mesmo mancando com o pé machucado e que deixava marcas de sangue pelo chão, rápido até aquele fogo. Sentia que neste caminho ia esbarrando em outras pessoas, as vozes, mas não queria saber, não queria explicar, precisa achar aquela luz. As vozes estavam felizes, tranquilas e ébrias. Estava odiando tudo aquilo, odiava se sentir perdida, odiava se sentir sozinha.
Quanto mais perto chegava da luz, mais perto se perguntava se queria ver mesmo. As vezes cegar-se é melhor do que abrir os olhos. Decidiu enfrentar a luz. Um homem segurava uma vela, ela o conhecia, ele o ajudaria. Chegou para lhe pedir socorro, mas não aguentou olhar nos seus olhos, assoprou a vela para que ela apagasse. Preferia a treva do que olhar novamente para aquele olhar. Não aguentou o que viu. Outra luz se acendeu. Novos olhos, os conhecia também, outro homem com lágrimas nos olhos, outro assopro. Não conseguia encará-los.
De repente a treva se iluminou, a luz saia dos diversos olhares que apontavam para a nossa personagem. Não conseguia manter a cabeça erguida, parecia que aqueles olhos lhe cobravam alguma coisa, talvez confiança, talvez gostariam de ouvir súplicas e arrependimento, talvez apenas lágrimas verdadeiras de quem errou. Ela não daria isso aqueles olhos, nunca. Ao invés disso, xingou e esbravejou, “seus filhos da puta, deixem-me viver a minha vida”. Não importava o quanto xingava, não conseguia encará-los. Vítima, se sentia vítima daqueles olhos acusadores.
Por um átimo fez-se luz. Viu as pessoas em volta, felizes, sem culpa, sem peso na consciência, nem um pouco preocupadas com a falta de luz, algumas ainda viravam doses de tequila. O pouco que viu antes de voltar as trevas era diferente do que sentia na escuridão. Com as luzes acesas os olhos estavam despreocupados, conversando entre si, alguns se olhando hipnotizados desejando um beijo, alguns com um ébrio brilho, alguns sérios de atenção, alguns lagrimejando de tanto rir da última piada contada, na treva, novamente os olhos apontavam para ela, inquisidores. Não sabia o que estava acontecendo, se aquilo era um sonho, desejava acordar, tinha medo de não ser, e se fosse sua vida... o que faria? Xingou mais e mais aqueles olhares, tinham pena, choravam por ela. Ela não conseguia encará-los, fechou os olhos, apertando-os fortemente, como em uma prece, pediu para eles irem embora.
Ao fazer o pedido as vozes se calaram. Um alívio. Ainda de olhos fechados desejava que aqueles olhares inquisidores também tivessem partido, estava com medo de enxergar, “por favor”, pediu. Abriu os olhos, ainda estava escuro, mas não via nada, apenas trevas, todos tinham ido embora. Era insano tentar entender toda aquela situação. Fechou os olhos e suspirou cansada, abertos ou fechados, tudo era escuridão, não fazia diferença naquele momento.
Ao tentar enxergar alguma luz novamente, para sua sorte, viu um olhar acolhedor, que lhe entendia, que lhe compreendia, “ufa, alguem para me ajudar”, pensou ela. Andou em direção àqueles olhos, parecia não chegar nunca, parecia hipnotizá-la. Mais de duzentos passos foram dados até estar próxima daquele olhar, tateou no escuro e percebeu que era uma mulher, segurava uma vela na mão esquerda e um isqueiro na direita. Sentiu que a outra lhe dava aqueles objetos, como se a decisão de acender a vela não dependesse mais de si, mas sim, daquela que tanto procurava a luz. Recebeu com agrado e, por mais que sentisse medo da luz, acendeu o pavio. Por um instante sua vida passou diante dos seus olhos que piscavam freneticamente, a última imagem que viu foi o rosto da mulher que lhe entregou a vela. A outra era si própria, via a se mesmo, e como alguém que mira dentro dos olhos da Medusa, tornou-se pedra, ali, parada em pé, segurando a vela com a mão esquerda e o isqueiro com a direita, pedra.
Não morreu. Apesar de não poder se mexer e só enxergar aquelas mesmas trevas de antes, ainda estava consciente. Ouviu quando a mulher foi embora, seu salto alto batia na madeira do piso. Entendeu que a treva era ela mesma, os olhos que via, diferentes daqueles vistos com a luz acesa, eram os olhos que sua consciência exigia. Descobriu onde estava, não estava no seu quarto, na sua casa, nem em outro lugar qualquer conhecido, estava dentro de si mesma, sem limites, sem espaço e sem tempo, era apenas o verbo no infinitivo: Ser.
Poucas pessoas estiveram onde ela estava, poucas pessoas olharam o que ela olhou, poucos olharam para si próprio sem o reflexo de um espelho, e por isso ela virou pedra. Para viver, somos convidados a olharmos, todos os dias, para nós mesmos refletidos, assim a vida se faz, assim Perseu venceu a Medusa e continuou a viver. Viveu mas não conheceu a si mesmo, o monstro era ele, mas ele não viu, só via, no reflexo de seu escudo, uma mulher com fios de cabelo que eram serpentes. Matou a si próprio e a cada dia que nos olhamos refletidos, matamos a chance de nos conhecermos. A situação fez com que ela se encarasse, sem espelhos. A decisão de acender a vela foi dela, só dela. Só quando estamos desesperados temos coragem de acendê-la.
Um vazio, uma dor. Sua situação era desesperadora, o mito se fez verdade. Pedra e perda. Desconserto, desengano e desespero. Sem movimento, sem alento, sem amigos, sem nada. Estava sozinha, estava em pedra, estava em si mesma. Gostaria de saber se poderia conhecer a si mesma e não virar pedra, gostaria de saber se poderia ouvir o canto das sereias e não se jogar ao mar como fez Ulisses. Gostaria de sair daquela situação, mas com a sabedoria de quem conhece a si próprio. Estava desesperada, não havia tempo, não havia história, estava na eternidade e lá poderia ficar, havia apenas o ser. No eterno, só a consciência é sistema de medida e quando começou a repensar sua vida e arrepender-se de algumas coisas ouviu uma voz que disse: “só as lágrimas verdadeiras desmancham a pedra”. Chorou, mas não deixou de ser estátua, chorou por saber que demoraria ainda muito tempo para se arrepender de verdade, para passar por cima de seu ego, que era aquela couraça de pedra que a aprisionava, chorou por saber que ainda permaneceria muito tempo presa na eternidade e cega com aquela treva. Sabia que demoraria ainda para que as primeiras lágrimas verdadeiras caíssem, talvez isso nunca acontecesse. Chorava copiosamente pois tinha medo de sua situação, não porque se arrependesse dos seus pecados. Chorava por ela, não pelos outros, era pedra.

5 comentários:

Glauber Ramone disse...

e aí, JJ!
po, cara... cadê aqueles seus textos sobre questionamentos da mulecada, amores e tirando sarro das coisas? posta aí!

tô falando isso, mas juro que vou ler o que vc tá escrevendo aqui!

bjocas!

Anônimo disse...

Nossa... só posso dizer nossa!!! Curti muito esse seu conto, achei um dos seus melhores! O que será que encontra em minha escuridão? rs. Quando não há luz para clarear o meu andar, nem artifícios que façam meus passos serem dinâmicos, em que o único lugar em que me deparo seja eu mesma? Ótimo conto! Depois dessa, eu quero deparar-me com a minha escuridão... ser apenas o ser. Beijos

pontos... disse...

"Na treva, onde há igualdade seja de olhos fechados ou abertos"

Meu, se isso não é alegoria de alguma coisa, vc chutou o mais cheio e certo possível! Lembra Conrad? Não adianta seu discurso, na treva são todos os mesmos. E ainda mais se a Treva está dentro de vc! Pq a escuridão em um ser é como um buraco-negro, ela suga a luz. E dentro de um buraco-negro, tudo é energia (físico demais? hahaha). Anfam, tudo é a mesma coisa. Não há diversidade. Não há riqueza. Na escuridão, na Treva, pode-se até desconsiderar o que ali existe, pois não se vê, não se nota. Lá, não importa o que é, importa o pq está lá!

Anônimo disse...
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Anônimo disse...

anciosa para mais contos...