quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

O HOMEM E O RIO



O trânsito parou. A pressa e a escravidão, que nos são submetidas pelo relógio, levaram todos ao imobilismo do engarrafamento na marginal Tietê. O mundo da via-expressa solidificou-se em carros praticamente estacionados na pista. A marcha proletária de séculos atrás, transformou-se, hoje, no anti-tráfego da classe média. Os noventa quilômetros sinalizados na placa são uma utopia irrealizável por essas horas da manhã.
O rádio é inútil. De que me adiantaria notícias sobre as condições do trânsito? Nada. De que adiantaria para aquele que está na chuva a notícia da tempestade? Antes que o locutor noticiasse o tamanho do congestionamento, desliguei o aparelho. Há certas horas, no turbilhão de um problema, que preferimos a ignorância à verdade. Se fosse dada a um preso, a oportunidade de desconhecer sua pena, talvez sua vida se tornasse melhor, pois desejaria, a cada dia novo, que aquele fosse o dia do fim de seu cárcere. Não me interessava saber a verdade enquanto o meu estômago pronunciava um som sem palavras, um som de quem reclama a falta do desjejum em detrimento da pressa e da pontualidade. A exatidão numérica de minha aflição, só tornaria mais distante a coragem de enfrentar o mar de automóveis parados até onde minha vista podia alcançar.
Meu carro havia se tornado uma prisão, uma prisão particular. Sentia um pouco de inveja daqueles que compartilhavam o enclausuramento com amigos ou familiares. Lutamos tanto por nossas liberdades individuais, por nosso direito de ficar sozinhos, porém, não agüentamos a insuportável presença de nós mesmos. Nestas horas, ela ganha o peso da eternidade. Sentia, da mesma forma, inveja dos motoqueiros que passavam velozes entre os carros, estes voavam como mensageiros dos deuses, e eu permanecia acorrentado como um Prometeu. Nesta hora da manhã a revolução se faz possível; moto-boys escoam pelas brechas do trânsito como água nos encanamentos; voam enquanto seus chefes estão presos no tráfego. Liberdade de movimento; nestas horas da manhã é virada a mesa.
A vontade é de ir a pé. Sair, deixar o carro, e ir a pé, mas não posso, já disse que o carro é uma prisão. Provavelmente, eu pertenço mais às coisas do que elas a mim. Eu queria ter a coragem para mudar essa situação, mas não posso, sou muito fraco. Tanto trabalho para dominar as coisas, para descobrir, quando se está preso em um engarrafamento, que são as coisas que te dominam. É frustrante.
Frustrante mesmo seria se eu quisesse mudar, mas não quero. A infelicidade está aí: querer algo e não ter. Agora, me sinto extremamente infeliz, porque desejava não estar preso neste congestionamento. Fora deste trânsito, porém, minha vida tem uma normalidade feliz. O segredo da felicidade é simples: basta viver entre as suas possibilidades e os seus desejos; fácil assim. Não busco mudanças irrealizáveis, não desejo bens cujo meu dinheiro não pode comprar, não saio do meu espaço seguro que está entre o real e a minha ambição. Desta forma, posso até dizer que estou levemente feliz por estar aqui, neste engarrafamento. Já não desejo sair, pois desejar, já é sofrer pelo impossível.
Um quadro imóvel havia sido pintado. Era definitivamente o anti-tráfego. Estava tudo parado. Até as motos começavam a se enfileirar entre os vãos dos carros. Tudo parado. Encostei a cabeça no banco, fechei os olhos e sonhei acordado. Imaginei-me em uma São Paulo pré-São Paulo, onde o rio Tietê era acompanhado por enormes planícies verdes, o ar era puro e eu caminhava livre por suas margens. Voltei a mim com a sinfonia de buzinas que se iniciava; o que deixava a situação ainda mais difícil. A cacofonia era insuportável, porém, não sei até que ponto mais insuportável do que o silêncio do cárcere automotivo. No insustentável silêncio que se fazia, a ladainha de buzinas era uma prece para o fim daquela situação; uma forma de unir a todos na mesma reclamação. Resolvi buzinar, também tinha o que reclamar.
Como em uma ação que leva a uma reação, depois de minha buzina o homem que estava preso no carro da frente tomou para si a sua liberdade. Saiu do carro e foi em direção ao rio. Em princípio pensei que era o stress que caminhava para tirar satisfação, mas não, ele nem me olhou. Ele foi em direção ao rio, sem olhar para trás, sem esconjurar a vida: sereno.
A serenidade dele era incômoda. Ele olhava para o rio como quem olha para o mesmo rio de minha pré-São Paulo, não para o Tietê que conhecemos: sujo, poluído, canalizado ao redor de uma cidade cinza. Ele olhava para aquele rio como se visse beleza naquilo. A sua serenidade me incomodava, e me incomodava o fato de eu não ter conseguido lhe dar o troco. Ele não tinha se afetado com a minha buzinada; não xingou, não foi tirar satisfação, nada.
Resolvi buzinar de novo. Não era de bom tom abandonar o carro daquele jeito no meio da pista; e se – se mesmo – o trânsito andasse? Buzinei. Nada: irredutível; ele nem sequer olhou para trás. Ele continuava olhando o rio, admirando a paisagem cinza e escutando o gorjear das buzinas.
Voltei-me a concentrar nas planícies da minha pré-metrópole. Aquilo era belo. Caminhava solitário pela vegetação rasteira que circundava as margens do rio. A minha volta, imponente estava a Mata Atlântica, que não era ainda uma memória. Nesse meu caminhar, vi o homem que olhava para o rio serenamente; ele já estava lá, mesmo em tempos imemoriáveis. Como era agradável o som doce da cantiga propagada pelo vento tremulando as águas do rio. Talvez fosse a música, mais do que a beleza visual daquele lugar, que atraísse o homem.
Haveria beleza na cacofonia da cidade? Ainda era, para mim, incompreensível aquela entrega ao rio sem vida. Se ainda o rio tivesse se mantido o mesmo daqueles outros tempos, onde ainda era possível escutar o concerto dos ventos sobre a água... Mas não tinha; o rio estava morto. Há beleza na morte? Aquele homem olhava a morte tão serenamente que eu, de incomodado, passei a temê-lo. Tenho que dar graças por ele não ter se incomodado. Alguém que olha as águas sem vida com tal naturalidade, não teria, penso eu, o menor problema de matar. Escutamos rotineiramente sobre mortes no trânsito por causa de discussões bobas; morreria eu por causa de uma buzinada?
O que ele tanto olha para aquele rio? Desde que saiu do carro permaneceu na mesma posição; incorruptível. Uma vez, eu li em uma revista uma matéria sobre “o prazer de matar”; neste artigo havia entrevistas com caçadores, assassinos e até um alemão que trabalhou em Auschwitz. O que mais me assustou foi a declaração de um condenado por assassinato que disse que, após a morte, gostava de ficar vendo o corpo da vítima se decompor. Ele escondia o corpo em um lugar aberto, porém, escondido – como em uma mata fechada – e ia visitar a morte semana a semana. Aquele homem estava parado vendo a morte, o rio morto, a decomposição de uma cidade, e era isso que me assustava.
Não, ele não olhava a morte. No passado vivo do rio, ele continuava a olhá-lo do mesmo jeito, com os mesmos olhos serenos. Não era a morte que olhava, era o rio em si. Ainda longe daquele homem, sentei-me nas margens do Tietê e procurei entender o que ele tanto buscava. Mal me sentei, saiu das águas uma criança linda; uma menina branquinha, cabelos castanhos, verdadeiramente uma flor. Ela chegou perto de mim e sorriu. Eu logo tirei minha camisa para cobrir sua nudez, mas ela recusou:
- Obrigada, logo terei tudo o que eu quero.
Aquela frase soou como um nada dissonante em meus ouvidos. Ofereci novamente a camisa para cobrir-se e ela apenas sorriu, balançou a cabeça e sentou-se ao meu lado. Aquela pequena flor, que deveria ter uns dez anos de idade, tinha um ar atemporal no seus traços e feições, como se estivesse perdida no tempo e no espaço. Sempre imaginei que a São Paulo pré-colonial fosse habitada apenas por índios. O que fazia ela lá?
De volta à cidade cinza, eu continuava olhando o mar de carros estacionados na via-expressa. Carros e motos enfileirados, tudo parado. E ainda estava ele lá, o homem, incorruptível. Por que olha tanto para o rio? A cidade pulsa. Apesar do congestionamento, a cidade pulsa. Do outro lado da marginal o trânsito flui fácil, a cidade respira, a cidade trabalha. Olhando para os carros ao meu lado, todos estavam em atividade; uns digitando no laptop um relatório a entregar, outros falando com dois celulares ao mesmo tempo tentando fechar negócios; e, nos carros de vidros fumês, quem sabe? Todos estavam em atividade. Aquele congestionamento era a horizontalização de um edifício; cada carro era um apartamento que vivia por si próprio. A vida pulsava na cidade e aquele homem lhe dava as costas para olhar o rio morto. Foi então que entendi.
Aquele homem estava literalmente dando as costas para a vida. A única explicação possível para sua admiração pelo rio era o seu desejo de morte. A cidade pulsava e ele negava aquela pulsação. A cidade corria, apesar do congestio-namento, e ele negava aquela movimentação. Ele admirava o rio morto. Ele desejava o rio morto.
Talvez minha buzinada tenha sido o estopim para seu desejo suicida. Tenho que admitir, foi minha culpa. Talvez aquele som tenha sido a gota d’água de sua paciência para com a vida, para com a cidade. Eu não posso carregar o peso da morte sobre mim, tenho certeza. Talvez seja melhor eu lhe convencer a não saltar. Mas se sair do carro e dar as costas para a cidade, também estarei dando as costas para vida que pulsa; talvez ele me leve junto consigo para as profundezas do Tietê. Não, não quero a morte.
A garota continuava sentada ao meu lado em silêncio na pré-São Paulo. Olhávamos o rio de onde ela nasceu para mim; aquele pequeno anjo.
- Qual é o seu nome? – perguntei.
Ela se levantou e suspirou no meu ouvido sua graça.
- Sério? Então, eu acho que lhe conheço. Sim, você está diferente, mas eu acho que lhe conheço. Mas o que faz aqui nestes tempos imemoriais?
- Eu tenho fome. – respondeu a menina meio que mudando de assunto.
- Vou ver se acho alguma fruta para você comer. – respondi e sai para procurar algo para alimentar a pequena menina.
De volta ao presente, ainda tentava conciliar a minha culpa por ter plantado o desejo de morte naquele homem. Ele olhava para o rio hipnotizado por suas águas turvas. Iria pular a qualquer momento, eu previa. Não havia outro motivo para a serenidade daquele homem ao olhar a morte líquida e turva. Ele iria pular.
A cena de sua saída do carro; decidido em direção ao rio, reverberava em minha mente. Era a cena de quem nega a vida, a vida de uma cidade que pulsa; era o peso da tragédia moderna, era a minha buzina assassina.
Logo, voltei com uma maça para alimentar a pequena flor que havia nascido do rio.
- Lhe trouxe uma maça. Espero que você goste.
A menina arrancou a fruta de minha mão e a engoliu em apenas uma mordida.
- Quero mais. Ainda tenho fome. – declarou a pequena.
- Eu vou pegar mais uma para você.
- Não. Eu quero a árvore inteira.
- A árvore inteira? Você tem certeza que consegue comer a árvore inteira? – declarei rindo, como se aquela frase só pudesse ser pronunciada pela ingenuidade.
- Sim, quero a árvore inteira. Eu sempre tenho fome. Onde está a macieira?
- Daquele lado, ali. – apontei para o lugar onde havia encontrado a árvore e a menina saiu correndo na direção que lhe falei. Sumiu.
O homem continuava olhando o rio morto. O homem continuava olhando o rio vivo. O mesmo homem; rios diferentes. Porém, aos poucos o Tietê do passado ia tomando a forma do presente: as águas iam escurecendo, a vida sendo morta; o homem sendo o mesmo, o tempo sendo uno. Sonho e vigília era apenas uma dura realidade: a cidade cinza que pulsava.
Foi então que aconteceu: incômodo, medo e culpa; o homem se virou, olhou para mim profundamente e caminhou em minha direção. Incômodo, medo e culpa; eu não sabia do que aquele homem seria capaz. Chegou perto do carro e bateu no vidro, eu, mesmo apavorado, abri. Ele abaixou e suspirou no meu ouvido:
- Você nunca deveria tê-la alimentado. Ela sempre tem fome.
- Ela sempre tem fome. – repeti.
“Logo terei tudo o que eu quero”, ela havia me dito e, realmente, conseguiu. Tornou-se uma velha gorda que devora tudo o que vê pela frente. É ela quem parou o trânsito; sentou-se na frente dos carros e impediu o tráfego. Parados: esperamos apenas a hora que ela venha nos devorar.

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

CONTO XXII - DENTES-DE-LEÃO


Sara tinha só oito anos quando presenciou algo que marcaria sua vida para sempre. Era um domingo de sol e ela e seu avô brincavam no meio do jardim, sentados na grama, rodeados de flores. A casa do simpático velhinho era enorme e comportava um jardim que dava inveja ao prepotente concreto da cidade. Ele sempre gostava de dizer que era uma casa construída no meio de um jardim e não o contrário, o que é tão comum nos dias hoje.
Não é difícil ver anúncios publicitários onde condomínios tentam vender a paz da natureza como uma de suas qualidades: “Tantos metros quadrados de área natural preservada”. A família bonita, feliz e falsa como toda aquela propaganda, demonstra toda alegria inerente ao contato com a natureza e isso graças aos “tantos metros quadrados de área natural preservada”. Que beleza. Mais há uma pergunta que está implícita, que apenas as pessoas que querem realmente enxergá-la conseguem perceber: “Quantos metros quadrados de área natural foram devastados para a construção do condomínio?” Pois, se há uma parcela preservada, há também uma parcela não-preservada, a qual foi sacrificada para que mais um monte de casas de auto-padrão fossem construídas. Os “tantos metros quadrados de área natural preservada” não são mais do que uma compensação. Compensação esta, que ainda poderia ser oferecida como um atrativo a mais para a venda. Compensação esta, que não era uma ato de benevolência, mas que estava prevista por lei. É impressionante a cara-de-pau de publicitários e homens de negócio, que omitem as perguntas mais importantes para vender seu objeto.
É exatamente por isso que a casa do avô de Sara era importante e fazia inveja ao concreto da cidade. “Uma casa no meio de um jardim”, ele sempre dizia. Em um mundo onde a beleza, a felicidade, o amor, etc. são categorias que podem ser padronizadas e explicadas racionalmente, os homens se tornam insensíveis a tudo que subverta a ordem da racionalidade. Tudo tem que ter uma função. “Para que uma casa no meio de um jardim?”, perguntariam aqueles que acham supérfluo uma árvore plantada no quintal, um canteiro cheio de margaridas, cheio de dentes-de-leão, além de outras flores. A grama encharcada, quando chovia, sujava os sapatos caros das visitas, seria melhor azulejar todo aquele gigantesco quintal. Muitos até aconselhavam o avô de Sara: “Com um quintal desse tamanho você poderia construir uma piscina, aumentar a garagem para que mais carros pudessem ser colocados, entre outras coisas”. Mas isto era supérfluo para o simpático velhinho. O que importava, verdadeiramente, era a natureza englobando aquela casa.
Há lições que aprendemos quando crianças e que ficam guardadas em nosso inconsciente, escondidas em algum lugarzinho de nossa cabeça até o dia em que somos chamados de volta. O que nos parece uma epifania é, na verdade, a cera derretendo em nossas costas depois de tanto tempo hipnotizados pelo sol. As asas que nos pareciam tão seguras, construídas para levantar voou e chegar ao astro prepotente, não são mais do que aquilo que nos tirou os pés do chão. Sara tinha apenas oito anos quando aprendeu uma dessas lições.
Ela e seu avô aproveitavam o domingo de sol sentados no jardim. As brincadeiras se desenrolavam. Brincavam de mal-me-quer bem-me-quer com as margaridas, assopravam os dentes-de-leão que construíam uma neblina de sementes que voam ao vento calmo, rodeando as duas personagens daquela paisagem, deitavam-se ao chão e tentavam descobrir desenhos nas nuvens. Os dois, descalços, afundavam os pés na terra e sentiam a grama entre os dedos. Ficavam olhando em silêncio para o céu azul, sentindo uma leveza a qual Sara, com a ingenuidade da infância, achava que lhe acompanharia por toda a eternidade.
O avô, sentindo uma energia quase que transcendental trazida pelo vento, teve vontade de compartilhar com a neta um ensinamento. “Venha Sara, quero te ensinar uma coisa”. O avô correu na frente e pegou em suas mãos um dente-de-leão. A menina adorava brincar de assoprar as sementes daquela flor e logo se empolgou com a brincadeira. O avô, preocupado que o ensinamento passasse batido pela empolgação da garota, logo falou: “Calma, Sara, agora vamos apenas olhá-lo”. A menina ficou decepcionada, mas compreendeu que o avô tinha algo sério para lhe mostrar.
Os dois se sentaram na grama e o velho levantou a flor para que esta ficasse bem a frente dos olhos da menina e perguntou: “O que você vê?” A menina com sua ingenuidade inerente aos seus oito anos respondeu rapidamente: “Ora, um dente-de-leão”. “Sim, Sara. Que mais? Tente olhar cada sementinha individualmente”, perguntou o velho, percebendo que havia sido muito amplo em sua pergunta. Sara olhou para cada uma daquelas coisinha brancas espetadas na flor e, apesar de todo seu esforço, respondeu: “Não enxergo nada além das sementes”.
O avô se achegou mais perto da menina e sussurrou em seu ouvido: “você pode guardar um segredo?” A menina fez que sim com a cabeça, balançando-a para cima e para baixo rapidamente, curiosa em compartilhar algo secreto. O velho, experiente, sabia que, para que seu ensinamento fosse apreendido, deveria envolver sua história em um ambiente fantástico. A magia sempre foi um caminho para ensinar aqueles que ainda não estavam afetados pela prepotência da racionalidade humana.
“O que você vê não são sementes, são, na verdade, pequenos homenzinhos”, disse o avô. A menina arregalou os olhos estupefata e repetiu sem pensar no que dizia, totalmente de forma mecânica: “pequenos homenzinhos”. O velho achou a atitude da menina uma graça, ela estava completamente hipnotizada com a idéia que ele havia plantado em sua cabeça. Pegou o dente-de-leão das mãos do adulto e começou a olhar aquela flor mais atentamente. “Pequenos homenzinhos?”. Pressionava os olhos tentando enxergar algum detalhe que pudesse comprovar a novidade.
“Sim, cada haste dessa, fincada na planta, é um homenzinho. Não de verdade, lógico, mas de um outro tipo”. A menina continuava tentando achar os detalhes olhando fixamente para a flor. O velho apontou com o dedo e mostrou: “olha, a haste não parece um corpo? Sobre este corpo podemos até ver os seus cabelos brancos, assim como os meus”. Sara iluminou-se, ela havia enxergado os pequenos homenzinhos que seu avô havia lhe falado. Sua alegria era intensa, ela nunca desconfiaria que ali, bem próximo a ela, fincados em uma flor com a qual costumava brincar, havia um mundo paralelo ao dela.
Sara ficou imaginando quantas vezes havia soprado aqueles homenzinhos para longe apenas para se divertir. Sentiu-se culpada. “Vô, quando assopramos as sementes, matamos os homenzinhos?” O avô sorriu com a ingenuidade da menina. Ele teve que pensar um pouco. Não era uma pergunta que ele estava esperando em seu ensinamento, mas acabou usando esta para emendar sua lição. “Bem, sim e não. Quando assopramos as sementes para longe estamos separando os homenzinhos de sua flor-origem, porém, isso é natural. Se nós não assoprarmos, o vento fará isso. Há um momento na vida desses homenzinhos que eles precisam voar. Uma força exterior e muito maior do que eles, os forçará a voar. Assim que acontece”. O velho respirou fundo e iniciou sua lição: “O mesmo acontece com a gente. Aconteceu comigo e acontecerá com você. Você irá crescer e será soprada para longe de sua flor-origem. Vagará pelo mundo atrás daquilo que lhe trará felicidade, sendo que muitas vezes vagará sem sentido, acumulando coisas, ignorando os pequenos e alegres momentos da vida, não respeitando seu corpo, sua mente e seus princípios, tudo para alcançar seus objetivos”. O velho não esperava que a neta entendesse o que estava falando, na verdade, ele estava narrando sua própria juventude e, de certa forma, desejava evitar que Sara seguisse o mesmo caminho. “Você talvez não entenda o que estou falando, mas quero que se lembre, um dia, de nossa conversa”.
A menina não percebera a gravidade da voz do avô, ela ainda estava entretida com a nova descoberta, com os homenzinhos que habitavam aquela flor. “Sara”, a menina voltou a si com o chamado do velho, “assopre o dente-de-leão, faça os homenzinhos voarem”. A menina sorriu e fez o que ordenava o mais velho. O vento que saía de sua boca deu asas àquelas personagens mágicas. Logo se via um redemoinho de sementes girando pelo ar, suspensos pelo sopro de Sara e pela brisa daquela tarde de domingo. Os homenzinhos pareciam perdidos na amplitude do mundo que se abria, depois que as amarras que os prendiam àquela flor tinham sido removidas. Flutuavam, prepotentemente livres.
Sara e seu avô observavam a cena que se passava naquele cenário idílico, presente dentro da cidade que ergue e destrói coisas belas. Assim como, para Sara, os homenzinhos eram percebidos como um mundo paralelo, aquela casa no meio de um jardim se transfigurava em uma São Paulo diferente, quase impossível de se acreditar. Mas eles estavam demasiadamente entretidos com as sementes que voavam ao redor de suas cabeças para pensar nessas coisas.
A menina, sem reconhecer a profundeza da lição de seu avô, arrancou mais duas flores do chão e assoprou, dando liberdade a mais alguns homenzinhos. Alguns pareciam seguros de si e achavam que poderiam racionalmente controlar seu voou, outros pareciam desencantados e se deixavam levar pelo vento dominical. Porém, o que ambos os grupos não percebiam é que haviam perdido a sua unidade. Agora, eram indivíduos soltos pelo mundo. Não eram mais uma flor, eram, apenas, sementes que lutavam para fertilizar o melhor pedaço de terra.
Aqueles que se achavam suficientemente racionais, ficavam flutuando no ar por mais tempo. Eles, antes que pudessem cair em qualquer solo, tentavam projetar o dente-de-leão perfeito. O antigo mundo em que habitavam era contingente demais para eles, qualquer brisa leve, qualquer menina brincando com seu avô, poderia lhes levar para longe, e isso não poderia estar certo. Aqueles homenzinhos desejavam a segurança, um terreno sólido para construir um mundo sólido, onde o acaso não existisse. Eles, tão pouco estavam preocupados com a unidade que se perdera, achavam que cada um era responsável por si mesmo. O contato com a unidade, se é que havia realmente esta unidade, era de responsabilidade de cada homenzinho.
Os outros, que viviam desiludidos com a perda de um mundo coletivo e onde havia algo que lhes desse sentido, vagavam pelo ar desenganados. Aqueles mais racionais tentavam empurrar a todos para a construção do que pensavam ser o dente-de-leão perfeito. Aqueles que eram levados pelo vento e acreditavam que uma brisa ocasional também poderia trazer coisas boas, passaram a ser forçosamente empurrados para um modelo de dente-de-leão construído por aquelas sementes sem sentimentos e amorais.
Porém, a cosmovisão dos homenzinhos, livres das amarras dos dentes-de-leão, passava despercebida para Sara. O que ela podia ver, de fora daquele mundo, era apenas os choques das sementes no ar, a confusão, a desordem, o vento guiando todos aqueles indivíduos. Ela tentava, pensando nas palavras que o seu avô havia dito, que um dia cresceria e também seria soprada, se imaginar no meio daquelas sementes caóticas.

II

Um certo dia, Sara foi soprada para longe. Ela tinha dez anos quando isso aconteceu. Estava na escola quando, no meio da tarde, seu avô veio buscá-la. A menina ficou feliz por sair mais cedo e por ver o avô, porém, a expressão grave daquele senhor fez com que a menina desconfiasse que algo estava errado. O velho se agachou para ficar na mesma altura dos olhos da menina que permanecia de pé, com sua mochila nas mãos. O silêncio foi prolongado. Seu avô, um homem sempre seguro de si, não conseguia achar as palavras para a mensagem que pretendia dizer. “Sara, sua mãe sofreu um acidente de carro e...” As reticências do avô eram demasiadamente auto-explicativas. A menina já estava chorando quando ele acabou a frase, “... faleceu”. A menina correu para os braços do avô e os dois choraram, cúmplices em suas dores.
Uma semana depois, após a missa de sétimo dia, Sara estaria a caminho dos Estados Unidos. Seu pai, um empresário brasileiro que morava em Nova York havia seis anos, desde que se separara da mãe de Sara, veio ao Brasil para buscá-la, apesar dos pedidos indignados do avô para que a menina permanecesse com ele.
Seu pai sempre havia demonstrado o desejo de criar a filha. Ele achava que Lívia, a mãe da garota, não lhe dava uma educação adequada. Desta forma, não houve jeito, Sara teve que ir para os Estados Unidos. Para a menina, a nova vida não foi nada fácil. De uma hora para outra foi obrigada a viver com um estranho, pois, quando seus pais se separaram ela tinha apenas quatro anos e, desde então, só sabia do pai pelos depósitos que sua mãe recebia e presentes enviados de Nova York. A vida nos Estados Unidos lhe pareceu hostil deste o começo: o pai, a língua, os costumes, etc. Seu pai sempre esbravejava: “que absurdo, você tem dez anos e não sabe uma palavra de inglês, sua mãe era uma irresponsável mesmo”.
Roberto, seu pai, logo tratou de resolver essa questão pagando-lhe uma professora particular. Ao final de seis meses, tendo aula todos os dias, a menina estava praticamente fluente. Sara se esforçava ao máximo para chamar a atenção do pai. Ela queria mostrar que era digna de sua atenção. Seu pai era um homem trabalhador, saía de manhã bem cedo, enquanto a menina ainda dormia e voltava já tarde da noite, quando ela já estava deitada. Ele era um dos diretores de uma empresa publicitária americana e dedicava quase que cem por cento de sua vida para o trabalho. Era o que os americanos costumam chamar de workaholic.
Apesar da babá que a acompanhou até os quatorze anos, Sara logo aprendeu a se virar sozinha. Seu pai, sempre ausente, era apenas um patrocinador de suas atividades. Ela preferia não voltar para casa quando a aula terminava - o lar vazio nada lhe acrescentaria - e ficava estudando na biblioteca até tarde da noite. Tornou-se uma viciada nos estudos, suas notas estavam sempre acima de nove. Essa sua atitude era menos uma forma de tentar se adequar ao sucesso do pai, do que uma forma de defesa contra um mundo que lhe parecia hostil. Tornar-se igual a Roberto, seu novo espelho, não era seu objetivo, porém, as atitudes dele faziam com que Sara achasse normal a vida que levava. Correr era uma forma de não encarar o mundo onde vivia. Já dizia o poeta norte-americano Ralph Waldo Emerson: “Quando se patina sobre o gelo fino, a segurança está na nossa velocidade”. Sara se protegia na eficiência. Se fechava no mundo ordenado dos parágrafos, capítulos e pontos finais dos livros que lia. Quanto mais estudava, mais seu futuro lhe parecia seguro. Era sua forma de acreditar que um dia estaria patinando longe do gelo fino. Porém, não percebia que, ao contrário de parar, a tendência era correr cada vez mais rápido. Era escrava da velocidade, acorrentada por sua própria eficiência.
Foi assim que Sara se formou em direito por Harvard. Ela já era, desde os primeiros anos da faculdade, devido sua eficiência quase que sobrenatural, respeitada pelos seus professores e colegas de sala. Estava apenas no segundo ano quando foi convidada a trabalhar em uma grande empresa de advocacia americana, estagiando com um dos mais famosos advogados criminalistas do país. Ela não apenas acompanhava os processos, como também o auxiliava pesquisando profundamente o caso e suas possíveis soluções jurídicas. Todos sabiam que seu caminho já estava traçado. Ela não tinha dúvidas, sentia uma prepotência humilde em relação a isso. Assim que se formasse teria uma sala só sua na empresa e seria uma das grandes neste ramo no país.
Pouco tempo depois de concluída a faculdade, Sara já era conhecida. Havia derrotado no tribunal dezenas de advogados respeitados. Sua carreira decolava na empresa. Tinha apenas 25 anos quando se tornou uma das sócias. Nunca havia perdido um caso. Ela era quase perfeita, era símbolo de vitória certa, era uma das advogadas mais caras do país. Algumas pessoas a odiavam ferozmente. Sara não era ética, ela era eficiente. Não se importava com o crime de seu cliente, se importava com a causa ganha. Ela adorava repetir: “Não me interessa se a pessoa é culpada, me interessa se há provas suficientes para acusá-la”. Tinha o mundo nas mãos. Sara patinava velozmente sobre o gelo fino. Quanto mais rápido ela seguia, mais ela queria desafiar os seus próprios limites. A velocidade era o seu mundo seguro, nele era imbatível, nele o acaso não existia. Tinha completamente sua vida sobre controle.
Porém, um dia o acaso bateu em sua porta. Sara estava advogando em um dos casos mais conturbados dos Estados Unidos. Seu cliente era o filho de um senador que estava sendo acusado de estuprar uma menina de onze anos, filha do caseiro da família em New Hampshire. Esse era um daqueles casos que a mídia costuma acompanhar quase que vinte e quatro horas por dia. Sara era praticamente uma celebridade nacional, ganharia uma fortuna se conseguisse provar a inocência do rapaz. O senador estava lhe pagando montanhas de dinheiro para que livrasse seu filho da cadeia. Um caso desses sujaria sua imagem na política para sempre, seria um desastre para sua família anglo-saxônica branca e protestante. A eficiente advogada estava confiante, era praticamente uma causa ganha. A menina havia esperado dois anos para contar para seus pais o que havia acontecido. Só após a demissão do pai resolveu falar. Para Sara era óbvio: o caseiro havia feito sua filha inventar essa história para se vingar do ex-patrão, e, mesmo que o rapaz fosse culpado, quem conseguiria provar algo dois anos após o crime? Além do mais, a família do senador Stuart sempre foi um exemplo na sociedade e Sara saberia usar isso a seu favor.
No dia do julgamento tudo estava correndo bem. Sara havia conseguido provar para o júri, que o pai da menina não era uma pessoa confiável. Havia descoberto que ele tinha sido preso por roubo, quando tinha vinte anos de idade. “Eu tinha fome. Roubei porque tinha fome”, o caseiro gritava olhando para todos no tribunal. Não interessava, Sara havia provado que ele não era uma pessoa confiável. Do outro lado, Sara mostrou como a família Stuart era respeitada, o quanto participava de atividades beneficentes, etc. Não haveria dúvidas sobre qual família teria crédito. Sua última testemunha seria a menina. A causa estava praticamente ganha, era só fazer a menina se contradizer em sua própria fala.
Sara se levantou e foi em direção a testemunha. Ela caminhava em silêncio pelo tribunal, assim como um Leão que cerca sua presa. Sara pediu para a menina relatar o que havia acontecido segundo “sua versão”. A garota não conseguia pronunciar bem as palavras. Via-se que estava extremamente nervosa, com o pensamento entrecortado e sem sentido. Para Sara, esta atitude era apenas uma prova que a garota estava inventando a história, pois, como ela disse ao júri: “se esta menina realmente tivesse vivido a experiência a qual acusa o meu cliente, não tenho a menor dúvida que se lembraria perfeitamente dos detalhes”.
A garota, talvez por raiva pela falta de crença, talvez por se sentir desafiada, disparou-se a falar. Ela havia sido transportada para o passado e via, desta vez como expectadora, a cena de sua própria violação, a qual descrevia com todos os detalhes. “Era aproximadamente umas dez horas da manhã. Eu varria o quintal da casa a pedido dos meus pais. Eles tinham ido ao supermercado para comprar comida, material de limpeza, entre outras coisas, para receber os patrões, a família do senador Stuart. Então, eu ouvi o barulho de uma buzina e, pensando que eram os meus pais que retornavam do mercado, fui até a entrada para abrir o portão. Chegando lá, percebi que era Mark, o filho do senador, quem chegara. Ele estava sem as chaves. Depois, durante aquela semana, fiquei sabendo que ele não viera para ficar com a família, estava hospedado em outra casa em New Hampshire, talvez de um de seus amigos. Por algum motivo que desconheço, ele resolveu ir até a casa da família Stuart naquela manhã”.
Mark, o acusado, parecia estar incomodado com o relato da menina. Era a primeira vez que os dois se encontravam frente a frente desde o acontecido. Balançava o pé intermitentemente. A garota continuava seu discurso: “deixei ele entrar. Ele estacionou o carro e eu fechei o portão assim que ele passou. Eu continuei varrendo o quintal e ele permaneceu dentro carro. Quase dez minutos tinham-se passado depois que Mark entrou. Como ele ainda permanecia dentro do carro, comecei a ficar preocupada e decidi, então, ver o que estava acontecendo. Cheguei perto do carro e ele estava com as janelas e com os olhos fechados e com a cabeça encostada no banco. Achei que estivesse desmaiado. Bati no vidro da janela e ele abriu os olhos. Devia estar apenas dormindo. Pedi desculpas e saí, porém...”
A menina pareceu hesitar. “Porém” sempre fora uma palavra difícil de se falar. De alguma forma, esta palavra tem o poder de definir vidas que poderiam ter sido guiadas por outros caminhos. Todo “porém” se mostra como o fracasso de uma possibilidade que mudaria o futuro das pessoas. Amores, empregos, fortunas acabam ou começam por causa de um “porém”. No caso da menina, sentada no tribunal, “porém” representava o fim da pureza, da ingenuidade do mundo e, quando falou essa palavra, essa pesada palavra, o que via era a possibilidade de uma vida que podia, e podemos dizer deveria, ter permanecido a mesma. A partir do seu “porém”, ela, sua vida, a vida de sua família, a vida da família Stuart já não seriam mais as mesmas. A partir do seu “porém” seu relato ganharia as feições dramáticas de um teatro hamletiano. A vida caminhava de forma normal, “...porém, ele abriu a porta do carro enquanto eu passava e me puxou para dentro do veículo. Não entendi o que estava acontecendo. Ele enfiou a mão no meu short...” A menina olhava para baixo e fechava os olhos como se pudesse se cegar das imagens que passam em sua mente. Todos no tribunal puderam ver quando, ainda de olhos fechados, a garota derramou suas primeiras lágrimas. “...ele enfiou uma mão no meu short, enquanto... com a outra tampava a minha boca. O máximo que eu podia fazer era gritar um grito mudo, abafado pela mão de Mark. Sentia sua respiração, seu bafo alcoólico sobre o meu rosto.” De repente a garota parou, desatou-se a chorar. Por mais que ela tentasse continuar não conseguia, o que era lágrimas tinha virado desespero, chorava desesperadamente. Sara, fria, controlada como sempre, permanecia em pé em frente da testemunha, confiante na vitória. Ela sabia, o juiz sabia, o júri sabia que nesse mundo não havia espaço para sentimentos. Aquilo era, para Sara, uma ciência quase exata. Não havia acaso, estava tudo sobre controle. Ela havia estudado o caso, havia descoberto os antecedentes do pai da garota e, além do mais, não havia provas suficientes que o crime havia acontecido. Era uma causa ganha. Porém, novamente um porém apareceu para mudar a vida de alguém nesta história, o acaso lhe surpreendeu. A retórica engasgada da garota foi suficiente para libertar as paixões do acusado, mover seus afetos, comovê-lo. Mark, o rapaz acusado, vendo a garota chorando, de maneira inexplicável, se emocionou e disse em alto e bom som no tribunal, enquanto deixava cair suas primeiras lágrimas, para que todos ouvissem: “Eu sou culpado, eu sou culpado, confesso. Eu a estuprei...” Um reboliço atingiu todas as pessoas ali presentes, quase ninguém ouviu o arrependimento de Mark: “...perdão, eu sou um monstro. Eu estava embriagado... eu sou um monstro.” É impossível saber, com certeza, o motivo desta ação. Por que o rapaz teria se confessado? Essa era uma pergunta a qual Sara, parada e boquiaberta no centro do tribunal, também havia feito a si mesma. Ela havia perdido, ela se sentia perdida.

III

Novamente Sara foi soprada para longe. Seu mundo perfeito havia desmoronado. Ela não seria culpada pelo rapaz ter confessado, mas o gosto da derrota era amargo demais para ela. Sara não conseguia entender por que Mark havia se declarado culpado, a causa estava praticamente ganha. Era como se a justiça, feita naquela tribunal, tivesse sido injusta com a advogada. Depois de tanto trabalho, ela não merecia perder.
Só quem já perdeu algo que dava sentido a sua vida, poderia saber o que Sara estava passando. A eficiência era o fio condutor de sua narrativa, sem ela sua personagem não teria vida. Depois da derrota para o acaso, Sara retornou a sua casa e lá ficou. Não foi trabalhar no dia seguinte, nem no posterior. Um mal-estar tremendo lhe invadia a alma. Não tinha forças para nada. Sentia-se como se a vida inteira se transformasse em um engano. Sentia como se a eternidade houvesse lhe sido roubada.
Sara passou a vida procurando a perfeição em seu trabalho e, por isso, se afastou dos amigos, da família e das sensações puras da vida. A derrota em obter a perfeição era como se sua vida deixasse de ter sentido. Jogada no sofá da sala, ela só pensava na morte. Seus pensamentos corriam mórbidos pelo apartamento; a janela, as facas na cozinha, o gás, eram possibilidades. A morte pode parecer uma atitude extrema para aqueles que estão de fora de uma situação de desamparo, mas era para ela uma ação heróica, uma questão de honra. Assim como um samurai, que tira sua vida após a derrota, Sara pensava na morte, porque sentia que havia fracassado em sua missão, uma missão imposta por regras feitas por desconhecidos. Sua vida tinha o sabor de uma promessa não cumprida.
O conforto de seu apartamento havia se transformado em uma desconfortável prisão criada por ela mesma. Sara sentia o peso de dedos invisíveis lhe apontando as falhas. O gosto da derrota tinha o sabor das águas poluídas por absinto. O cheiro fétido de seu corpo, sem banho a uma semana, lhe indicava uma decomposição prematura, física e emocional. As vozes que pareciam gritar em seus ouvidos: “loser”; lhe causavam gélidos arrepios. Os olhos petrificados esperavam a coragem de um Édipo para tornarem-se cegos. O peso descomunal do mundo caía-lhe sobre as costa. O único refúgio que via para si, era a morte.
Sara havia seguido as regras, havia seguido o plano deles, o plano de todos aqueles que lhe mostraram um modelo a seguir para atingir a felicidade. Seu pai seguia o modelo, ela seguiu o modelo. Sara não tinha amigos, suas relações eram estreitamente profissionais, mas tinha o sucesso que solidificaria sua felicidade. Tinha um apartamento em um zona requintada da cidade, um carro de luxo, era sócia de uma das maiores empresas de advocacia do país, tinha dinheiro sobrando no banco. Mas o impulso da morte que sentia naquele momento, fugia do que os “planejadores” chamariam de felicidade.
Toda sua vida lhe parecia um grande engano, como se a velocidade deixasse de fazer sentido, como se lhe houvessem omitido algo importante, como se as regras houvessem sido mudadas durante a partida. Uma promessa não cumprida que lhe jogou no sofá desejando a morte.
Ela se levantou e foi até a cozinha. Olhou as facas e o fogão que lhe proveria o gás, mas não era isso que desejava. Sara precisava de algo sem volta. Não queria começar a passar mal e sentir necessidade de desligar o gás, ou cortar os pulsos e chamar o socorro. A morte deveria ser certa. Talvez, em sua própria morte, ela encontrasse algo que lhe tirasse no mar de incertezas em que estava afundada.
De longe, ainda da cozinha, encarou a janela da sala como um condenado que encara seu executor. Resignada de seu crime, foi caminhando até o objeto que lhe traria a paz. A cada passo que dava, ouvia sua sentença: “A ré é culpada por ter falhado; culpada por deixar seu mundo desmoronar; culpada por deixar escapar por entre seus dedos a eternidade planejada a priori; culpada por falhar em metas auto-impostas, como nunca perder um caso; culpada por decepcionar todos aqueles que esperam a perfeição; culpada por perder; culpada por se sentir infeliz; culpada por não ter ninguém para chorar por ela depois de deixar a vida; culpada; culpada; culpada; e, assim sendo, a sentença que lhe cabe é a morte”. Sara fazia seu próprio julgamento. Não existiam juízes, ela mesma empunhava o martelo que era batido a cada passo em direção à janela.
Sara abriu as cortinas e, olhando para baixo, avistou a avenida que corria em frente a seu prédio. A janela lhe parecia a saída mais certa de uma vida que já não fazia mais sentido. Ela não pensava na dor que sentiria quando seu corpo atingisse o chão, pensava no estardalhaço que a morte caindo do céu poderia causar. Não queria chamar atenção para si. Não queria que seu corpo sem vida, exposto e sem defesa, fosse utilizado como exemplo de fracasso. Odiaria que a sacralidade da morte – da sua morte - fosse profanada por uma mãe que, puxando uma filha horrorizada pelas mãos, apontaria o dedo inquisidor para a massa de pele, osso, sangue e asfalto; morta, ali no chão, para ensinar-lhe algo: “Olha, filha, esse é o destino dos fracassados. Por isso, você tem que estudar, trabalhar, enriquecer o máximo que conseguir. Faça seu destino para não acabar assim”. Sara odiaria a idéia que o seu “não-ser”, fosse usado como exemplo “do que não ser”.
“Como uma das maiores advogadas criminalistas do país não tem um arma?”, pensava Sara. Ela adoraria ter um revólver para resolver seus problemas sem afetar ninguém. Até pensou em postergar o fim de sua vida, talvez fosse melhor planejar com mais calma sua própria morte: comprar uma arma, balas e um silenciador. Assim, poderia morrer sozinha e sem estardalhaço; só o barulho seco da bala sendo cravada no céu de sua boca. Silenciosa, rápida e sem alarde, era dessa forma que desejava a morte.
“Uma vida de sucesso transformar-se-ia em tragédia por uma simples derrota?”, alguns poderiam pensar, porém, para Sara, as coisas não eram tão simples. Para quem aposta alto, toda perda é grandiosa. Se ela fosse uma viciada em jogos, com certeza seria uma daquelas jogadoras que apostam todas as suas fichas de uma vez só, em um único número. Sara guiou sua vida como uma grande guerra, um verdadeiro Blitzkrieg, rápida e brutal. Derrotava quem quer que lhe aparecesse na frente e impedisse seus planos. Ou conquistava o mundo, ou se afundava no inferno. Tudo ou nada. Perder uma batalha, era perder a guerra, perder o sentido da luta. Por isso estava parada em frente aquela janela.
Apesar do revólver ser uma idéia melhor do que saltar do oitavo andar de um prédio, Sara não queria esperar mais. “O que adiantou eu tanto planejar a minha vida?”, pensava ela, enquanto esconjurava toda aquela situação. “O que adiantará eu planejar a minha morte? Nada”. Estava decidida a morrer. Se o fim era certo, o que lhe interessaria os meios? O acaso já havia brincado demasiadamente com a pobre moça, ela queria ser tomada, novamente, com sua própria morte, pela sensação de possuir o controle da situação. Prolongar sua vida era dar espaço para a contingência.
Sara abriu a janela. O som que antes era abafado pelo vidro, agora entrava caótico dentro de sua sala. A cacofonia da cidade lhe parecia o canto das sereias chamando os marinheiros para a morte. O vento forte encharcava o cômodo, esvoaçava suas roupas e desgrenhava seu cabelo. Os documentos do processo, objetos de tanto estudo, pousados sobre uma das mesas da sala, sairiam voando não fossem os pesados pesos de papel que os seguravam. Sara, pela primeira vez depois do julgamento, achou graça. Sorriu timidamente ao ver os documentos se batendo entre si, impulsionados pelo vento; pareciam desesperados procurando a liberdade. Sara, sem se preocupar com a importância daqueles documentos, resolveu libertá-los. Depois de morta, quem a culparia pela bagunça em seu apartamento?
Como uma menina que desconhece as conseqüências de seus atos, ou, que conhece, mas se arrisca em levar bronca pela simples brincadeira, Sara foi caminhando na ponta dos pés, parou em frente a mesa e levantou o primeiro peso de papel. “Ops”, deixou escapar com falsa surpresa. Os documentos saíram voando se espalhando pela sala inteira. Cada vez que levantava um dos pesos de papel, repetia o seu “ops” maroto. Logo, ela estava rodeada por papéis que voavam em torno dela. Aquela multidão de documentos se batendo no ar, lhe jogou, sem piedade, para o passado. Era a cera derretendo em suas costas.
Como um Hermes que volta ao chão com as asas descoladas, Sara despencou do céu para aquela tarde de domingo que brincava com seu avô. “Toda grande queda, antes do solo, nos trás a falsa impressão do voou”, Sara finalmente havia entendido o que seu avô havia lhe dito vinte anos atrás. “Veja, minha neta, como esses homenzinhos parecem perdidos. Veja como permanecem no ar, lutando contra o chão, contra uma realidade a qual não podem fugir. Por mais que eles fujam disso, em algum momento, uma brisa ou um sopro lhes levará para baixo e, durante o declínio, ainda terão a ilusão de estarem voando. O voou, assim como a felicidade, a riqueza, os amores, etc. são dependentes do vento, de uma brisa que os mantenha no ar”. A Sara, vinte anos mais nova, olhava para os homenzinhos sem entender muito bem o que seu avô dizia; a Sara mais velha, sorvia aqueles ensinamentos como se recuperasse a própria humanidade.
Passado e futuro corriam juntos, o tempo havia deixado de existir. Aquela mulher que pensava na morte, agora estava entregue ao redemoinho de papéis e sementes que a rodeava, suspensos no ar enquanto houvesse vento. Ela mesma percebia, agora, o quanto havia voado, o quanto tentou se manter no ar. Na sua ânsia por velocidade, nem percebeu o declínio, a queda e, quando a brisa acabou, o chão.
Sara dividia o mesmo tempo e o mesmo espaço com sua jovem personalidade. O apartamento em Nova York era também o jardim de seu avô. Ela sentia a grama que havia brotado no piso de sua sala. Com os pés descalços, ela afundava seus dedos no gramado que havia surgido naquele cômodo, sorrindo para as outras duas personagens.
Durante sua vida, Sara quis obter a perfeição. Esta era, para ela, a forma de conseguir a eternidade. Todos se lembrariam dela: “a maior advogada”, “aquela que nunca perdeu uma causa”, “aquela que publicou os maiores livros sobre direito”; além de toda riqueza e poder que este reconhecimento lhe traria. Ela tentou construir a vida perfeita. Só o que precisava fazer era seguir o plano que havia traçado, porém - novamente esta palavra - algo mudou em sua vida. Como um músico que não toca sem a partitura, Sara não viu concerto para sua vida, sem o plano. Desconsertada, desejou a morte. A liberdade dos papéis que voavam pela sala, era sua própria liberdade. Sara havia se libertado de uma eternidade insuportável e tirânica, do peso de uma vida repetida dia após dia. Deitada naquele gramado que havia surgido em sua própria sala, perdida no tempo e no espaço, rodeada por papéis e sementes de dente-de-leão, acompanhada da infância de si mesma e da sabedoria de seu avô, Sara percebeu que a fugacidade daquele momento era a coisa mais eterna que ela poderia ter, pois todo infinito é instantâneo. Um sorriso, um abraço, um ensinamento, uma alegria, uma descoberta, são sensações que nem mesmo o mais poderoso dos homens pode retirar de você, sensações que impregnam o nosso corpo quando são vividas com intensidade verdadeira. Tudo que é eterno caminha conosco e a verdadeira eternidade é leve como uma pluma.

quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

2009

Ano passado, prometi para mim mesmo que passaria a virada na praia, cheguei perto. Voltei hoje, por alguns motivos, para a “civilização”. Novamente passarei na cidade.
É engraçado, programamos tanto a passagem de ano, pois, o jeito que passamos por ela parece ser uma prévia do jeito que o nosso ano será. Pura idiotice. A minha passagem de ano será tão normal (será?) quanto alguns outros anos, mas estou sentindo um clima novo na minha vida. Estou sentindo que mudanças boas estão para chegar.
É complicado para os historiadores falar de mudanças, rupturas, pois sabemos que todos os processos têm suas continuidades. Não estou falando que hoje, a partir da meia noite, teremos um novo Junior, não, não é isso. O que estou querendo dizer é que tenho sentidos algumas mudanças no meu jeito de encarar as coisas, a vida, etc. que, não tenho dúvida irão refletir de maneira diferente para o próximo ano.
Desta vez, não vou desejar um “ano nulo”, mas sim um “ano fantástico”, seja lá, o que queira dizer isso. O que eu desejo de verdade é que o eterno sopre seu bafo sobre o meu rosto, preciso respirar a eternidade pelo menos por alguns segundos em 2009. Preciso muito ter a sensação, mesmo sabendo das efemeridades da vida, que podemos construir algo que subverta a ordem do “tudo que é sólido desmancha no ar”. Quero ter esta ilusão em 2009.
Quero sonhar, sim, quero sonhar muito. Quero acabar com esse pessimismo pós-moderno que se apossou de mim em 2008 e que matou os meus sonhos. Quero sonhar, quero ser tomado pelo transcendental, quero expulsar do meu corpo esta mente racionalizada e “insensível” as coisas “mágicas” que me tornei.
Quero andar de pés descalços, pisar na grama molhada, tomar banho de chuva.
Quero ser um Mensh, e não um ÜberMensh. Quero experimentar as sensações puras da vida.
Quero falar com desconhecidos na rua, observá-los e descrevê-los. Quero continuar um “flauner” no meio da multidão.
Quero tomar cerveja, vinho e tocar violão. Quero encontrar o lado dionisíaco que foi morto por Apolo em mim. Reencontrar através da música, o transcendental.
Quero acabar, definitivamente, todas as matérias da faculdade de música. Quero viver a música como algo que afaste os males para longe e não algo que só traga preocupações. Quero uma música nova para 2009. Quero tocar violão com simplicidade.
Quero correr, dessa vez não para fugir dos problemas, mas para melhor minha saúde. Chega de problemas de joelho (os malditos voltaram a doer em novembro e têm incomodado bastante), chega de cansaço, chega de falta de condicionamento. Quero que em 2009, nessa mesma data, eu esteja correndo a São Silvestre. É serio... eu sei que ninguém acredita em mim, mas eu vou tentar.
Quero ganhar mais dinheiro. Talvez dar mais aulas.
Quero, isso antes do começo das aulas, fazer a minha segunda tatuagem. Será um ouroboros nas costas. Essa vai ser carinha mais quero fazê-la antes de Março.
Quero emagrecer pelo menos 4 quilos esse ano. Pelo menos.
Quero escrever muitos contos, muitos, muitos. Quem sabe um por semana.
Quero sair com os meus amigos para me divertir. Amos vocês todos, sério.
Quero ler literatura “infantil”, “Le petit prince”, “História sem fim”, entre outros. Pureza, quero fugir da mente racionalizada dos adultos. Será o contraponto as leituras da faculdade.
Quero ler muita literatura. Sim, viva a literatura. Quero ler o máximo livros que puder.
Quero, quem sabe, aprender a dançar. Gostaria muito de fazer aula de dança em 2009. Quem sabe...
Quero entender a modernidade, a pós-modernidade, etc. Uahuahuahauhauauha.
Quero poder ser eu mesmo, sempre. Não quero ser um homem partido ao meio.
Quero coisas novas. Não objetos, que são descartáveis, mas pessoas, sensações, amizades, livros, filmes, viagens, etc.
E se nenhuma dessas coisas acontecerem, quero que o acaso me traga coisas boas. Em 2008 as coisas mais imprevisíveis foram as que mais me deram prazer e, para 2009, desejo muito que os acasos aconteçam. E quero que me lembre sempre que “todo infinito é instantâneo”.

sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

RETROSPECTIVA 2008

Sabe aquela frase “é melhor tomar cuidado com que se deseja”? Pois é, depois de 2008 vou tomar mais cuidado com as minha palavras. Estava relendo as coisas que escrevi no meu antigo blog e fiquei surpreso:

“Dessa vez não vou dizer: “Esse vai ser o meu ano”...mas, que seja o ano de outra pessoa... Que outra pessoa se dê muito bem esse ano, que seja feliz.
Por enquanto, vou curtir a minha estadia no “dark side at the moon”, é bom, te faz pensar na vida, rever valores, e as coisas que realmente te fazem feliz... Sabe, as vezes precisamos de um ano nulo, aquele ano que passa em branco, que só conta mesmo na idade.”

Pois é. Sério, o que foi 2008? Para mim foi sem dúvida o ano mais estranho, mais obscuro da minha vida, foi realmente meu ano “dark side at the moon”. “Ah, coitado!” Talvez, vocês possam pensar, mas não pensem isso, este também foi o ano mais fantástico da minha vida.
Não ganhei mais dinheiro, não namorei, sofri muito com as duas faculdades, novamente – todo mundo sabe que é loucura e eu também, não posso reclamar –, sofri novamente com decepções amorosas, porém, foi o ano em que se dissiparam “todas” – pelo menos boa parte – das máscaras do mundo, o ano em que me conheci de uma forma que nunca havia conhecido antes, como se eu mesmo fosse outra pessoa, como se até então o que havia feito era apenas mentir para mim mesmo.
O Jaime Junior desse ano foi dividido em dois, assim como os semestres do ano. Na primeira parte de 2008 o lema era: “eficiência”. Vivi como vivi 2007 inteiro. Noites mal dormidas, brigas e tentativas de retorno com a Silvia, a busca pelas notas altas... O peso do mundo sobre minhas costas. Algum tempo atrás eu li, não sei aonde, que o melhor exemplo para o herói moderno era o Atlas, sabe aquele cara da mitologia grega que carrega o mundo sobre suas costas?, pois é... Talvez seja um bom exemplo para o que eu tenha sido, mas não me orgulho em nada disso. Eu fui um idiota.
Eu fui na virada de 2007 para 2008 para Petrópolis com o Caio e que com a Dani. Enquanto os dois curtiam a cachoeira, sabem o que eu fazia? Ficava lendo “A ética protestante e o espírito do Capitalismo”, pela terceira vez. Sabe, não me julguem mal, mas eu realmente tentava devorar o mundo com os meus olhos, correr atrás do tempo perdido para obter todo conhecimento do mundo. Sabem quantos livros eu li nas férias? Janeiro e fevereiro? Quatorze, sim uma média de sete por mês. Que porra. Há uma frase do Ralph Waldo Emerson, que o Bauman usa, que acho talvez a melhor frase para explicar o nosso tempo e o jeito como eu vivia: “Quando se patina sobre o gelo fino, a segurança está na nossa velocidade”. Ou talvez possa também utilizar um trecho de Alice no país das Maravilhas, também utilizado pelo Bauman (meu guru, hehehe), que é: “Agora, aqui, veja, é preciso correr o máximo que você puder para permanecer no mesmo lugar. Se quiser ir a algum outro lugar, deve correr pelo menos duas vezes mais depressa do que isso!”. Era assim que eu me sentia, deveria correr duas vezes mais para sair do lugar, a sensação que tinha era que se não o fizesse ficaria no mesmo lugar e ficar no mesmo lugar na camada de gelo fino significa afundar. Isso, pode parecer louvável, engraçado, sei lá, mas não é nenhum dos dois... é ridículo, é quase doente. Vivi mal pra caralho por causa dessa porra chamada “princípio de eficiência”. Uma porra que me fez ligar tremendo e chorando pro meu pai, depois de três noites dormindo duas horas, vivendo a base de café e pó de guaraná, para falar que eu corria risco de ficar com DP em uma matéria na faculdade de música. O pior não foi isso, foi ouvir o professor falando: “você atingiu a nota para passar mas acho que você tem que fazer a matéria de novo.” Meu stress era tanto que não agüentei quando eu ouvi a voz do meu pai no telefone, chorei que ninguém uma criança. Só naquele dia eu tive 4 provas, sim, 4, 3 na de música e uma na de história. Minhas notas foram boas, mas a pergunta que me faço é: Pra quê?
A “mudança” veio junto com as férias. Em uma viagem que o pessoal da Unifesp fez para Minas aconteceu algo envolvendo três pessoas, eu era uma delas. Esse “algo” marcou a vida dessas três pessoas, de maneiras diferentes, mas sem dúvida foram marcas fortes para os três. Raiva, pena, amor, ódio, calor, frio, sobriedade, ebriedade, não é a toa que todo mundo conhece Minas pelo seu “barroco”, pois foi lá que os opostos se tocaram. Como diz Milan Kundera, quando os opostos estão tão próximos e quase se tocam “a existência humana perde suas dimensões e adquire uma INSUSTENTÁVEL leveza”. Quando os opostos estão próximos, tudo o que damos valor perde seu peso, quando o amor e o ódio estão vivamente presentes, ao mesmo tempo, o sentido que dávamos para eles perde seu valor, porém esta falta de peso, deixa sobre nossos ombros uma leveza insustentável. Foi assim que Minas se apresentou para mim e foi ali que começou minha “pós-modernidade”. Eu sempre fui um cara sonhador, vivia preso no futuro, “planejando” o que seria minha vida, ou, um cara meio passadista, sempre gostei de me lembrar da infância, relacionamentos passados, etc. Whatever, eu não estava preso no presente, estava sempre preso em um dos dois extremos, e foi quando os extremos se tocaram que o presente foi ouvido. Lembro-me bem de uma conversa que tive com uma das pessoas envolvidas neste “algo” que lhe falei “engraçado não consigo mais pensar no passado e nem ter esperanças no futuro”.
Provavelmente, vocês estejam pensando: “ah coitado”. Novamente peço, não pensem isso. Tem uma frase no filme “Pequena Miss Sunshine” que o tio da menina fala com o seu irmão mais velho sobre Proust, ele fala que o Proust era um cara fracassado, porém, chegou no final da vida e viu que não fossem estes anos de sofrimento, ele não seria quem ele era. Por isso 2008 foi um ano fantástico, pois foi através dele que consegui desmascarar o mundo e a mim mesmo.
Logo após o “algo” de Minas, e devido a minha falta de esperanças no futuro pude me desmascarar. Quando eu pensava “eu vou fazer isso, aquilo e tal”, eu pensava de forma muito realística, “não, você não vai, porque você é assim e daquele jeito”. Eu havia me enxergado. Todas as minhas limitações, todas as minhas potencialidades, apareciam diante dos meus olhos. Eu ouvi certa vez que o mito da medusa representa o fato de olharmos para nós mesmos, ficamos petrificados não porque olhamos para um monstro com cobras ao invés dos cabelos, mas porque olhamos para nós mesmos, porém, no reflexo, o que vemos é a figura monstruosa. Foi isso que aconteceu, olhei-me nos meus próprios olhos e vi o que era.
Desde as aulas de Contemporânea I comecei a enxergar o mundo em que vivemos como um mundo onde não me reconhecia. Assim como um “flauner”, passei a observar as pessoas e a sociedade e comecei a pensar: ah, então o mundo contemporâneo é assim... Puts, fudeu, sou uma peça que não se encaixa nesse mundo. Até “pode” ser que me encaixasse na velha modernidade, porém, estamos em outra modernidade agora, “a segunda”, “a líquida”, “a pós”, como queiram chamar, mas está aí o problema. A modernidade vendeu a todos a possibilidade de construir algo eterno e essa mentalidade permanece nos nossos dias. Quando Marx disse “Tudo que é sólido desmancha no ar – tudo que é sagrado é profanado”, ele estava falando dos sólidos e dos sagrados que estavam derretendo em sua época, o Antigo Regime, a Igreja, os valores tradicionais, etc, porém, vivemos num tempo onde novamente esta frase necessita ser repetida. Tudo que a modernidade construiu, seus “sólidos”, está sendo desmanchado, por isso que prefiro o termo “pós-modernidade”, e o que nos resta é essa sensação de estar perdido. A modernidade está virando sobre si mesma. Venderam para a gente que no final todo mundo ia ser feliz, que chegaria um momento onde todos seriam “felizes para sempre”, porém, isso não existe.
A questão da felicidade é algo que vem me assombrando desde 2006, quando comecei a perceber, cada vez mais, que este “felizes para sempre” não existe. Apesar de saber que não existe, era o que eu realmente desejava. É bobo, eu sei, mas era o que acontecia. Porém, depois de Minas, meu desencanto e minha angústia eram tão grandes que precisavam serem exteriorizados, daí surgiram os contos. Os contos foram algo que foram utilizados como válvula de escape. Foram essenciais nesses segundo semestre e, também, foram essencial na minha reflexão sobre o mundo.
Porém, se eu, para parafrasear Marx, fui forçado a enfrentar com sentidos mais sóbrios minhas reais condições de vida e minha relação com os outros homens, ainda havia algo que não havia mudado, ele: “o princípio de eficiência”. Demorei um pouco para que caísse a ficha do quão nociva estava sendo a vida que estava levando. Isso explodiu no TCC. Em agosto eu tinha um tema, em Setembro eu tinha outro, em outubro eu tinha que entregar a primeira parte do trabalho. Foi uma loucura, não foi fácil. Resolvi mudar o tema pois realmente o antigo, Guitarra e Internet, não estava me dando tesão, na verdade, o problema era bem pior, não estava conseguindo ter vontade de caminhar nesse tema, foi então que resolvi mudar para Chico Buarque e me encontrei. Resultado, fiz um TCC de quase 80 páginas em 1 mês. O tema: “Tradição e Modernidade em Chico Buarque”. Novamente, ela, a modernidade, me perseguia e foi extremamente prazeroso perceber que também perseguiu o Chico, durante um tempo, hahaha. Daí surgiu a mágica do TCC em 1 mês. Uma vez, falei com a Michele: “se na banca, eles me perguntarem ‘como você sabe que o Chico estava realmente passando por isso?’ A resposta que darei será algo como ‘de acordo com a bibliografia’, mas a real, aquela que estará ecoando na minha cabeça será ‘eu sei, tenho certeza, porque é isso também que estou passando’, hehehe. Talvez, tão importante quanto essa retrospectiva, para entender o meu 2008, seja o meu TCC. Ali esta também o meu conflito.
Mas voltemos ao “principio de eficiência”, termo que aprendi em um dos livros que li sobre o Chico Buarque. Gostei tanto que comecei a me enxergar nele. Esse um mês que vivi para o TCC foi insano. Vivi para o TCC, dando ênfase no vivi, não é exagerar. Não saía de casa, não lia os textos da faculdade de história, não viajava com os amigos, não vi meu pai, nem meu irmão, foi foda. Tudo para o TCC, na verdade aí já não era tanto um principio de eficiência, mas sim uma obrigação, uma obrigação que me dava tanto prazer que me fez enxergar o jeito como eu estava vivendo.
Nessa pesquisa, duas coisas me fizeram pensar e muito na minha vida. Uma foi um parágrafo do “Tudo que é sólido desmancha no ar” do Marshall Berman, onde, em sua análise do Fausto de Goethe, ele diz que um espírito da terra fala para o protagonista algo do tipo: por que você, ao invés de tentar ser um Übermensh (super-homem) “não luta para se tornar um Mensh – um autêntico ser humano?” Foi então que percebi que tinha perdido minha humanidade, eu vivia como um Fausto, mais humilde, que lia Weber, enquanto seus amigos curtiam a cachoeira, que passou um mês trancafiado em sua torre em Suzano vivendo para um TCC. Havia perdido o que era devidamente humano. Depois disso comecei a me questionar bastante sobre isso. Vale a pena tentar ser um Übermensh e perder tudo de mais belo que ser um Mensh pode te oferecer? Depende, isso pode ser uma escolha e não cabe a nós julgar sobre isso. Porém, a grande ingenuidade dessa escolha é que, mesmo que você passe a vida trancafiado em uma torre, tentando absorver todo conhecimento do mundo, tentando tocar guitarra o mais rápido possível, fazer os passos de dança perfeito, construir o viaduto perfeito, se tornar o atleta perfeito, etc. nada disso é garantido. Um músico que passa horas treinando ficará bom tecnicamente, mas talvez não atinja a sensibilidade de um Beethoven, ou talvez atinja, seja um gênio e não seja descoberto exatamente porque passou tempo demais em sua torre. Não temos nenhuma garantia.
A outra foi uma música do Chico chamada “Cara a Cara”, cujo refrão final é:

Vou correndo, vou-me embora
Faço um bota-fora
Pega um lenço agita e chora
Cumpre o seu dever
Bota força nessa coisa
Que se a coisa pára
A gente fica cara a cara
Cara a cara cara a cara
Com o que não quer ver

Para fazer a análise dessa música usei muito a metáfora do “gelo fino”. Essa música, segundo Adélia Bezerra de Menezes é guiada pelo “princípio de desempenho”. Porém, o mais fantástico nessa música é o fato do personagem não poder parar, porque, senão, ele fica “cara a cara com o que não quer ver”. E o que seria isso? Talvez sua própria condição de vida. Através desse trecho eu percebi o porquê de tanta correria. Fugia para não “enfrentar com sentidos mais sóbrios minhas reais condições de vida e minha relação com os outros homens”. Final de 2006, 2007 e metade de 2008 corri, como quem foge de sua sombra, só depois de Minas, só depois que o freio de mão foi puxado, minha sombra, e esse exemplo cai bem, pois podemos usar literalmente aqui o conceito de sombra de Jung, pôde me alcançar. E então as Máscaras (as minhas para MIM) caíram.
O final de semestre foi tão “tenso” - ou até mais - quanto o primeiro, porém, consegui vencê-lo com leveza, sem o peso do mundo sobre as costas. Consegui manter a minha média na faculdade de História e tive a minha melhor média na faculdade de música nos quatro anos. Esse semestre tive quatro 10... Acho que isso nunca mais ocorrerá na minha vida acadêmica, hahaha, nunca mais. Foi pesado, mas leve, como o peso da gravidade, o qual sentimos, mas pelo qual passamos indiferente. Uma força que não tentamos controlar ou vencer. E aprendi algo extremamente importante: Sou eu que controlo o que faço e não o que faço que me controla. O mal da modernidade é justamente ter ultrapassado todos os limites humanos, sentimentais, biológicos, mentais, etc. Tornamo-nos apenas a machinae animatae de Descartes. Eu não sou uma máquina, eu não sou um Ubermensh, sou um homem.
Desde então a INSUSTENTÁVEL leveza foi substituída por uma leveza indefinida, talvez sonhadora, talvez ébria, talvez desejada. Apesar da cirurgia da minha mãe que foi um período tenso, coisas muito legais aconteceram comigo no final deste ano. Há um post no meu antigo blog que falava sobre momentos felizes que eu gostaria de guardar em um retrato na parede. Esse mês de Dezembro tive um, tirei dez no TCC. Quando vi quase tive um treco de felicidade, hahaha.
Bem, mas já falei demais... Só gostaria de dizer que termino 2008 com uma leveza edificante, que traz bons fluídos e uma desconfiança de que 2009 será sensacional. Bem, já que falei para 2008, “que seja o ano de alguém”, gostaria de ser um pouco mais egoísta esse ano e falar “que seja o meu ano”, hahaha, que 2009 traga coisas boas, não só para mim mas para todos. As metas eu deixo para outro post.
Beijos e Abraços e obrigado por este ano, amigos.
J. J
PS: Não vou reler para corrigir porque estou cansado, então me perdoem pelo erros.

quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

CONTO XXI - O ÔNIBUS


A chuva caía insistente na estrada fazendo com que o motorista tivesse que guiar com o máximo de cuidado. Era noite. O caminho sem iluminação. O farol do ônibus iluminava as gotas de chuva, projetando a frente a única luz que se via naquela estrada. De um lado, mato, de outro, mais mato. Carros, em ambos os lados da rodovia, eram raros. O ônibus mantinha seu guiar solitário, desbravando o asfalto esburacado. O motorista era a única alma acordada. Guiava o veículo com habilidade, na chuva, no escuro e nos buracos, enquanto um pouco mais de dez passageiros dormiam despreocupados.
As pessoas sentavam-se separadas. Excetuando o casal de namorados sentados na frente, dormindo abraçados, todos os viajantes estavam espalhados pelos cantos do ônibus. Alguns aproveitavam a poltrona livre a seu lado parra esticar as pernas e dormir mais confortavelmente, afinal a viagem era longa. Outros aproveitaram o local vago para descansar sua bagagem.
O banco confortável, o ar condicionado ligado em uma temperatura amena, a música individualizada que tocava em alguns mp3s, tudo isso fazia as pessoas se esquecerem da chuva, do escuro e dos buracos. Ninguém se preocupava com o caminho a seguir, só desejavam ser levadas, conduzidas sem nenhuma participação no processo para a tão aguardada cidade-destino.
O motorista saiu da estrada. A confortável linha reta havia se transformada em uma curva não muito acentuada. Alguns passageiros, percebendo a mudança de direção, acordaram se preparando para a parada. Chegaram a uma lanchonete a beira da estrada aberta 24 horas. Aqueles que ainda não haviam acordado com a mudança de direção, acordaram com as luzes imponentes da lanchonete que puderam ser avistadas quando o ônibus foi estacionado, ou quando o motorista anunciou: “Pararemos durante quinze minutos”.
O ônibus, aos poucos, ia sendo esvaziado. As pessoas saíam para ir ao banheiro, comer algo ou apenas para esticar as pernas. A viagem seria longa. O casal de namorados continuou abraçado nos bancos da frente. Apesar de terem acordado, resolveram ficar dentro do veículo depois de trocarem meia dúzia de palavras. Se reacomodaram e voltaram a se abraçar. Antes da parada terminar já estavam dormindo, ela deitada sobre peito dele, como se necessitasse ser protegida e ele, que apesar de dormir, parecia seguro em sua função de protetor.
No fundo do ônibus, outra pessoa resolveu continuar dormindo. André acordou, percebeu que tinham chegado a uma parada, viu quando as pessoas saíram, mas resolveu permanecer no ônibus. Não quis abrir mão dos quinze minutos de sono que teria enquanto as pessoas aproveitavam a lanchonete. Virou-se para o lado e, olhando o movimento de fora, pela fresta da janela não coberta pela cortina do veículo, adormeceu.
Após os quinze minutos, o motorista verificou se todos os passageiros estavam presentes e partiu. De volta a estrada, novamente ele guiava o ônibus através da chuva, da noite e dos buracos. Logo após a partida, ainda era possível ver algumas pessoas acordadas, algumas ainda saboreando as guloseimas adquiridas na lanchonete, porém, sozinhas em suas poltronas, em menos de uma hora já estavam dormindo. Apenas um senhor, de aproximadamente uns 60 anos, personagem importante para nossa trama, permaneceu acordado.
O ônibus seguia sua viagem tranqüilamente, apesar dos buracos na estrada. Foi num destes buracos, o qual o motorista não conseguiu evitar, que André, e quase metade do ônibus, acordou. Ele acordou assustado, mas logo percebeu que o tranco recebido deveria se tratar das conhecidas imperfeições daquela estrada. Antes de fechar os olhos e voltar a dormir, resolveu mudar de posição e virou-se para dentro do ônibus. O susto do buraco não havia sido suficiente. Ao virar-se, percebeu uma presença ao seu lado, o que lhe gelou os mais recônditos cantos de sua alma.
Havia uma pessoa sentada ao seu lado, não que isso fosse estranho em uma viagem de ônibus, mas com certeza o era quando havia dezenas de lugares vazios. André, logo se preocupou. É impressionante como o sono nos parece supérfluo quando algo nos ameaça, não que André estivesse sendo ameaçado de forma concreta, mas a dúvida, aquela dúvida de não saber ao certo quais são as verdadeiras intenções de um estranho que se aproxima, é que é verdadeiramente ameaçadora, pois, fica no limiar entre uma ação injusta e o arrependimento de não ter agido na primeira oportunidade. “Quais são as intenções desse cara?”, se perguntava André, já não conseguindo mais pregar os olhos.
Esse “cara”, que tanto preocupava André, era o senhor que permanecia acordado, o qual já falamos acima. Sua aparência dava razão para desconfiança de André. Ele vestia um par de sandálias velhas, uma calça jeans desgastadas e uma camiseta xadrez de um marrom e preto já desbotados. O jeito que se vestia era ameaçador pelo simples fato de transparecer que nada tinha a perder, que nada possuía que pudesse ser roubado, nem mesmo um relógio de pulso.
André permanecia angustiado com aquela presença ao seu lado. Seus pensamentos eram incontroláveis: “O que ele quer? Por que não se sentou em outra poltrona já que há muitos lugares vagos? Se se sentasse em outro lugar poderia esticar suas pernas, dormir de maneira mais confortável. Agora, ficamos eu e ele desconfortáveis, dormindo em apenas uma poltrona por causa deste idiota, que raiva. É incompreensível a atitude deste cara, com certeza ele está tramando algo. Será que está querendo me roubar? Sim, definitivamente, ele vai me roubar”. André parecia prever seu próprio destino.
Impaciente bufou. O velho, percebendo que o rapaz ao seu lado havia acordado, se apresentou.
_ “Ola! Não sabia que você estava acordado. Prazer meu nome é Estevão.”
O gesto simpático do senhor, que talvez servisse para acalmar o rapaz, só piorou a situação. “Merda, antes fingisse que estava dormindo. Esse velho devia estar esperando eu acordar para me assaltar, merda.” O senhor ainda permanecia com a mão no ar esperando uma resposta de André.
_ “Daniel, me chamo Daniel”. André deu a mão ao velho e o cumprimentou. Ele havia mentido o seu nome por medo. Já somos convidados a interpretar personagens nos espaços públicos, que mal teria dar um novo nome a essa máscara. Já que, para ele, era tão certo que aquele velho mal vestido se tratava de um assaltante ou algum malfeitor, proteger seu nome verdadeiro era uma precaução compreensível. A falta de passado é uma das vantagens no contato entre estranhos, vantagem que nos permite mudarmos de nome, de profissão e até mesmo de atitudes. Essa possibilidade de mentirmos tudo a nosso respeito é, também, decorrência da falta de futuro destas relações.
Apesar dos braços fortes do senhor sentado ao seu lado, talvez fruto de anos de trabalho duro e sem descanso, o que preocupava André era invisível aos olhos. O lhe causava preocupação era a desconhecida intenção daquele homem, suas estratégias para o crime e, acima de tudo, as armas que poderia esconder. Em um confronto de mão com mão, talvez levasse vantagem, porém, não saberia a ameaça que aquele estranho poderia representar com uma faca ou com um revolver em um canto escuro do fundo do ônibus. Tinha medo.
_ “Você vai descer na rodoviária ou antes?” Perguntou o senhor.
Que pergunta era aquela, pensou André. Uma pergunta um tanto quanto suspeita. Por que ele havia perguntado o local que o rapaz desceria? André logo pensou que era para melhor tramar o assalto. Ele desceria antes, mas devido ao medo que sentia decidiu mentir novamente.
_ “Vou descer só na rodoviária”. Essa afirmação não lhe faria mal, afinal, um local mais movimentado seria menos perigoso.
_ “Eu também”, respondeu o estranho de nome Estevão.
_ “Que bom”. Disse André querendo terminar aquele colóquio.
André, mesmo desconfiando daquele homem, resolveu se virar em direção a janela e fingiu dormir. Talvez, a única coisa mais difícil do que o contato com um estranho que lhe causa medo, é lhe dar as costas. A atitude de André, temos de reconhecer, foi extremamente corajosa. Apesar disso, qual seria a verdadeira intenção de André com esse gesto? Será que o medo da conversa era maior do que o medo de uma faca apontando inesperadamente em suas costas? A turbulência de seus pensamentos nos dá a impressão de que essa atitude seria uma fuga, um sair de cena para reorganizar seus pavores, suas ações e seu personagem.
“Desgraçado. O que é que esse cara quer? Por que não fala logo? Será que vai esperar eu chegar na rodoviária para me assaltar?” Perguntas e mais perguntas surgiam na tempestuosa mente do rapaz. Ele pensou em se levantar e trocar de lugar, já que havia diversas poltronas vazias, porém, isso não seria de bom tom para a “civilidade”, aquela regra que aprendemos e que tem a função de deixar esses encontros entre estranhos tão leves quanto uma pluma: sem futuro, sem passado e sem profundidade.
Meia hora tinha se passado desde que havia mudado de posição, mas ele não conseguia dormir. Os minutos que passou, ali, imóvel, olhando para a escuridão que era desbravada pelo veículo, começaram a pesar sobre seu corpo. “Se eu ao menos tivesse o banco ao meu lado vago, poderia dormir com mais conforto”, pensou ele, enquanto decidia se virava para o outro lado ou não. Tinha a esperança do velho, a estas horas, já estar dormindo.
Virou-se. O senhor ao seu lado continuava acordado. Ele sentia cada vez mais raiva daquele homem chamado Estevão, isso se esse fosse realmente o seu nome verdadeiro. Afinal, se André havia mentido, o que lhe garantiria que o velho estava lhe falando a verdade? Se por um lado, a falta de passado desses encontros nos dão a vantagem de, na hora, inventar o nosso personagem, por outro, se mostra desvantajosa, pois nunca sabemos ao certo com quem estamos contracenando.
A falta de ameaça de uma idéia ameaçadora é um dos grandes problemas para a belicosidade dos homens. É incontável o número de guerras e combates que já foram travados por causa de uma simples suposição. André não queria cometer este erro, entretanto, também não desejava esperar pacientemente o golpe do inimigo, afinal, a mesma idéia ameaçadora que atiça a guerra, também causa paralisia. Foi para fugir deste estado de paralisia que André resolveu falar:
_ “Estevão... é esse seu nome, não é?”
_ “Sim, Estevão.”, respondeu o senhor.
_ “Então, Estevão, eu não me lembro de você quando saímos. Você, pelo que parece não estava no ônibus quando saímos, estava?” perguntou André.
_ “Realmente eu não estava. Eu entrei no ônibus durante a parada”.
André se surpreendeu com a resposta daquele senhor. Sem analisá-la bem e sem pensar direito nas conseqüências de sua próxima pergunta, falou:
_ “E o motorista sabe que você está viajando clandestinamente?”
O velho deu uma risada tão verdadeira que assustou André. Sua risada poderia ter acordado, facilmente, todas as pessoas do veículo, se elas não estivessem dormindo um sono profundo.
_ “Ah, Daniel. Você é muito engraçado. Eu comprei a passagem no guichê da última parada. Para mim, é mais cômodo comprar aqui. Além de ser perto da minha casa, é mais barato, pois, eu não preciso pagar a distância que já foi percorrida”.
_ “Você mora perto daquela parada?” perguntou André ao senhor.
_ “Sim, moro eu, minha filha e minha neta. Estou fazendo esta viagem para visitar um parente que está doente”.
André havia entrado em um terreno perigoso: a profundidade. Essas pequenas gotas de informação fornecidas gratuitamente por Estevão poderiam destruir suas defesas contra aquele estranho. Alguém que morava com a filha e com a neta, além de viajar esse longo percurso para cuidar de um parente doente, não poderia ser uma pessoa ruim, não poderia ser um assaltante. O fato é que André não queria que Estevão entrasse em sua intimidade e, antes que ele fizesse a fatídica pergunta, “e você, onde mora?”, aproveitando a momentânea cumplicidade, resolveu tirar a limpo aquela situação que tanto lhe incomodava.
_ “Estevão! Eu posso lhe perguntar algo?”
_ “Sim, claro. Fique a vontade”.
_ “O número da sua poltrona é realmente essa do meu lado? Porque quando o ônibus está vazio não precisamos seguir essa numeração, sabia?” André perguntou achando que talvez aquela situação fosse apenas uma falta de sorte na venda das passagens e um viajante extremamente preocupado com as normas da companhia rodoviária.
_ “Olha Daniel, para falar a verdade, eles não me deram uma numeração. Me entregaram a passagem em branco e falaram para eu me sentar aonde eu quisesse.
Essa não era a resposta que André queria ouvir, a preocupação continuava, entretanto ele decidiu levar esta história até o fim.
_ “É exatamente isso que eu não entendo. Você tinha a liberdade de escolher qualquer lugar para se sentar e, mesmo assim, você quis se sentar ao meu lado. Por quê?
_ “Bem, liberdade é uma palavra complicada e polissêmica. Eu não acho que o simples fato de não ter impedimentos para escolher o lugar para me sentar, seja um certificado para a minha liberdade. Eu realmente prefiro usá-la ocupando os espaços vazios que eu definir. Afinal, eu escolhi você, porém, você não me escolheu. Que liberdade você teve de escolher a pessoa que se sentou ao seu lado. Nenhuma. Eu preferi compartilhar esse poltrona ao seu lado do que me sentar sozinho e estar sujeito a escolha de alguém”.
O medo, que antes era do marginal, se transfigurou no medo do mala sem alça. André só conseguia pensar: “Puts, que cara chato”.
_ “Tá, tudo bem, respeito sua idéia de liberdade, mas não seria mais confortável para nós dois, se você se sentasse em outro lugar?” Perguntou o rapaz.
_ “Sim, eu não tenho a menor dúvida. Porém, é por causa do conforto que cada uma destas pessoas escolheu a distância. O conforto nos separou. Foi o conforto de cada poltrona que nos fez esquecer os buracos “desconfortáveis” que aparecem durante o caminho. Essas pessoas não mexeriam uma palha para reclamar de tudo o que é exterior a suas poltronas, porém, coitada da empresa rodoviária se deixar uma janela sem cortina, uma acento sujo, ou qualquer outro fator que atrapalhe o bem-estar destas pessoas. Elas só se preocupam em exigir seus direitos como consumidoras e não como cidadãs. Toda defesa dos problemas coletivos é deixada de lado, pois...”.
_ “Beleza, Estevão, eu sou uma dessas pessoas, eu quero conforto. Não vou ficar aqui, escutando esse papo chato de liberdade, direitos, etc. Eu vou me levantar e vou me sentar em outro lugar e não quero saber de você me “escolher” de novo, ok? Vou usar a minha liberdade, ouviu bem, a minha liberdade, para sentar aonde eu quiser e ninguém vai me impedir”, disse André, demonstrando certa raiva.
Estevão, um pouco preocupado com a atitude do rapaz, falou:
_ “Calma, Daniel. Se você quiser eu posso ir para outro lugar”.
_ “Olha, eu gostaria muito, Estevão”.
O velho respirou e disse olhando nos olhos do rapaz:
_ “Então me convença”.
Ao ouvir esta resposta André pareceu desacreditar no que acabava de escutar. Ele se levantou, pegou sua mochila e saiu. Decidiu sentar-se longe daquele “velho maldito”, como ele mesmo proclamou. Sentou-se lá na frente, próximo ao casal que dormia abraçado. Para eles o conforto não parecia tão importante, mas André tinha certeza de que para si era o essencial. Agora se sentia livre e feliz.
O ônibus continuou seu caminho tortuoso pela noite, pela chuva e pelos buracos. A viagem ainda seria longa. André havia, como o resto daquelas pessoas, se espalhado nos dois bancos que ocupava deleitosamente. Estevão continuava incorruptível; reto, grave e sem sono, em um único lugar. Dentro do veículo, os passageiros continuavam em suas poltronas confortáveis, aproveitando a agradável temperatura do ar condicionado e individualizados em seus mp3s, do lado de fora, a chuva, a noite e os buracos, pareciam entidades místicas que fugiam ao controle da daquelas pessoas. Nada podiam fazer. Nada queriam fazer. Só desejavam ser conduzidos.

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

CONTO XX - EPIFANIA


Entrei no quarto apressado. Ela me esperava sem a blusa na sala de minha casa. Passei o dedo pela estante de cds e não achava aquele que queria. Repetia alto o nome do disco, inconscientemente, como se de alguma forma o título daquele álbum ressoasse como um mantra que o trouxesse para mim. O vinho estava aberto, duas taças já haviam sido sorvidos por cada um. Ela me esperava um pouco ébria e sem a blusa na sala de minha casa. A música era essencial, era o tempero que faltava para completar a paisagem que vinha em minha mente enquanto eu dedilhava os cds espalhados pelo quarto. Nada.
Será que o havia emprestado para alguém? Tenho certeza que não. Poucas pessoas conheciam esse artista. Apenas aquela garota que me esperava na sala havia se entusiasmado quando lhe disse que tinha este disco, talvez apenas ela conhecesse esse artista. Os meus dedos dedilhavam os cds na estante. Nada.
Nessas horas, onde há uma garota ébria e sem a blusa na sua sala e você fica procurando o cd que ela pediu para dar “aquele clima”, é que você se martiriza por ter comprado tantos discos inúteis. Consumo supérfluo. Desejava ter apenas um neste momento. Aquele era o único álbum que desejava achar. Nada.
“A pressa é inimiga da perfeição”, já dizia minha mãe. Cheguei ao final dos cds e não achei aquele que gostaria. Tive que repetir a procura, um por um, prestando mais atenção naquele dedilhar. Finalmente o vi. Puxei o cd da estante e abri a embalagem. Nada.
Tive vontade de gritar quando percebi que o cd não estava lá.Rapidamente, no ápice do desespero, comecei a espalhar todos os cds pelo quarto, todos aqueles cds supérfluos que já não escutava havia anos. Na caixinha do Metallica estava João Gilberto, na do João Gilberto, Bob Marley; na do Bob, o Nove Luas do Paralamas do Sucesso, álbum muito bom que estava procurando a tempos. Fiquei feliz por um momento, ao ver que finalmente o tinha achado, porém, o desespero voltou quando lembrei que ainda não tinha encontrado o disco que a garota, que me espera sem a blusa e um pouco ébria na sala, havia me pedido. Nessa procura insana pelas caixinhas dos cds, via todas as fases da minha vida se transfigurando sob meus olhos. Algumas me davam mais vergonhas do que outras, porém, compreendi o tamanho anacronismo que cometia comigo mesmo ao julgar o meu próprio passado pelo gosto do presente. Isso não importava. Desejava apenas achar aquele maldito cd. Nada.
A busca continuava. Paulinho da Viola na embalagem do Racionais Mc’s, Spice Girls na caixinha do Ramones. Aquela desordem me enlouquecia. Me sentia perdido, tinha vontade de gritar. O que a garota que me espera sem a blusa na sala de minha casa pensaria a respeito de minha demora? Não sei, seria melhorar não demorar. De repente abri a caixinha do Cannibal Corpse. Epifania.
Finalmente, achei o cd. Me senti zonzo com a descoberta, não pelo vinho, mas por causa de uma arrebatadora epifania. Por um micro-segundo, enquanto eu maldizia a desordem das caixinha, me questionava por que, de uns anos para cá, havia desenvolvido o péssimo hábito de não guardar os cds nas sua respectivas embalagens. Foi então que percebi que este hábito não era só meu. Quase todo mundo tinha adquirido essa mania. Será que as caixinhas que antes definiam tudo, já não eram mais úteis? Será que os ouvintes já não se importavam tanto com a sacralidade das embalagens e transitavam facilmente entre elas sem se preocupar com rótulos? Será que a desordem dos cds era um espelho da desordem de nossas vidas? Será que estávamos tão perdidos que não nos reconhecíamos mais em nenhuma das caixinha? Afinal, seríamos nós cds sem embalagens? Epifania.
Como alguém que acorda depois do desmaio, fui jogado de volta ao meu corpo. Não havia tempo para se pensar nisso. Uma voz me chamava. A voz era dela que me esperava um pouco ébria e sem a blusa na sala de minha casa. Tinha em mãos o que faltava. Música.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

CONTO XIX - CHARLOTTE


Estava tudo encerrado. Charlotte foi enterrada e as pessoas começavam a se dispersar. O final de tarde daquele sábado, triste sábado para aquelas pessoas, estava nublado e anunciando uma tempestade. Talvez o céu tivesse também suas lágrimas para aquela que se foi.
O que consolava aquela gente vestindo o negro do luto e óculos escuro, cúmplices de olhos marejados, era o fato de todos já esperarem esta morte. Charlotte já havia sido desenganada pelos médicos. Todos sabiam que logo ela os deixaria. O fato de ela ter vivido dois meses a mais do que o esperado, não foi suficiente para criar esperanças vãs para aquela gente.
As pessoas iam embora juntas, porém, solitárias em seus pensamentos. Poucas conversas podiam ser ouvidas. A marcha negra caminhava pelo verde do gramado do cemitério, procurando a saída daquele lugar que lembrava o fim inexorável que espera a todos.
Enquanto a turba continuava sua caminhada fúnebre, três dos convidados para o adeus derradeiro, convidados, pois Charlotte havia feito uma lista, antecipadamente, das pessoas convidadas para seu próprio enterro, permaneciam junto ao túmulo. Os dois homens e a mulher se abraçavam, olhando para a lápide recém fechada.
A mulher chorava copiosamente. Tinha segurado suas lágrimas durante toda cerimônia, porém, agora, sem aquela multidão de rostos desconhecidos chorava sem vergonha, sendo consolada pelos dois homens que a ela estavam abraçados.
O Silêncio reinava. Só era interrompido pelo choro soluçado da mulher. O rapaz de blazer preto a puxou para próximo de si. Encostou o rosto dela em seu peito e a abraçou forte. O outro, de óculos escuros, se contentou em afanar levemente o cabelo da mulher.
Era difícil dar adeus a Charlotte. Era difícil imaginar a vida sem as noites de vinho e poesia em seu apartamento. A mulher chorava desesperadamente e escorregava seu corpo no homem de blazer em direção ao chão. Os dois homens, vendo este desfalecimento desesperado, a seguraram.
“Vamos, é melhor irmos embora. Ficar aqui não trará Charlotte de volta e, além do mais, uma tempestade se aproxima de nós”, disse o homem de blazer, enquanto segurava a mulher. Os três partiram, mas o único que ousou a olhar para trás foi aquele de óculos escuros. Olhou na esperança de rever Charlotte, porém, só encontrou a lápide vazia.
Na caminhada em direção a saída, eles seguiam o exemplo da multidão que já havia feito esse caminho anteriormente permanecendo em silêncio. Os três, passo a passo, caminhando de luto sobre o jardim verde, sem dizer uma palavra, mas com um pensamento em comum: Charlotte.
Ao saírem do cemitério se depararam com a praça, que fica em frente, barulhenta e cheia de gente. Parecia que os três tinham atravessado o portão da vida, voltado à realidade. Os três se entreolharam e foi o homem de óculos escuro quem teve a idéia: “Vamos beber alguma coisa naquele restaurante do outro lado da praça”. Os outros dois, sem dizer nada, apenas balançaram a cabeça concordando.
Recusaram as mesinhas que ficavam no exterior do restaurante, onde jovens bebiam cerveja e os casais namoravam, para acharem um canto escuro em seu interior. Um lugar escuro, a meia luz, no ocaso do sábado, era tudo o que eles precisavam para continuar suas tristezas.
Os três sentaram em silêncio e ali permaneceram. A mulher deixando escorrer algumas lágrimas sobre sua face, mas sem soluçar. O homem de blazer de braços cruzados sobre a mesa. E, o outro, ainda de óculos escuros.
O silêncio só foi quebrado quando o garçom chegou para lhes oferecer o menu. Eles sabiam o que deveriam pedir. Sem pestanejar o homem de óculos escuros, disse: “Nos traga uma garrafa do seu melhor vinho”. Olhando para os outros dois, no lado oposto da mesa, falou: “Tenho certeza que Charlotte gostaria que bebêssemos vinho, sua bebida favorita e, além do mais, é uma forma de lembrarmos-nos de todos os encontros que tivemos em sua casa, regados por vinho e poesia.
O vinho chegou. Os três brindaram “à Charlotte” e degustaram o rubro líquido de Dionísio. O silêncio permanecia soberano entre goles e respirações pesadas.
Após meia hora de silêncio foi a mulher quem decidiu exteriorizar sua angústia: “Sabe o que eu não entendo, por que vocês nunca ficaram juntos? Charlotte lhe amava”, disse para o homem de blazer. “Lembro-me do dia em que estávamos eu e ela em sua casa, tomando vinho e escutando Ella Fitzgerald. Charlotte amava Ella. Era um sábado à noite, íamos sair, porém, ela se sentiu mal por causa da sua doença e decidiu cancelar nosso passeio. Eu estava em casa, pronta para sair quando ela me ligou cancelando. Fiquei triste e preocupada, pensei em ir lá, porém, ela falou que queria dormir, descansar. Já passava da meia-noite, eu estava sem sono, lendo um livro, quando ela me ligou chorando me pedindo para ir a sua casa. Vocês sabem o que eu faria por aquela mulher. Peguei o carro e fui”.
A mulher parou para tomar mais um gole do vinho. O homem de blazer tentou falar algo, porém, a mulher não deixou, levantou a mão indicando que ela ainda não havia terminado. Continuou: “Ao chegar lá a vi chorando, com uma garrafa de vinho aberta e com uma foto sua nas mãos dela. Sentei-me ao seu lado e perguntei o que estava acontecendo. Ela me disse que o amava, sendo que cada vez que olhava para sua foto nas mãos dela, chorava desesperadamente. Eu ainda não a entendia muito bem, quando ela me explicou. Havia cancelado o nosso encontro para sair com você. Fiquei um pouco chateada, mas o estado em que ela se encontrava me deixou preocupada, decidi não esbravejar. Ela me disse que vocês tinham ido à inauguração de um restaurante de um amigo seu e lá, ela havia se declarado para você, declarado todo o amor que sentia. Você a amava, por que recusou seu amor? Por quê? Ela ficou acabada. Chorava copiosamente quando me ligou. Eu realmente não entendo? Eu fiquei com ela a noite toda, ouvindo suas mágoas, bebendo vinho e escutando Ella Fitzgerald. Você a amava, por que recusou seu amor?” A dúvida da mulher virou desespero, ela repetia “por quê?”, “por quê?”, diversas vezes e chorava desconsolada. Os dois homens só observavam.
O homem de blazer estava emocionado, nervoso, angustiado, uma mistura de tudo. Via o desespero daquela mulher e sabia que era amor, sabia o quanto ela amava Charlotte. Ele, pausadamente, disse: “Eu acho que você está enganada”. A mulher se enfureceu e começou a socar-lhe o peito desesperada. O homem a segurou e lhe abraçou forte. Ela chorava desesperada e, se sentindo amparada pelo abraço do amigo, se entregou as lágrimas.
Ele, então, sem desfazer o abraço, continuou: “Você está enganada. Bem... Eu não sei que motivos, Charlotte teria para mentir, mas a história que aconteceu não foi bem essa. Realmente nos encontramos no restaurante de meu amigo, porém, fui eu quem me declarei a ela. Você sabia que eu a amava, se a história que você está contando é verdade, porque eu teria recusado o amor da mulher que mais amei na minha vida. Charlotte sabia disso, porém, nunca tive alguma ação por parte dela, que ultrapassasse a linha da amizade. Nunca fui correspondido neste amor. Quando, em um jantar romântico, eu disse que lhe amava e que queria ficar com ela, mesmo sabendo de sua condição, sua resposta foi que amava outra pessoa. Apesar de amá-la, eu nunca acreditei realmente que Charlotte pudesse amar alguém. Charlotte era uma mulher sensacional, uma mulher que não poderia ser de uma pessoa só. E, quando lhe perguntei a quem amava, foi o seu nome que ela disse”.
A mulher, ao ouvir isso, empurrou o homem para soltar-se daquele abraço. Ela tremia. “Por que você está mentindo? Por quê? Por que você quer me magoar desse jeito?” dizia ela. O homem, reconhecendo o estado em que se encontrava sua amiga, resolveu continuar a história: “Você sabe que eu não teria motivos para mentir, esta é a mais pura verdade. Charlotte me disse que te amava e que, finalmente, havia resolvido assumir este amor que tentou esconder por anos. Ela me disse que, apesar de amar você e saber que este amor era recíproco, não poderia aparecer na sociedade tendo um relacionamento homossexual, isso não seria bom para seus negócios. Porém, com a proximidade do fim de sua vida, havia resolvido viver este amor. Foi isso que aconteceu. Agora, por que ela não te disse a verdade, eu não sei”.
“Ela estava com sua foto na mão, por quê?
“Eu já disse que não sei por que ela não lhe contou a verdade”.
“Ela mentiu para um de nós dois. Por quê?”
“Não sei, mas foi o seu nome o qual ela disse no restaurante”.
“E foi com sua foto nas mãos que ela chorava desesperada”.
O homem de óculos escuro tinha uma outra versão da história. Charlotte havia lhe ligado e, pela descrição dos dois, no mesmo dia, provavelmente, entre o restaurante e a chegada da mulher. Ela havia pedido que fosse a sua casa e que levasse um vinho. Era por volta das dez da noite quando ele chegou à casa de Charlotte. Assim que ele entrou em sua sala, aquela mulher começou a tentar beijá-lo. O homem não sabia o que fazer e logo a empurrou. As lembranças daquele dia eram nítidas em sua cabeça. “O que você está fazendo?” perguntou para Charlotte. “Eu te amo. Eu sei que é tarde para dizer isso, tarde porque eu nunca deveria ter me separado de você e tarde porque estou morrendo, mas é a mais pura verdade. Eu te amo”. O homem ficou atônito, não acreditava no que estava ouvindo. “Charlotte, o que você está dizendo. Achei que tínhamos superado isso há anos. E você sabe que amo minha família, minha mulher e meus filhos. Você sabe. Por que fez isso?” Charlotte pegou o vinho que estava nas mãos daquele homem e disse: “Vamos abrir esse vinho, relaxar e passar a noite juntos. Eu te amo, eu estou morrendo, já é hora de deixar de me enganar e assumir o meu amor. O que tivemos no passado foi tão intenso, tão bom, nunca esqueci aqueles anos”. “Já faz dez anos Charlotte”, disse o homem. “Éramos adolescentes. Muitas coisas mudaram. Agora, eu sou um homem casado, o nosso tempo já passou. Você não é mais do que uma grande amiga”. Charlotte, enlouquecida, voltou a tentar beijá-lo. Ele segurou seus braços, mas ela mesmo assim continuava tentando lhe beijar. Ele a empurrou no sofá e disse: “Charlotte, que merda, o que está havendo com você? Já disse, sou um homem casado, porra! Você está louca? Que merda. Adeus!” e saiu sem olhar para trás.
De volta ao presente e vendo aqueles dois discutirem sobre quem estava com a razão, quem era o verdadeiro amor de Charlotte, ele pensou em toda aquela situação. Ele se questionava o porquê daquela atitude de Charlotte. Havia passado anos e ela nunca tinha dado o menor sinal de que desejasse voltar. Ele agora estava casado e muito feliz. Não sabia se acreditava realmente em Charlotte. Como disse o homem de blazer, ele também desconfiava que Charlotte pudesse amar alguém de verdade. Todo aquele mistério lhe perturbava a alma. Por que havia mentido para ele? Por que havia mentido para os outros pobres coitados que tanto a amavam? O fato era que ele foi o escolhido, o único a ouvir “eu te amo” da própria boca de Charlotte. Ela era uma mulher muito complexa, todos a admiravam, todos a desejavam. Será que ela realmente o amava? Quem sabe? Talvez quisesse apenas descobrir, antes de morrer, como era a sensação de se declarar para alguém e não ser correspondida. E ela sabia que aquele homem amava sua família, amava sua esposa e que sua resposta para todas as tentativas de beijá-lo seria “não”, que todos os “eu te amo” cairiam em ouvidos surdos.
Ela havia lhe plantado uma dúvida que lhe atormentaria pelo resto da vida. Vendo aqueles dois continuarem aquela discussão que não iria levar a nada, ele entendeu e, finalmente, rompeu o silêncio: “Vocês não vêm? Não entendem? Charlotte sempre foi uma mulher misteriosa, sempre esteve cercada de enigmas. Esta mentira, porque se as duas versões são verdadeiras, foi Charlotte quem mentiu, é apenas mais um de seus truques, de seus mistérios que nos atormentarão, enquanto ela descansa em paz. Esta é apenas mais uma maneira dela se manter imortal em nossas vidas. Assim, nunca saberemos quem é seu verdadeiro amor. Nunca saberemos nem mesmo se ela já amou alguém de verdade. Assim, vocês levam a dúvida de serem amados e, junto, o sentimento do ‘se’, pois Charlotte sabia, perfeitamente, assim como nós sabemos que o ‘poderia ter sido’ leva mais da imortalidade do que aquilo foi. Charlotte sempre foi dada a mistérios, este é apenas mais um deles. Nunca podemos desconfiar da engenhosidade daqueles que conhecem a verdade que mais nos assusta: que a morte se aproxima. Nunca podemos desconfiar da engenhosidade daqueles que têm pouco tempo para se tornarem imortais”.