quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

CONTO XX - EPIFANIA


Entrei no quarto apressado. Ela me esperava sem a blusa na sala de minha casa. Passei o dedo pela estante de cds e não achava aquele que queria. Repetia alto o nome do disco, inconscientemente, como se de alguma forma o título daquele álbum ressoasse como um mantra que o trouxesse para mim. O vinho estava aberto, duas taças já haviam sido sorvidos por cada um. Ela me esperava um pouco ébria e sem a blusa na sala de minha casa. A música era essencial, era o tempero que faltava para completar a paisagem que vinha em minha mente enquanto eu dedilhava os cds espalhados pelo quarto. Nada.
Será que o havia emprestado para alguém? Tenho certeza que não. Poucas pessoas conheciam esse artista. Apenas aquela garota que me esperava na sala havia se entusiasmado quando lhe disse que tinha este disco, talvez apenas ela conhecesse esse artista. Os meus dedos dedilhavam os cds na estante. Nada.
Nessas horas, onde há uma garota ébria e sem a blusa na sua sala e você fica procurando o cd que ela pediu para dar “aquele clima”, é que você se martiriza por ter comprado tantos discos inúteis. Consumo supérfluo. Desejava ter apenas um neste momento. Aquele era o único álbum que desejava achar. Nada.
“A pressa é inimiga da perfeição”, já dizia minha mãe. Cheguei ao final dos cds e não achei aquele que gostaria. Tive que repetir a procura, um por um, prestando mais atenção naquele dedilhar. Finalmente o vi. Puxei o cd da estante e abri a embalagem. Nada.
Tive vontade de gritar quando percebi que o cd não estava lá.Rapidamente, no ápice do desespero, comecei a espalhar todos os cds pelo quarto, todos aqueles cds supérfluos que já não escutava havia anos. Na caixinha do Metallica estava João Gilberto, na do João Gilberto, Bob Marley; na do Bob, o Nove Luas do Paralamas do Sucesso, álbum muito bom que estava procurando a tempos. Fiquei feliz por um momento, ao ver que finalmente o tinha achado, porém, o desespero voltou quando lembrei que ainda não tinha encontrado o disco que a garota, que me espera sem a blusa e um pouco ébria na sala, havia me pedido. Nessa procura insana pelas caixinhas dos cds, via todas as fases da minha vida se transfigurando sob meus olhos. Algumas me davam mais vergonhas do que outras, porém, compreendi o tamanho anacronismo que cometia comigo mesmo ao julgar o meu próprio passado pelo gosto do presente. Isso não importava. Desejava apenas achar aquele maldito cd. Nada.
A busca continuava. Paulinho da Viola na embalagem do Racionais Mc’s, Spice Girls na caixinha do Ramones. Aquela desordem me enlouquecia. Me sentia perdido, tinha vontade de gritar. O que a garota que me espera sem a blusa na sala de minha casa pensaria a respeito de minha demora? Não sei, seria melhorar não demorar. De repente abri a caixinha do Cannibal Corpse. Epifania.
Finalmente, achei o cd. Me senti zonzo com a descoberta, não pelo vinho, mas por causa de uma arrebatadora epifania. Por um micro-segundo, enquanto eu maldizia a desordem das caixinha, me questionava por que, de uns anos para cá, havia desenvolvido o péssimo hábito de não guardar os cds nas sua respectivas embalagens. Foi então que percebi que este hábito não era só meu. Quase todo mundo tinha adquirido essa mania. Será que as caixinhas que antes definiam tudo, já não eram mais úteis? Será que os ouvintes já não se importavam tanto com a sacralidade das embalagens e transitavam facilmente entre elas sem se preocupar com rótulos? Será que a desordem dos cds era um espelho da desordem de nossas vidas? Será que estávamos tão perdidos que não nos reconhecíamos mais em nenhuma das caixinha? Afinal, seríamos nós cds sem embalagens? Epifania.
Como alguém que acorda depois do desmaio, fui jogado de volta ao meu corpo. Não havia tempo para se pensar nisso. Uma voz me chamava. A voz era dela que me esperava um pouco ébria e sem a blusa na sala de minha casa. Tinha em mãos o que faltava. Música.

2 comentários:

pontos... disse...

Este conto me lembra uma sinfonia romântica: inicialmente mostra um Allegro ma non troppo em que vc acha onde ele vai ficar sempre, parece que você sabe tudo sobre ele, mas SURPRESA! um Scherzo allegro te surpreende quando O CD nã oestá lá. E segue nessa bagunça de sons e de capinhas e de CDs e de música e ... quando você acha que acabou, a sinfonia chega em sua Epifania, no aumento dos metais e das cordas graves e quando atinge seu pico maior, dá-se entrada ao seu próprio Adágio Lento, quando se finaliza.

Uma sinfonia ótima para se ouvir ébrio e acompanhado, ainda mais se o momento do gozo combinar com o momento da Epifania. Resta saber, quê CD é esse?

J. J disse...

Hahaha, Fernandinho... Eu que fiz faculdade de música não saberia definir tão musicalmente assim este conto, uahuahauhauha, muito bom... Por isso que eu falo que a superinterpretação é o que dá alma as coisas escritas. Muito bom, é como uma história dentro da história, hauhauhauha.
Que Cd, é esse? Talvez sejamos nós mesmos, talvez aquele que mais gostamos... Cada um sabe o que cd que estava lhe faltando na hora H.