sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

CONTO XIX - CHARLOTTE


Estava tudo encerrado. Charlotte foi enterrada e as pessoas começavam a se dispersar. O final de tarde daquele sábado, triste sábado para aquelas pessoas, estava nublado e anunciando uma tempestade. Talvez o céu tivesse também suas lágrimas para aquela que se foi.
O que consolava aquela gente vestindo o negro do luto e óculos escuro, cúmplices de olhos marejados, era o fato de todos já esperarem esta morte. Charlotte já havia sido desenganada pelos médicos. Todos sabiam que logo ela os deixaria. O fato de ela ter vivido dois meses a mais do que o esperado, não foi suficiente para criar esperanças vãs para aquela gente.
As pessoas iam embora juntas, porém, solitárias em seus pensamentos. Poucas conversas podiam ser ouvidas. A marcha negra caminhava pelo verde do gramado do cemitério, procurando a saída daquele lugar que lembrava o fim inexorável que espera a todos.
Enquanto a turba continuava sua caminhada fúnebre, três dos convidados para o adeus derradeiro, convidados, pois Charlotte havia feito uma lista, antecipadamente, das pessoas convidadas para seu próprio enterro, permaneciam junto ao túmulo. Os dois homens e a mulher se abraçavam, olhando para a lápide recém fechada.
A mulher chorava copiosamente. Tinha segurado suas lágrimas durante toda cerimônia, porém, agora, sem aquela multidão de rostos desconhecidos chorava sem vergonha, sendo consolada pelos dois homens que a ela estavam abraçados.
O Silêncio reinava. Só era interrompido pelo choro soluçado da mulher. O rapaz de blazer preto a puxou para próximo de si. Encostou o rosto dela em seu peito e a abraçou forte. O outro, de óculos escuros, se contentou em afanar levemente o cabelo da mulher.
Era difícil dar adeus a Charlotte. Era difícil imaginar a vida sem as noites de vinho e poesia em seu apartamento. A mulher chorava desesperadamente e escorregava seu corpo no homem de blazer em direção ao chão. Os dois homens, vendo este desfalecimento desesperado, a seguraram.
“Vamos, é melhor irmos embora. Ficar aqui não trará Charlotte de volta e, além do mais, uma tempestade se aproxima de nós”, disse o homem de blazer, enquanto segurava a mulher. Os três partiram, mas o único que ousou a olhar para trás foi aquele de óculos escuros. Olhou na esperança de rever Charlotte, porém, só encontrou a lápide vazia.
Na caminhada em direção a saída, eles seguiam o exemplo da multidão que já havia feito esse caminho anteriormente permanecendo em silêncio. Os três, passo a passo, caminhando de luto sobre o jardim verde, sem dizer uma palavra, mas com um pensamento em comum: Charlotte.
Ao saírem do cemitério se depararam com a praça, que fica em frente, barulhenta e cheia de gente. Parecia que os três tinham atravessado o portão da vida, voltado à realidade. Os três se entreolharam e foi o homem de óculos escuro quem teve a idéia: “Vamos beber alguma coisa naquele restaurante do outro lado da praça”. Os outros dois, sem dizer nada, apenas balançaram a cabeça concordando.
Recusaram as mesinhas que ficavam no exterior do restaurante, onde jovens bebiam cerveja e os casais namoravam, para acharem um canto escuro em seu interior. Um lugar escuro, a meia luz, no ocaso do sábado, era tudo o que eles precisavam para continuar suas tristezas.
Os três sentaram em silêncio e ali permaneceram. A mulher deixando escorrer algumas lágrimas sobre sua face, mas sem soluçar. O homem de blazer de braços cruzados sobre a mesa. E, o outro, ainda de óculos escuros.
O silêncio só foi quebrado quando o garçom chegou para lhes oferecer o menu. Eles sabiam o que deveriam pedir. Sem pestanejar o homem de óculos escuros, disse: “Nos traga uma garrafa do seu melhor vinho”. Olhando para os outros dois, no lado oposto da mesa, falou: “Tenho certeza que Charlotte gostaria que bebêssemos vinho, sua bebida favorita e, além do mais, é uma forma de lembrarmos-nos de todos os encontros que tivemos em sua casa, regados por vinho e poesia.
O vinho chegou. Os três brindaram “à Charlotte” e degustaram o rubro líquido de Dionísio. O silêncio permanecia soberano entre goles e respirações pesadas.
Após meia hora de silêncio foi a mulher quem decidiu exteriorizar sua angústia: “Sabe o que eu não entendo, por que vocês nunca ficaram juntos? Charlotte lhe amava”, disse para o homem de blazer. “Lembro-me do dia em que estávamos eu e ela em sua casa, tomando vinho e escutando Ella Fitzgerald. Charlotte amava Ella. Era um sábado à noite, íamos sair, porém, ela se sentiu mal por causa da sua doença e decidiu cancelar nosso passeio. Eu estava em casa, pronta para sair quando ela me ligou cancelando. Fiquei triste e preocupada, pensei em ir lá, porém, ela falou que queria dormir, descansar. Já passava da meia-noite, eu estava sem sono, lendo um livro, quando ela me ligou chorando me pedindo para ir a sua casa. Vocês sabem o que eu faria por aquela mulher. Peguei o carro e fui”.
A mulher parou para tomar mais um gole do vinho. O homem de blazer tentou falar algo, porém, a mulher não deixou, levantou a mão indicando que ela ainda não havia terminado. Continuou: “Ao chegar lá a vi chorando, com uma garrafa de vinho aberta e com uma foto sua nas mãos dela. Sentei-me ao seu lado e perguntei o que estava acontecendo. Ela me disse que o amava, sendo que cada vez que olhava para sua foto nas mãos dela, chorava desesperadamente. Eu ainda não a entendia muito bem, quando ela me explicou. Havia cancelado o nosso encontro para sair com você. Fiquei um pouco chateada, mas o estado em que ela se encontrava me deixou preocupada, decidi não esbravejar. Ela me disse que vocês tinham ido à inauguração de um restaurante de um amigo seu e lá, ela havia se declarado para você, declarado todo o amor que sentia. Você a amava, por que recusou seu amor? Por quê? Ela ficou acabada. Chorava copiosamente quando me ligou. Eu realmente não entendo? Eu fiquei com ela a noite toda, ouvindo suas mágoas, bebendo vinho e escutando Ella Fitzgerald. Você a amava, por que recusou seu amor?” A dúvida da mulher virou desespero, ela repetia “por quê?”, “por quê?”, diversas vezes e chorava desconsolada. Os dois homens só observavam.
O homem de blazer estava emocionado, nervoso, angustiado, uma mistura de tudo. Via o desespero daquela mulher e sabia que era amor, sabia o quanto ela amava Charlotte. Ele, pausadamente, disse: “Eu acho que você está enganada”. A mulher se enfureceu e começou a socar-lhe o peito desesperada. O homem a segurou e lhe abraçou forte. Ela chorava desesperada e, se sentindo amparada pelo abraço do amigo, se entregou as lágrimas.
Ele, então, sem desfazer o abraço, continuou: “Você está enganada. Bem... Eu não sei que motivos, Charlotte teria para mentir, mas a história que aconteceu não foi bem essa. Realmente nos encontramos no restaurante de meu amigo, porém, fui eu quem me declarei a ela. Você sabia que eu a amava, se a história que você está contando é verdade, porque eu teria recusado o amor da mulher que mais amei na minha vida. Charlotte sabia disso, porém, nunca tive alguma ação por parte dela, que ultrapassasse a linha da amizade. Nunca fui correspondido neste amor. Quando, em um jantar romântico, eu disse que lhe amava e que queria ficar com ela, mesmo sabendo de sua condição, sua resposta foi que amava outra pessoa. Apesar de amá-la, eu nunca acreditei realmente que Charlotte pudesse amar alguém. Charlotte era uma mulher sensacional, uma mulher que não poderia ser de uma pessoa só. E, quando lhe perguntei a quem amava, foi o seu nome que ela disse”.
A mulher, ao ouvir isso, empurrou o homem para soltar-se daquele abraço. Ela tremia. “Por que você está mentindo? Por quê? Por que você quer me magoar desse jeito?” dizia ela. O homem, reconhecendo o estado em que se encontrava sua amiga, resolveu continuar a história: “Você sabe que eu não teria motivos para mentir, esta é a mais pura verdade. Charlotte me disse que te amava e que, finalmente, havia resolvido assumir este amor que tentou esconder por anos. Ela me disse que, apesar de amar você e saber que este amor era recíproco, não poderia aparecer na sociedade tendo um relacionamento homossexual, isso não seria bom para seus negócios. Porém, com a proximidade do fim de sua vida, havia resolvido viver este amor. Foi isso que aconteceu. Agora, por que ela não te disse a verdade, eu não sei”.
“Ela estava com sua foto na mão, por quê?
“Eu já disse que não sei por que ela não lhe contou a verdade”.
“Ela mentiu para um de nós dois. Por quê?”
“Não sei, mas foi o seu nome o qual ela disse no restaurante”.
“E foi com sua foto nas mãos que ela chorava desesperada”.
O homem de óculos escuro tinha uma outra versão da história. Charlotte havia lhe ligado e, pela descrição dos dois, no mesmo dia, provavelmente, entre o restaurante e a chegada da mulher. Ela havia pedido que fosse a sua casa e que levasse um vinho. Era por volta das dez da noite quando ele chegou à casa de Charlotte. Assim que ele entrou em sua sala, aquela mulher começou a tentar beijá-lo. O homem não sabia o que fazer e logo a empurrou. As lembranças daquele dia eram nítidas em sua cabeça. “O que você está fazendo?” perguntou para Charlotte. “Eu te amo. Eu sei que é tarde para dizer isso, tarde porque eu nunca deveria ter me separado de você e tarde porque estou morrendo, mas é a mais pura verdade. Eu te amo”. O homem ficou atônito, não acreditava no que estava ouvindo. “Charlotte, o que você está dizendo. Achei que tínhamos superado isso há anos. E você sabe que amo minha família, minha mulher e meus filhos. Você sabe. Por que fez isso?” Charlotte pegou o vinho que estava nas mãos daquele homem e disse: “Vamos abrir esse vinho, relaxar e passar a noite juntos. Eu te amo, eu estou morrendo, já é hora de deixar de me enganar e assumir o meu amor. O que tivemos no passado foi tão intenso, tão bom, nunca esqueci aqueles anos”. “Já faz dez anos Charlotte”, disse o homem. “Éramos adolescentes. Muitas coisas mudaram. Agora, eu sou um homem casado, o nosso tempo já passou. Você não é mais do que uma grande amiga”. Charlotte, enlouquecida, voltou a tentar beijá-lo. Ele segurou seus braços, mas ela mesmo assim continuava tentando lhe beijar. Ele a empurrou no sofá e disse: “Charlotte, que merda, o que está havendo com você? Já disse, sou um homem casado, porra! Você está louca? Que merda. Adeus!” e saiu sem olhar para trás.
De volta ao presente e vendo aqueles dois discutirem sobre quem estava com a razão, quem era o verdadeiro amor de Charlotte, ele pensou em toda aquela situação. Ele se questionava o porquê daquela atitude de Charlotte. Havia passado anos e ela nunca tinha dado o menor sinal de que desejasse voltar. Ele agora estava casado e muito feliz. Não sabia se acreditava realmente em Charlotte. Como disse o homem de blazer, ele também desconfiava que Charlotte pudesse amar alguém de verdade. Todo aquele mistério lhe perturbava a alma. Por que havia mentido para ele? Por que havia mentido para os outros pobres coitados que tanto a amavam? O fato era que ele foi o escolhido, o único a ouvir “eu te amo” da própria boca de Charlotte. Ela era uma mulher muito complexa, todos a admiravam, todos a desejavam. Será que ela realmente o amava? Quem sabe? Talvez quisesse apenas descobrir, antes de morrer, como era a sensação de se declarar para alguém e não ser correspondida. E ela sabia que aquele homem amava sua família, amava sua esposa e que sua resposta para todas as tentativas de beijá-lo seria “não”, que todos os “eu te amo” cairiam em ouvidos surdos.
Ela havia lhe plantado uma dúvida que lhe atormentaria pelo resto da vida. Vendo aqueles dois continuarem aquela discussão que não iria levar a nada, ele entendeu e, finalmente, rompeu o silêncio: “Vocês não vêm? Não entendem? Charlotte sempre foi uma mulher misteriosa, sempre esteve cercada de enigmas. Esta mentira, porque se as duas versões são verdadeiras, foi Charlotte quem mentiu, é apenas mais um de seus truques, de seus mistérios que nos atormentarão, enquanto ela descansa em paz. Esta é apenas mais uma maneira dela se manter imortal em nossas vidas. Assim, nunca saberemos quem é seu verdadeiro amor. Nunca saberemos nem mesmo se ela já amou alguém de verdade. Assim, vocês levam a dúvida de serem amados e, junto, o sentimento do ‘se’, pois Charlotte sabia, perfeitamente, assim como nós sabemos que o ‘poderia ter sido’ leva mais da imortalidade do que aquilo foi. Charlotte sempre foi dada a mistérios, este é apenas mais um deles. Nunca podemos desconfiar da engenhosidade daqueles que conhecem a verdade que mais nos assusta: que a morte se aproxima. Nunca podemos desconfiar da engenhosidade daqueles que têm pouco tempo para se tornarem imortais”.

Um comentário:

pontos... disse...

louco pensar onde se encontra o amor: naquilo que acontece, ou no que pode acontecer? como realidade, fato ou como meta, possibilidade? talvez Charlotte tenha tentado viver seu amor na possibilidade de a amarem, e não no dito ato. mas, de qualquer forma, seu amor foi vivido pelos três em sua possibilidade e numa hipótese.