quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

CONTO XXI - O ÔNIBUS


A chuva caía insistente na estrada fazendo com que o motorista tivesse que guiar com o máximo de cuidado. Era noite. O caminho sem iluminação. O farol do ônibus iluminava as gotas de chuva, projetando a frente a única luz que se via naquela estrada. De um lado, mato, de outro, mais mato. Carros, em ambos os lados da rodovia, eram raros. O ônibus mantinha seu guiar solitário, desbravando o asfalto esburacado. O motorista era a única alma acordada. Guiava o veículo com habilidade, na chuva, no escuro e nos buracos, enquanto um pouco mais de dez passageiros dormiam despreocupados.
As pessoas sentavam-se separadas. Excetuando o casal de namorados sentados na frente, dormindo abraçados, todos os viajantes estavam espalhados pelos cantos do ônibus. Alguns aproveitavam a poltrona livre a seu lado parra esticar as pernas e dormir mais confortavelmente, afinal a viagem era longa. Outros aproveitaram o local vago para descansar sua bagagem.
O banco confortável, o ar condicionado ligado em uma temperatura amena, a música individualizada que tocava em alguns mp3s, tudo isso fazia as pessoas se esquecerem da chuva, do escuro e dos buracos. Ninguém se preocupava com o caminho a seguir, só desejavam ser levadas, conduzidas sem nenhuma participação no processo para a tão aguardada cidade-destino.
O motorista saiu da estrada. A confortável linha reta havia se transformada em uma curva não muito acentuada. Alguns passageiros, percebendo a mudança de direção, acordaram se preparando para a parada. Chegaram a uma lanchonete a beira da estrada aberta 24 horas. Aqueles que ainda não haviam acordado com a mudança de direção, acordaram com as luzes imponentes da lanchonete que puderam ser avistadas quando o ônibus foi estacionado, ou quando o motorista anunciou: “Pararemos durante quinze minutos”.
O ônibus, aos poucos, ia sendo esvaziado. As pessoas saíam para ir ao banheiro, comer algo ou apenas para esticar as pernas. A viagem seria longa. O casal de namorados continuou abraçado nos bancos da frente. Apesar de terem acordado, resolveram ficar dentro do veículo depois de trocarem meia dúzia de palavras. Se reacomodaram e voltaram a se abraçar. Antes da parada terminar já estavam dormindo, ela deitada sobre peito dele, como se necessitasse ser protegida e ele, que apesar de dormir, parecia seguro em sua função de protetor.
No fundo do ônibus, outra pessoa resolveu continuar dormindo. André acordou, percebeu que tinham chegado a uma parada, viu quando as pessoas saíram, mas resolveu permanecer no ônibus. Não quis abrir mão dos quinze minutos de sono que teria enquanto as pessoas aproveitavam a lanchonete. Virou-se para o lado e, olhando o movimento de fora, pela fresta da janela não coberta pela cortina do veículo, adormeceu.
Após os quinze minutos, o motorista verificou se todos os passageiros estavam presentes e partiu. De volta a estrada, novamente ele guiava o ônibus através da chuva, da noite e dos buracos. Logo após a partida, ainda era possível ver algumas pessoas acordadas, algumas ainda saboreando as guloseimas adquiridas na lanchonete, porém, sozinhas em suas poltronas, em menos de uma hora já estavam dormindo. Apenas um senhor, de aproximadamente uns 60 anos, personagem importante para nossa trama, permaneceu acordado.
O ônibus seguia sua viagem tranqüilamente, apesar dos buracos na estrada. Foi num destes buracos, o qual o motorista não conseguiu evitar, que André, e quase metade do ônibus, acordou. Ele acordou assustado, mas logo percebeu que o tranco recebido deveria se tratar das conhecidas imperfeições daquela estrada. Antes de fechar os olhos e voltar a dormir, resolveu mudar de posição e virou-se para dentro do ônibus. O susto do buraco não havia sido suficiente. Ao virar-se, percebeu uma presença ao seu lado, o que lhe gelou os mais recônditos cantos de sua alma.
Havia uma pessoa sentada ao seu lado, não que isso fosse estranho em uma viagem de ônibus, mas com certeza o era quando havia dezenas de lugares vazios. André, logo se preocupou. É impressionante como o sono nos parece supérfluo quando algo nos ameaça, não que André estivesse sendo ameaçado de forma concreta, mas a dúvida, aquela dúvida de não saber ao certo quais são as verdadeiras intenções de um estranho que se aproxima, é que é verdadeiramente ameaçadora, pois, fica no limiar entre uma ação injusta e o arrependimento de não ter agido na primeira oportunidade. “Quais são as intenções desse cara?”, se perguntava André, já não conseguindo mais pregar os olhos.
Esse “cara”, que tanto preocupava André, era o senhor que permanecia acordado, o qual já falamos acima. Sua aparência dava razão para desconfiança de André. Ele vestia um par de sandálias velhas, uma calça jeans desgastadas e uma camiseta xadrez de um marrom e preto já desbotados. O jeito que se vestia era ameaçador pelo simples fato de transparecer que nada tinha a perder, que nada possuía que pudesse ser roubado, nem mesmo um relógio de pulso.
André permanecia angustiado com aquela presença ao seu lado. Seus pensamentos eram incontroláveis: “O que ele quer? Por que não se sentou em outra poltrona já que há muitos lugares vagos? Se se sentasse em outro lugar poderia esticar suas pernas, dormir de maneira mais confortável. Agora, ficamos eu e ele desconfortáveis, dormindo em apenas uma poltrona por causa deste idiota, que raiva. É incompreensível a atitude deste cara, com certeza ele está tramando algo. Será que está querendo me roubar? Sim, definitivamente, ele vai me roubar”. André parecia prever seu próprio destino.
Impaciente bufou. O velho, percebendo que o rapaz ao seu lado havia acordado, se apresentou.
_ “Ola! Não sabia que você estava acordado. Prazer meu nome é Estevão.”
O gesto simpático do senhor, que talvez servisse para acalmar o rapaz, só piorou a situação. “Merda, antes fingisse que estava dormindo. Esse velho devia estar esperando eu acordar para me assaltar, merda.” O senhor ainda permanecia com a mão no ar esperando uma resposta de André.
_ “Daniel, me chamo Daniel”. André deu a mão ao velho e o cumprimentou. Ele havia mentido o seu nome por medo. Já somos convidados a interpretar personagens nos espaços públicos, que mal teria dar um novo nome a essa máscara. Já que, para ele, era tão certo que aquele velho mal vestido se tratava de um assaltante ou algum malfeitor, proteger seu nome verdadeiro era uma precaução compreensível. A falta de passado é uma das vantagens no contato entre estranhos, vantagem que nos permite mudarmos de nome, de profissão e até mesmo de atitudes. Essa possibilidade de mentirmos tudo a nosso respeito é, também, decorrência da falta de futuro destas relações.
Apesar dos braços fortes do senhor sentado ao seu lado, talvez fruto de anos de trabalho duro e sem descanso, o que preocupava André era invisível aos olhos. O lhe causava preocupação era a desconhecida intenção daquele homem, suas estratégias para o crime e, acima de tudo, as armas que poderia esconder. Em um confronto de mão com mão, talvez levasse vantagem, porém, não saberia a ameaça que aquele estranho poderia representar com uma faca ou com um revolver em um canto escuro do fundo do ônibus. Tinha medo.
_ “Você vai descer na rodoviária ou antes?” Perguntou o senhor.
Que pergunta era aquela, pensou André. Uma pergunta um tanto quanto suspeita. Por que ele havia perguntado o local que o rapaz desceria? André logo pensou que era para melhor tramar o assalto. Ele desceria antes, mas devido ao medo que sentia decidiu mentir novamente.
_ “Vou descer só na rodoviária”. Essa afirmação não lhe faria mal, afinal, um local mais movimentado seria menos perigoso.
_ “Eu também”, respondeu o estranho de nome Estevão.
_ “Que bom”. Disse André querendo terminar aquele colóquio.
André, mesmo desconfiando daquele homem, resolveu se virar em direção a janela e fingiu dormir. Talvez, a única coisa mais difícil do que o contato com um estranho que lhe causa medo, é lhe dar as costas. A atitude de André, temos de reconhecer, foi extremamente corajosa. Apesar disso, qual seria a verdadeira intenção de André com esse gesto? Será que o medo da conversa era maior do que o medo de uma faca apontando inesperadamente em suas costas? A turbulência de seus pensamentos nos dá a impressão de que essa atitude seria uma fuga, um sair de cena para reorganizar seus pavores, suas ações e seu personagem.
“Desgraçado. O que é que esse cara quer? Por que não fala logo? Será que vai esperar eu chegar na rodoviária para me assaltar?” Perguntas e mais perguntas surgiam na tempestuosa mente do rapaz. Ele pensou em se levantar e trocar de lugar, já que havia diversas poltronas vazias, porém, isso não seria de bom tom para a “civilidade”, aquela regra que aprendemos e que tem a função de deixar esses encontros entre estranhos tão leves quanto uma pluma: sem futuro, sem passado e sem profundidade.
Meia hora tinha se passado desde que havia mudado de posição, mas ele não conseguia dormir. Os minutos que passou, ali, imóvel, olhando para a escuridão que era desbravada pelo veículo, começaram a pesar sobre seu corpo. “Se eu ao menos tivesse o banco ao meu lado vago, poderia dormir com mais conforto”, pensou ele, enquanto decidia se virava para o outro lado ou não. Tinha a esperança do velho, a estas horas, já estar dormindo.
Virou-se. O senhor ao seu lado continuava acordado. Ele sentia cada vez mais raiva daquele homem chamado Estevão, isso se esse fosse realmente o seu nome verdadeiro. Afinal, se André havia mentido, o que lhe garantiria que o velho estava lhe falando a verdade? Se por um lado, a falta de passado desses encontros nos dão a vantagem de, na hora, inventar o nosso personagem, por outro, se mostra desvantajosa, pois nunca sabemos ao certo com quem estamos contracenando.
A falta de ameaça de uma idéia ameaçadora é um dos grandes problemas para a belicosidade dos homens. É incontável o número de guerras e combates que já foram travados por causa de uma simples suposição. André não queria cometer este erro, entretanto, também não desejava esperar pacientemente o golpe do inimigo, afinal, a mesma idéia ameaçadora que atiça a guerra, também causa paralisia. Foi para fugir deste estado de paralisia que André resolveu falar:
_ “Estevão... é esse seu nome, não é?”
_ “Sim, Estevão.”, respondeu o senhor.
_ “Então, Estevão, eu não me lembro de você quando saímos. Você, pelo que parece não estava no ônibus quando saímos, estava?” perguntou André.
_ “Realmente eu não estava. Eu entrei no ônibus durante a parada”.
André se surpreendeu com a resposta daquele senhor. Sem analisá-la bem e sem pensar direito nas conseqüências de sua próxima pergunta, falou:
_ “E o motorista sabe que você está viajando clandestinamente?”
O velho deu uma risada tão verdadeira que assustou André. Sua risada poderia ter acordado, facilmente, todas as pessoas do veículo, se elas não estivessem dormindo um sono profundo.
_ “Ah, Daniel. Você é muito engraçado. Eu comprei a passagem no guichê da última parada. Para mim, é mais cômodo comprar aqui. Além de ser perto da minha casa, é mais barato, pois, eu não preciso pagar a distância que já foi percorrida”.
_ “Você mora perto daquela parada?” perguntou André ao senhor.
_ “Sim, moro eu, minha filha e minha neta. Estou fazendo esta viagem para visitar um parente que está doente”.
André havia entrado em um terreno perigoso: a profundidade. Essas pequenas gotas de informação fornecidas gratuitamente por Estevão poderiam destruir suas defesas contra aquele estranho. Alguém que morava com a filha e com a neta, além de viajar esse longo percurso para cuidar de um parente doente, não poderia ser uma pessoa ruim, não poderia ser um assaltante. O fato é que André não queria que Estevão entrasse em sua intimidade e, antes que ele fizesse a fatídica pergunta, “e você, onde mora?”, aproveitando a momentânea cumplicidade, resolveu tirar a limpo aquela situação que tanto lhe incomodava.
_ “Estevão! Eu posso lhe perguntar algo?”
_ “Sim, claro. Fique a vontade”.
_ “O número da sua poltrona é realmente essa do meu lado? Porque quando o ônibus está vazio não precisamos seguir essa numeração, sabia?” André perguntou achando que talvez aquela situação fosse apenas uma falta de sorte na venda das passagens e um viajante extremamente preocupado com as normas da companhia rodoviária.
_ “Olha Daniel, para falar a verdade, eles não me deram uma numeração. Me entregaram a passagem em branco e falaram para eu me sentar aonde eu quisesse.
Essa não era a resposta que André queria ouvir, a preocupação continuava, entretanto ele decidiu levar esta história até o fim.
_ “É exatamente isso que eu não entendo. Você tinha a liberdade de escolher qualquer lugar para se sentar e, mesmo assim, você quis se sentar ao meu lado. Por quê?
_ “Bem, liberdade é uma palavra complicada e polissêmica. Eu não acho que o simples fato de não ter impedimentos para escolher o lugar para me sentar, seja um certificado para a minha liberdade. Eu realmente prefiro usá-la ocupando os espaços vazios que eu definir. Afinal, eu escolhi você, porém, você não me escolheu. Que liberdade você teve de escolher a pessoa que se sentou ao seu lado. Nenhuma. Eu preferi compartilhar esse poltrona ao seu lado do que me sentar sozinho e estar sujeito a escolha de alguém”.
O medo, que antes era do marginal, se transfigurou no medo do mala sem alça. André só conseguia pensar: “Puts, que cara chato”.
_ “Tá, tudo bem, respeito sua idéia de liberdade, mas não seria mais confortável para nós dois, se você se sentasse em outro lugar?” Perguntou o rapaz.
_ “Sim, eu não tenho a menor dúvida. Porém, é por causa do conforto que cada uma destas pessoas escolheu a distância. O conforto nos separou. Foi o conforto de cada poltrona que nos fez esquecer os buracos “desconfortáveis” que aparecem durante o caminho. Essas pessoas não mexeriam uma palha para reclamar de tudo o que é exterior a suas poltronas, porém, coitada da empresa rodoviária se deixar uma janela sem cortina, uma acento sujo, ou qualquer outro fator que atrapalhe o bem-estar destas pessoas. Elas só se preocupam em exigir seus direitos como consumidoras e não como cidadãs. Toda defesa dos problemas coletivos é deixada de lado, pois...”.
_ “Beleza, Estevão, eu sou uma dessas pessoas, eu quero conforto. Não vou ficar aqui, escutando esse papo chato de liberdade, direitos, etc. Eu vou me levantar e vou me sentar em outro lugar e não quero saber de você me “escolher” de novo, ok? Vou usar a minha liberdade, ouviu bem, a minha liberdade, para sentar aonde eu quiser e ninguém vai me impedir”, disse André, demonstrando certa raiva.
Estevão, um pouco preocupado com a atitude do rapaz, falou:
_ “Calma, Daniel. Se você quiser eu posso ir para outro lugar”.
_ “Olha, eu gostaria muito, Estevão”.
O velho respirou e disse olhando nos olhos do rapaz:
_ “Então me convença”.
Ao ouvir esta resposta André pareceu desacreditar no que acabava de escutar. Ele se levantou, pegou sua mochila e saiu. Decidiu sentar-se longe daquele “velho maldito”, como ele mesmo proclamou. Sentou-se lá na frente, próximo ao casal que dormia abraçado. Para eles o conforto não parecia tão importante, mas André tinha certeza de que para si era o essencial. Agora se sentia livre e feliz.
O ônibus continuou seu caminho tortuoso pela noite, pela chuva e pelos buracos. A viagem ainda seria longa. André havia, como o resto daquelas pessoas, se espalhado nos dois bancos que ocupava deleitosamente. Estevão continuava incorruptível; reto, grave e sem sono, em um único lugar. Dentro do veículo, os passageiros continuavam em suas poltronas confortáveis, aproveitando a agradável temperatura do ar condicionado e individualizados em seus mp3s, do lado de fora, a chuva, a noite e os buracos, pareciam entidades místicas que fugiam ao controle da daquelas pessoas. Nada podiam fazer. Nada queriam fazer. Só desejavam ser conduzidos.

2 comentários:

pontos... disse...

Muito bom!!! Achei a comparação muito bem-vinda! E dá prá se perder um monte nessa viagem, né!? Liberdade, limites, civismo, sociedade. Gosto dessas comparações que abarcam diversas discussões!

Anônimo disse...

é realmente incrível quando cada vez mais nos focamos apenas na bolha que criamos a nosso redor...

uma vez eu reparei isso quando eu mesma estava no onibus, ouvindo meu mp3 e de óculos escuros.
os dois acessórios parecem uma proteção. o som lhe impede de ouvir qlqr coisa fora da sua bolha e o óculos escuros permite que se observe tudo de uma maneira disfarçada...

as vzs a gnt se isola tto que até uma pessoa pedindo informação é ignorada. e ha ainda aquelas pessoas que atras da lente de um óculos, fingem dormir para nao levantar para o idoso que acaba de chegar.

nao sei se é medo, nojo, conforto....mas essas atitudes são cada vez mais comuns e passam a dominar nosso cotidiano. experimentar abrir um sorriso e ser gentil com alguém, por ex, em um transporte publico, é tão bonito, é tão extraordinário, que deixa de ser comum...é raro.

talvez colocar os óculos escuros e ouvir musica seja mais comodo do que encarar o que nos cerca. nos voltarmos cada vez mais pra dentro de nos msm ....com o perigo de nos perdermos entre nossas entranhas mais nojentas do que a realidade ao redor.

ana