quinta-feira, 2 de outubro de 2008

CONTO XII - DUAS NOITES


Soberana. A partir do momento que ela estende seus braços sobre a cidade, se torna soberana. Só ela guia as regras. A noite desamanhece a manhã e se impõe, imponente, impostada, impostora sobre os homens. Todos eles com sua lida comum, sua vida regrada, sua ida marcada. Homens prepotentes, previsíveis e predicados, homens apagados pela ausência de sol. A noite é soberana e, a partir daí, não há mais explicações, não há subjetividade, não há dúvidas hiperbólicas, só há o anoitecer ontológico dos tempos onde os homens não se preocupavam com as coisas, apenas eram e esperavam acontecer.
A noite trava as máquinas da sociedade, pelo menos a maioria delas, e leva para casa os operários em fila que, apertados em um público transporte de indivíduos, estão muito cansados para pensar na vida. Eles só querem o lar, a comida quentinha da Dona Maria, o beijo cotidiano de quem os espera no portão. As horas cansativas e alienadas na prensa prensam seus músculos e os leva a desejar o sono, o sonho e o sábado. A luta no sol é cansativa e muitos preferem a noite do descanso, do descaso e da televisão.
A noite emudece, silencia aqueles que querem subverter a ordem. O descanso é sagrado e o sono é necessário. O problema da civilização é justamente os questionamentos dos homens sobre si mesmos e sobre a vida, além de toda falta de humildade presente na arrogância da busca pela Verdade. À noite reina a igualdade, todos dormem, seja o patrão, seja o peão. O sono dos homens é necessário.
Ao anoitecer o eu, o nós, o eles, se recolhem em suas casas respeitosamente. A noite é o melhor horário, é sublime, é o melhor dos tempos para muitos dos homens, pois, a tradição é relembrada num jantar de família, onde pais, filhos e netos se encontram e se congregam, seja numa casa de campo, seja numa propriedade da Haddock Lobo. A noite dá tranqüilidade a todos aqueles que a respeitam e lhes entregam a missão de guiar a humanidade. Para estes a escuridão não dá medo, é conforto, pois haverá sempre a luz de um abajur a velar-lhes o sono.
A família dorme, mas a filha mais nova permanece acordada. O anoitecer havia lhe deixado pensativa. Olhava para lua que era a luz de esperança, para todos aqueles que tinham medo das trevas, permitida, talvez por descuido, pela censura da escuridão noturna e pensava no amor do homem que lhe fazia feliz, que havia saído e ainda não havia ligado. O anoitecer o tinha tirado forçosamente de seus braços, todos tinham hora para chegar e para sair.
Em outra casa qualquer, outra mulher espera pelo mesmo rapaz e, assim como a primeira, lhe tem amor igual, porém, não do mesmo tipo, este homem é seu filho, está mulher é sua mãe que sentada na escada, espera sua volta. Ela lhe espera ainda com a toalha na mesa, seu prato e seus talheres expostos e o resto da comida para esquentar. Preocupada com os perigos da noite reza pela sua chegada.
A noite que separa os amantes e os filhos de suas mães, torturando o coração dos pobres que não querem confessar o quanto sofrem por esperar o dia, também une os corpos em segredo. Em quarto, em quatro, paredes que escondem as intimidades e o gozo dos seres, lhes deixam satisfeitos e desejando a noite eterna. A escuridão do quarto que esconde os prazeres é a escuridão que lhes aprisiona. Gozo e sono, necessidade.
A noite da lua, a noite das estrelas, a noite dos ventos que balançam as janelas e causam arrepios a quem não deveria estar acordado, também esvazia as praças e o público espaço da cidade. Quando é noite, os homens não conversam, deixam os assuntos por resolver, guardam suas opiniões para si ou, apenas, comentam com seus familiares. A noite traz a paz do consenso criado por ela, leva pra longe a belicosidade dos homens discutindo e tentando impor suas idéias. Aqui, quem impõe é ela, ela nivela todos ao silêncio.
Talvez as crianças não entendam o anoitecer, talvez o sol que permite a brincadeira lhes seja mais interessante, mais agradável, porém, um dia entenderão que a noite se mostra soberana para regular o mundo utópico de alguns que acham que detêm as verdades para todas as perguntas e as chaves para o progresso. Por mais que chorem e lembrem-se do tempo dos jogos na rua, é preciso adormecer.
A noite pára o crescimento. As flores sem luz não desabrocham, as árvores sem luz não fazem sua fotossíntese. A noite faz os homens negarem o presente, eles apenas deitam e sonham, sonham com uma vida melhor, sonham com a volta do passado confortável. A vida se torna sonho ao anoitecer.
Há também aqueles que, lutando contra as horas de sono impostas pela noite, sonham acordados. São os poetas, os malandros, os bandidos, os animais. Os gatos e cachorros abandonados e sarnentos saem pelas ruas, derrubando latas, rasgando sacos de lixo para buscar seus alimentos, um resto de maçã, um bife quase podre, qualquer coisa que faça se esconder a fome. Os poetas olham a lua com a esperança de um dia, o dia desanoitecer a escuridão. Andam escondidos, fazendo rimas, disfarçando sinas e cantando o amanhecer. O malandro anda procurando sua mulata, sua gata, o seu bem-querer, para fazer da noite um espaço, onde possa amar sem paredes aquela que ele viu pela primeira vez. Os bandidos, ou aqueles que são considerados bandidos, desafiam a escuridão, com uma arma na mão, procurando confusão e tentando disfarçar. Para os animais a carrocinha, para os homens o camburão. Não é por mal, mas a noite já proclamou: “o sono é necessário, os homens precisam dormir”; assim, qualquer pessoa que atrapalhe o descanso dos seres de bem, deverá ser punida.
A noite mata o homem, para o próprio bem do homem. O sono é o melhor para todos. A noite quer representar segurança, quer velar-lhes as horas noturnas, o descanso, para não precisarem se preocupar, mesmo assim continuam lutando contra o seu poder soberano. A noite é. Na noite as coisas são, são como ela pensa que devem ser, e faz isso para o bem de todos, para não precisarem se preocupar, não precisarem se questionar, para que possam dormir tranqüilos e em paz, sem a turbulenta subjetividade humana. Ela parou as máquinas, calou os baderneiros, escondeu os amantes na privacidade, trouxe a ordem, mas a luta continua, o dia quer nascer e o homem quer acordar.
Ela sente que está perdendo o terreno, sente que está perdendo seu império, os despertadores estão preparados, os sonhos estão acabando. Ela deixa, ela permite algumas luzes sobre a cidade, talvez para tentar satisfazer algumas exigências dos excluídos, mas não adianta, eles querem o dia, eles querem o sol a pino, eles querem as flores desabrochando, eles querem a fotossíntese. A noite é personagem que dissimula. Sentindo que iria perder sua soberania, ela, soberana, desanoitece a manhã e retira seu manto negro sobre a cidade.
Os homens acordam indispostos, sem saber o que fazer. Sabem que terão muito trabalho pela frente. Os olhos remelentos demonstram que dormiram demais. Alguns choram pela noite que foi, pela segurança e pela ordem que eles achavam que ela trazia. Agora não há mais noite, apenas metafísica. Agora não há mais sono, são apenas os homens acordados se preparando para a lida dura. A subjetividade está livre, podem dizer o que quiser sem meias-palavras, podem gritar, podem cantar o dia. Agora é hora da responsabilidade, eles se soltaram das confortáveis algemas do sono, para construir com a liberdade fria e dura um mundo melhor. Alguns se levantam da cama e vão tomar banho frio, outros viram para o lado e voltam a dormir. Estes sempre estarão a dormir.

2 comentários:

Anônimo disse...

"A noite é soberana e, a partir daí, não há mais explicações, não há subjetividade, não há dúvidas hiperbólicas, só há o anoitecer ontológico dos tempos onde os homens não se preocupavam com as coisas, apenas eram e esperavam acontecer."

Adorei essa frase... "apenas eram e esperavam acontecer.". O anoitecer é isso mesmo, apenas é... é por já ser algo definido, determinado, visto à olho nu. O homem quer sempre ser, sempre busca a ser algo, e quando pensa ser esse algo, ainda procura mais outras maneiras de ser... a tal da prepotência. O anoitecer é algo que não nos escapa... a nossa fragilidade é também algo que não nos escapa... enquanto buscamos ser algo, a cada dia uma parte nossa morre... não somos esse tudo-perfeição e nem somos esse nada tão vazio.
Dei uma filosofada, um pensamento um tanto quanto existencial, ultimamente tenho me interessado muito por Heidegger! Beijos.

pontos... disse...

Tudo isso é o pensamento sobre o que a noite permite, Jota? Ou seja, o que cada um se permite na noite. Alguns, quando não há LUZ, fecham-se e param de viver. Enquanto outros ignoram a ESCURIDÃO e são, transformam a si mesmos como pontos de luz..

"A noite mata o homem, para o próprio bem do homem." será que o homem tenta lutar contra a própria vida mas a noite vem para lhe tirar o dia? para mostrar que toda luta é uma luta perdida?

sei lá, viagens..