sábado, 25 de outubro de 2008

CONTO XV - O SOLDADINHO


A Kombi mal virou a esquina de sua rua e ele já começou a sentir a ansiedade lhe invadindo a alma. A pequena alma daqueles que têm seis anos de idade. O automóvel buzinou e apareceu no quintal sua mãe, sorridente como sempre ao esperar o filho chegar da escola.
O menino desceu do carro, deu um beijo rápido na mulher que lhe esperava no portão, lhe entregou a mochila e correu para brincar. Em sua pressa, passou pela cozinha e sentiu o cheiro da comida que estava sendo preparada, era hora do almoço. Deu um oi apressado para sua bisavó, que lhe esperava na sala. A velhinha foi repreensiva: “Vem cá menino, dá um beijo na bisa. Que pressa toda é essa. Vem cá.” O menino foi meio a contragosto, mas foi.
Subiu as escadas do sobrado, saltando de dois em dois degraus para chegar mais rápido ao andar de cima. Ao chegar, virou à esquerda, passou por um corredor: uma porta, duas portas, a terceira era a de seu quarto, a porta estava fechada. Parou com todo o respeito em frente daquilo que lhe separava de seus brinquedos. Antes de entrar e enfrentar a felicidade ingênua do brincar com seus bonecos, todos eles soldados de guerra, equipados com metralhadoras, bazucas e um monte de outras armas que ele nem sabia o nome, fechou os olhos e lembrou-se da noite anterior. Brincou até a hora de dormir, criando guerras, bolando estratégias para derrotar os inimigos do seu esquadrão de heróis, sendo que muitos desses rivais nem mesmo eram “humanos”. Ele havia misturado um monte de bonequinhos diferentes para lutar contra os “super-soldados”, o brinquedo novo e mais legal que já tivera. A ansiedade em seus olhos era latente.
Escorregou seus dedos na maçaneta da porta e a abriu. Não viu nada, parecia que um furacão havia varrido os heróis e os vilões do campo de batalha, nada. Sua cama estava lá, seu armário estava lá, a máquina de costura de sua bisavó, que tinha sido usada na noite anterior como montanha em sua guerra particular, estava lá, mas nenhum dos atores daquele combate se apresentou. Ele entrou meio decepcionado no quarto. Ele sabia o que aquela ausência queria dizer, caminhou, tentando manter a esperança, até sua caixa de brinquedos. Revirou os carrinhos, as espadas, os trenzinhos, e outros objetos que ali estavam, mas não achou o que estava procurando. Ele sabia exatamente o que tinha acontecido.
Dirigiu-se até a cama e se deitou desacreditado. Sentiu-se arrependido: “Eu deveria ter guardado meus brinquedos quando minha mãe falou. Agora o Papai Noel levou tudo embora e só devolverá meus brinquedos quando eu for um bom menino de novo”. Ele sabia que, apesar de não ser dezembro, o bom velhinho nunca parava, estava sempre levando os brinquedos daqueles que se recusam a guardá-los. Ele sabia o que tinha acontecido.
Sua mãe apareceu na porta e o chamou para almoçar: “Vamos descer? O almoço está pronto.” Ele, triste, falou: “Já vou”. A mulher já estava saindo quando escutou o menino chamando: “Mãe... Você viu que o Papai Noel levou os meus brinquedos embora?” “Sério, filho? Que pena. Então é por isso que seu quarto está limpo? Achei que você tivesse subido apressado para arrumá-lo antes que o Papai Noel aparecesse. É, mas pelo visto ele já passou por aqui. Que pena, Guilherme, mas você sabe que é isso que sempre acontece quando você não guarda os seus brinquedos”. “Eu sei”, respondeu o menino. “Agora vá ao banheiro, lave suas mãos e desça para almoçar”. “Está bem, já vou”.
A mulher desceu e começou a aprontar a mesa. O menino ficou, ainda meio desiludido, deitado na cama e olhando para os adesivos colados no teto, em forma de estrelas que brilhavam no escuro. Desanimado, extremamente desanimado, ele não tinha vontade de se levantar, não tinha vontade de comer. Só levantou quando sua mãe lhe gritou do andar de baixo: “Vem almoçar agora, menino”. Ele preferiu não contrariar: “Já vou”. Sentou-se na cama, tirou os sapatos, foi até o armário para apanhar seus chinelos, mas eles não estavam lá. Coçou a cabeça, como se perguntasse a si próprio onde estariam aqueles pares. Olhou pelo quarto e não viu nada. Ajoelhou-se próximo a cama e curvou-se para olhar abaixo desta. Os chinelos estavam lá, mas não foi isso o que mais lhe chamou a atenção. Havia outro objeto embaixo de sua cama que lhe deixou atônito: um dos seus soldadinhos, ali, como se houvesse se escondido do próprio Papai Noel.
Ele se esticou todo em baixo da cama para apanhar aquele objeto. Depois, ajoelhado de frente para cama, ficava encarando aquele brinquedo, tentando entender como este havia escapado da magia do bom velhinho.
Sua mãe lhe ensinara que o Papai Noel voava com o seu trenó mágico para perto das janelas dos meninos bagunceiros e, se a criança não tivesse guardado os seus brinquedos, ele, com sua mágica, recolhia todos os bonecos, carrinhos, jogos, tudo que estivesse espalhado. Só devolvia quando o menino merecesse, novamente.
Porém, aquele soldadinho em suas mãos tinha escapado da magia. Como isso era possível? Não fazia sentido. Ele pensava: “Será que a magia do Papai Noel não é tão boa assim?” “Se ele usasse mágica de verdade, todos os bonequinhos”, inclusive aquele que estava em suas mãos, “deveriam ter sido levados”. O que não aconteceu. Ele sabia que havia algo estranho, mas um novo berro de sua mãe o fez lembrar-se do almoço. Calçou os chinelos e desceu as escadas correndo.
Ao chegar à cozinha, sua mãe anunciou: “Não quero nem saber. Hoje eu fiz bife de fígado e você vai ter que comer.” Ele olhou para aquela carne com desdém e falou: “que merda”. A mãe e a velhinha sentadas à mesa se espantaram com o palavreado da criança. A senhora logo tratou de lhe dar uma bronca: “Que isso menino, onde você aprendeu essa palavra. É muito feio isso que você falou, criança não deve falar essas coisas”. O garoto pediu desculpas, porém, de maneira rebelde, pensou: “é uma merda mesmo”.
Ele não conseguiu almoçar direito, só ficava pensando naquele objeto encontrado embaixo da cama. Ele tentou imaginar explicações. Talvez, Papai Noel descesse do trenó para pegar manualmente os brinquedos. Porém, ele logo desistiu da idéia. Seria impensável o velhinho se ajoelhando no chão para recolher os brinquedos, um por um. Além do mais, sua mãe sempre lhe disse que era através da mágica que ele levava toda a bagunça. Só a magia explicaria, pois, ele deveria ter muitas casas para visitar.
Não quis comer muito e sua mãe logo lhe dispensou da mesa. Voltou ao quarto, porém, sem tanta pressa. Parecia que a cada passo que dava naqueles degraus mais ele se afastava de sua inocência e menos ele conseguia explicar toda aquela situação.
Chegou ao quarto e deitou-se novamente. Com aquele brinquedo na mão, ficava imaginando respostas, nenhuma lhe convencia. Cada vez mais, ele chegava mais perto da única resposta que ele não queria obter. Sempre que duvidava da existência do velhinho, tentava se lembrar dos poucos, porém marcantes, natais vividos. A situação estava cada vez mais crítica.
Ele se levantou decidido a descobrir a verdade. Talvez fosse muito jovem ainda, para saber que se libertar de uma mentira nem sempre é garantia de felicidade. Talvez não soubesse que sua ingenuidade estava em jogo. Se deixasse de acreditar na magia, deixaria de acreditar em tudo aquilo que faz a vida melhor e menos sofrida. Mas ele não sabia disso, não sabia o que estava em jogo.
Procurou pelo quarto mais algum soldadinho. Não achou nada. Vasculhou em baixo da escrivaninha, da máquina de costura de sua bisavó, no meio da caixa dos brinquedos e no meio de suas roupas. Nada, absolutamente nada. Abriu às portas do seu guarda-roupa, na primeira porta, nada, na segunda, nada, foi na terceira onde ele achou algo estranho.
A terceira porta que abriu tinha, na parte alta do guarda-roupa, um saco plástico preto, provavelmente um saco de lixo. Ele nunca tinha visto aquilo antes. A curiosidade lhe corroia a pequena alma.
Foi até a escada verificar se alguém estava a caminho, ninguém. Fechou a porta, guardou o soldadinho no bolso e começou a empurrar a máquina de costura para perto do guarda-roupa. Apesar do peso ele conseguiu realizar a incrível façanha.
Com a máquina perto do armário, ele poderia subir nela e alcançar o saco preto. A dúvida lhe paralisava, como se não tivesse certeza de que quisesse saber o que estava naquela sacola. Ele queria olhar o que estava dentro, mas o receio da mudança lhe ameaçava. Talvez soubesse, apesar da pouca idade, que o volume presente naquele saco mudaria sua vida para sempre, talvez soubesse que nem toda liberdade é garantia de felicidade, ou talvez, apenas estivesse com medo do que iria encontrar lá dentro. Nunca se sabe ao certo o que passa na cabeça das crianças.
Ele tomou coragem. Apoiou-se na máquina e subiu. Andou para ponta, bem para perto do armário e, nas pontinhas do pé, alcançou o saco plástico. Ele caiu em seus braços. O barbante que o fechava, separava dois mundos para aquele o menino.
Com aquele objeto na mão, ainda não sabia se queria abri-lo. Tateou o saco e conseguiu sentir as formas guardadas ali dentro, tinha quase certeza que eram os seus soldadinhos. Assim, resolveu abrir aquela sacola. Desamarrou o barbante e ao olhar para dentro daquele plástico preto, pensou: “nossa, achei meus soldadinhos”.
Estavam todos os soldados lá, inclusive os inimigos daqueles heróis verdes. Ele sentiu uma alegria grandiosa e se lembrou da noite passada, onde ficou brincando de guerra com aqueles pequenos homenzinhos. Estava quase descendo para contar para sua mãe o que havia encontrado e para, enfim, brincar com seus soldadinhos, quando, por um minuto, parou. Hesitante, lembrou-se novamente de sua mãe e pensou: “Talvez, ela ainda queira acreditar no Papai Noel”.
Demorou alguns minutos para que o pequeno interrompesse sua inércia. Colocou a mão no bolso, agarrou firme aquele soldadinho, fruto de toda esta questão, abriu o saco e o jogou lá dentro. Depois, fechou e colocou o plástico preto novamente no lugar. Desceu e empurrou a máquina de costura de sua bisavó para o lugar de origem. Deitou-se na cama e ficou a pensar, tinha deixado o soldadinho verde no saco plástico, tinha sido um bom menino, mas os brinquedos ainda continuavam guardados. Nada aconteceu, tinha descoberto a verdade, mas decidiu não contar a ninguém. Era um segredo muito perigoso.

2 comentários:

pontos... disse...

Hahahah, muito bom, jota! Curti, esse conto é divertido... deixa a gente curioso. O mais legal é que de certa forma ele perde a inocência, ao não contar para a mãe, demonstra certa maturidade. Acho que esse conto não é sobre o desencantamento, mas sobre a possibilidade de conhecer o homem e ainda assim acreditar na magia do mundo..

J. J disse...

Sim, hehehe... Eu ia fazer um conto sobre a perda da Magia, mas no processo de escrita resolvi deixar alguma esperança no final. E quis deixar essa situação de contradição que embora ele tenha perdido a inocência ao descobrir a "verdade", ele ainda se mostra deveras inocente ao acreditar que a mãe ainda acredita.