terça-feira, 7 de outubro de 2008

CONTO XIII - O CONTORSIONISTA INVISÍVEL


Todos na rua, a cidade parecia viva. A mãe segurando a criança pela mão esperava o sinal fechar para finalmente atravessar a avenida. Do outro lado, um casal apaixonado aproveitava o passar alucinado dos carros para se beijar. A garota do lado sentia inveja, tinha acabado de levar um fora de um rapaz que ela gostava muito, mas que não queria nada com ela.
A noite já estava alta, deveria ser umas onze horas, alguns se preparavam para o grande espetáculo que aconteceria. Os jovens bebiam. Apesar do frio cortante, preferiram as mesinhas do lado de fora, assim poderiam ver a paisagem, as garotas, além de terem uma melhor vista do grande show. O homem da farmácia fechou a loja para assistir o evento. Ao descer as portas de ferro do estabelecimento, sentiu o frio que caia sobre a cidade e lembrou-se que tinha um casaco do lado de dentro, achou melhor ir buscá-lo, todavia, seria melhor ir rápido, o espetáculo já iria começar, apressou-se.
O vermelho se iluminou no alto da noite. Os carros vendo aquela cor pararam todos em fila, até parecia que estavam estacionando para assistir o tão esperado evento. Com as máquinas paradas, as pessoas atravessaram a avenida. O casal se desgrudou e andou de mãos dadas. A menina invejosa andou mais rápido para fugir do raio daquela felicidade. A mãe soltou a mão da criança para lhe demonstrar que confiava nela para atravessar sozinha. Junto com o resto das pessoas um cão meio aréu seguia o fluxo, talvez soubesse que a noite seria longa, talvez ouvisse o ronco de sua barriga com fome, talvez quisesse apenas chegar ao outro lado.
Um bêbado tropeçava sozinho e ia andando se escorando nas paredes. Viu o homenzinho verde, iluminado, de braços abertos do outro lado da rua e achou que poderia atravessá-la, mas logo o piscar intermitente daquele sinal lhe avisou para esperar um pouco mais. Cambaleante esperava os carros pararem novamente. Logo, algumas pessoas chegaram ao seu lado, todas com um olhar inquiridor. A esposa comentou com o marido: “como pode um homem chegar nesse estado?” O marido indiferente balançou a cabaça e soltou um, “pois é”, extremamente chocho.
Um homem elegante, vestido de terno e gravata, tinha acabado de sair do banco e olhava desconfiado para o resto das pessoas. Ele transparecia seu medo de ser assaltado, transparecia a quantidade de dinheiro que tinham acabado de sacar no banco. Bobagem, o show seria de graça.
O bêbado cambaleou demais e caiu na frente do homem de roupa social, este não o ajudou a se levantar. Não que sustentasse uma ideologia contra bebedeiras em dia de semana, achasse aquela situação deprimente ou fosse mal educado, não, ele não pensava em nada disso, o único movimento involuntário e irracional que conseguiu fazer foi levar a mão no bolso de trás da calça para ver se sua carteira ainda se encontrava lá, talvez aquele homem ébrio tivesse feito isso para furtar, de maneira quase mágica, seu bem mais precioso naquele momento. Mas não, sua carteira ainda estava no bolso e o bêbado ainda estava no chão.
O sinal fechou. Os carros pararam. As pessoas apressadas passavam por cima da ebriedade jogada no chão. Lugar, teria para todas as pessoas, mas talvez a pressa se justificasse pelo desejo de uma boa vista para o espetáculo. Desconhecidos para lá, desconhecidos para cá, uma massa amorfa se movia atravessando a rua, perdidos em seus pensamentos: “se aquele cheque cair antes do dia quinze, estarei perdido”. “Será que estou grávida? Não, não posso estar, Deus me livre”. “Caramba, que gostosa”. “Odeio meu emprego, preciso arrumar outro trabalho, não agüento mais”. “Será que alguém na cidade lê pensamentos? Nossa, que loucura isso que pensei... lógico que não”. “Ela nem sabe, mas eu até pensei em cantar na televisão. Será que consigo?”. Apesar dos pensamentos distintos, talvez todos estivessem se preparando para o evento que ocorreria alí, próximo à agência bancária da esquina, talvez estivessem ansiosos e excitados para ver a apresentação, ou talvez, estivessem apenas querendo chegar em casa o mais rápido possível. Uma pena, o show já estava para começar, o nosso artista já havia chegado.
O menino chegou na esquina e olhou para todos os lados tentando captar as expressões de seu público. Deveria ter uns doze, treze anos, porém, fora desde cedo treinado a fazer esses movimentos quase sobrehumanos, não haveria risco. Com os olhos tentava explicar essas miudezas para as pessoas daquela avenida, não desejava, em hipótese nenhuma, colocar mais preocupações e medos infundados da cabeça delas.
O sinal abriu e os carros partiram. Tristes por perderem o espetáculo que já iria começar? Talvez. Um pequeno público se aglomerava na esquina, embora estivessem de costas para o nosso artista. A essa altura o bêbado já tinha se levantado sozinho e se escorava no poste esperando o sinal fechar novamente.
O público era bom, talvez, tivesse umas dez, doze pessoas alí, paradas esperando o luminoso homenzinho verde do outro lado da rua, porém, o menino ainda estava meio tímido, apesar das mais de quinhentas apresentações feitas. O frio da cidade, talvez, lhe prejudicasse, talvez, a pele gelada por fora, por dentro fosse responsável por aquele friozinho na barriga, peculiar aos momentos prévios de todas as apresentações artísticas. Ele estava tímido e talvez, fosse por isso que tremia tanto.
O sinal fechou. O público foi-se embora, mas o garoto não estava preocupado. Ele conhecia seu ofício, sabia que naquele espaço o público se renovava. Seria até melhor, contemplaria um maior número de pessoas com sua arte.
Respirou fundo e friccionou as mãos nos braços e nas pernas para esquentar os músculos. A ação que iria fazer, não recomendada de forma alguma para pessoas que não tenham esse tipo de treinamento, exigia os músculos aquecidos. Ele, finalmente, tomou coragem e entrou em cena, os carros parados no sinal vermelho já estavam impacientes.
Seu ato havia começado. Ele se escorou na parede e foi deslizando até o chão. Este movimento ajudava a criar todo o clima de suspense envolvido no espetáculo. Ele deitou de lado no chão frio e áspero da calçada e levou em um só tempo os joelhos próximos ao peito. A segunda ação de sua apresentação foi levar o moleton batido que vestia, por cima do joelho, esticando-o quase até os pés. Dentro daquela agasalho, que também servia de cobertor, ele se exprimia, se apertando todo, encolhendo todos os espaços possíveis. Tenho certeza que, se pudesse, se fosse humanente capaz de realizar esta ação, teria esticado a própria pele do peito por cima do joelho, teria entrado para dentro de si para fugir do frio que lhe motivava a realizar tão surpreende contorsão. O menino era um show. Era impressionante o que fazia.
Talvez, os carros parados no sinal fechado não tivessem uma boa visão da apresentação, uma pena. Dentro do Ka vermelho, um casal brigava por motivos banais. Estavam muito tempo sem discutir e precisavam brigar um pouco para acabar com a infelicidade que é ser muito feliz. Dentro do Honda Civic preto não seria possível ver nada, o vidro filmado, quase cem por cento negro, não deixava quem é de fora entrar, talvez essa escuridão também atrapalhasse sua visão para ver o espetáculo. Dentro do Vectra cinza, o motorista só pensava em levar o carro para o depósito para saber quanto faturaria por aquele veículo. Pensava quase alto, “não posso encontrar a polícia, não posso encontrar a polícia”. O jovem, que dirigia o Gol verde metálico, tinha seu show particular dentro do carro. Música alta, aparelho de dvd, toda a tecnologia para não o deixar entediado nem nos sinais vermelhos.
A tecnologia tinha cumprido seu papel, havia destraído aquele jovem. Só percebeu que o sinal abriu quando o Santana branco começou a buzinar atrás dele. O ka, o Honda Civic, o Vectra, o Gol verde metálico, o Santana, e todos os outros carros que estavam parados seguiram seu caminho perdendo a apresentação do pobre menino. Talvez sua apresentação tivesse mais impacto com os transeuntes.
As pessoas começaram a se aglomerar na calçada e o menino lá, firme e forte continuando seu espetáculo. A prostituta se desiquilibrou com o salto alto, por causa de um buraco que havia no chão, e quase caiu, sendo segurada pelo seu cliente, que se aproveitou da ocasião para roçar a mão em seu seio. Os dois jovens, apesar do cansaço do trabalho, conversavam alegres sobre os planos para o fim de semana. Uma mulher aproveitou o sinal fechado para colocar as sacolas pesadas no chão. Havia feito compras no supermercado, o leite e os produtos de limpeza estavam pesados, era melhor descansar as mãos, pois, teria ainda alguns minutos de caminhada até chegar ao metrô. O senhor parecia estar muito cansado, tinha o rosto abatido, tinha idade para ser aposentado, mas pelo uniforme que vestia ainda trabalhava. O cansaço em seu rosto era explícito. O sinal abriu todos saíram apressados, com exceção do senhor que andava quase se arrastando.
No canto daquela esquina, encostado na parede do banco, o menino continuava seu show. Ele parecia uma pedra, era mágico. Estava todo encolhido dentro do seu moleton cinza, sujo e rasgado, porém, era uma pedra que tremia. Mesmo assim, era inacreditável que alguém pudesse apresentar tal performance. Quanto mais tremia, menor ficava. Era como se pudesse se comprimir até desaparecer de verdade, era como se comprimisse até se solidificar em pedra, era impressionante. Os sinais abriam, os sinais fechavam e o menino se comprimindo. Os carros iam, as pessoas também e o menino continuando sua apresentação.
De repente, sua apresentação chegou ao final, chegou à contorsão máxima. Travou seus músculos uns nos outros, como se fossem engregagens de uma máquina que tivesse parado e solidificou-se, parou de tremer, parou de sentir frio. As pessoas nas ruas, com seus casacos pesados tremiam, mas ele não. Talvez tivesse arrancado a própria pele por debaixo do moleton para se cobrir. As pessoas paravam e seguiam, os carros paravam e seguiam e o menino inerte. Teria morrido? Estaria respirando? Esse contorsionista ousava contra perigo. O que será que havia lhe acontecido?
Carros, pessoas, carros, pessoas. Verde, vermelho, verde, vermelho. O público se renovava e ele com toda sua experiência controlando a situação. A noite começou a sumir e o sol surgiu para ver o espetáculo. A luz do poste, que iluminava o nosso artista, se apagou vencida pela clareza do sol. O menino imóvel, inerte, sem tremer. Os minutos finais de seu ato eram preocupante, eram sufocantes. Teria morrido? Venceria a frieza daquela cidade? O público nessa hora da manhã já era mais intenso, alguns correndo para ir para o trabalho, outros correndo para ir estudar, pessoas e carros correndo para cumprir seus compromissos.
Um movimento. O pé havia se mexido, era impressionante. Ele vagarosamente, como se acabasse de acordar de uma noite dormida na rua, esticou os pés que saíam do moletom batido. Espreguiçava-se como se nada tivesse acontecido, como se seus músculos não tivessem se contraídos a noite inteira. Estava vivo, era incrível, era mágico. Sentou-se encostado na parede, passou as mãos nos olhos como se os estivessem limpando e bocejou. Sua boca ficou aberta em um grave bocejo por uns trintas segundos. Abriu os braços devagar e se espreguiçou todo. Talvez este fosse o único jeito de colocar cada músculo, cada osso no seu devido lugar. Respirou o ar matinal da cidade e se levantou. Olhou para um lado e para o outro e saiu de cena, era impressionante. A cidade, talvez, quisesse aplaudi-lo, quisesse saudá-lo, quisesse parabenizá-lo, mas nada disso aconteceu, talvez estivesse sem reação perante àquela apresentação, era fantástico. Talvez... Mas a verdade era que, muito provavelmente, ninguém o tinha visto, todos passaram por cima de seu corpo empedrecido sem perceber sua presença. Era incrível, era inacreditável, era invisível.

2 comentários:

pontos... disse...

Muuuito bom, jota! Curti demais.. esse é um daqueles contos que eu falo "droga! eu queria ter escrito isso!".

Anônimo disse...

nossa jota....

um dos melhores textos que li ateh agora.

to realmente impressionada....sinceramente

dps conversamos pessoalmente sobre isso....

bjus
Aninha [da facu]

t adoro! e dps desse txt ainda mais! ahuahau