domingo, 2 de novembro de 2008

CONTO XVI – ESTRANHOS E SEGREDOS


Ela me olhou. Olhou como se olhasse para um cachorro ou para uma árvore qualquer. Olhou-me como se eu não fosse algo que pudesse perturbar sua serenidade. Ela poderia ter olhado para as pessoas na rua, que passavam alheias a nossa troca de olhares, do lado de fora do ônibus em movimento, para a criança que chorava pirracenta, para a mãe que preocupada com a ordem tentava conter este choro, ou para o velho em pé, que esperava uma alma caridosa para lhe ceder o lugar. No entanto, ela me olhou.
Eu, como não sou do tipo que foge de olhares, retribuí a preferência em meio a todas aquelas possibilidades. Olhei para a garota como se enxergasse uma obra de arte, como se houvesse encontrado aquilo que faltava para deixar a minha vida completa, como se quisesse lhe desvendar a alma. Um olhar apertado e profundo, que transpassou seus olhos castanhos e lhe deixou com uma sensação dúbia de incômodo e curiosidade.
Ela, perturbada com o meu olhar de resposta, desviou sua atenção. Voltou-se para a rua que corria do lado de fora daquele transporte. A garota estava sentada no último banco antes da porta, aquele mais alto, de braços dados com um rapaz que deveria ser seu namorado. Eu, espremido em um ônibus lotado, estava de pé, a uns dois, três bancos do casal. Apesar da quantidade de pessoas apertadas como mercadorias, em um transporte coletivo na volta do trabalho, nada atrapalhava nossa troca de olhares, nem mesmo o rapaz que lhe acompanhava e lhe cedia o braço. Este estava dormindo ingenuamente.
Ela continuava olhando para fora, talvez estivesse preocupada com a chuva que ameaçava cair. Eu sabia que tinha lhe plantado uma semente de curiosidade, sabia que quando voltasse seu olhar para dentro do veículo procuraria os meus olhos. Eu estaria ali, esperando o seu olhar.
Ao contrário do que imaginava, ela não me procurou. Talvez soubesse que mesmo sem me olhar, eu mantinha meus olhos sobre ela. A garota de olhos fechados, como se fingisse uma sonolência, deitou sua cabeça no ombro do rapaz que dormia. Ele acordou com o gesto, beijou-lhe a cabeça e voltou a dormir.
Eu não havia desistido, sabia que ela ainda me procuraria, procuraria os meus olhos. Mesmo que houvesse amor entre a garota e o rapaz que dormia inocente, há no ser humano algo instintivo, algo irracional que nos impulsiona a querer ser desejado. O desejo é um combustível altamente explosivo e eu, ali, parado de pé esperando, sabia disso. Eu sabia que o desejo de ser desejado era maior que todo amor, fidelidade ou decência moral que ela poderia ter.
Não precisei esperar muito. Alguns segundos depois daquele sono fingido, ela, ainda encostada no ombro do rapaz, abriu os olhos e me encontrou. A garota incomodada, rapidamente fechou os olhos. Talvez o peso na consciência – o amor, a fidelidade, a moral – a tenha feito fechar os olhos, ou, apenas, não estivesse acostumada a ser olhada daquele jeito por um homem. Seu companheiro dormia.
Eu continuei com o meu jogo, não podia voltar atrás. Eu deveria fazer o que ela esperava de mim. Sem desgrudar meu olhar, um momento sequer, caminhava com meus olhos sobre seus lábios, seu nariz, seus olhos fechados, seu cabelo e sobre seu decote. Ela deveria imaginar que, enquanto ela fingia que dormia, eu tentava desvendar os seus segredos mais íntimos. Era isso o que ela esperava de mim.
Novamente, ela abriu os olhos e me encontrou. A troca de olhares durou por mais tempo. Eu sabia como jogar este jogo e desviei o olhar. Eu precisava fazer ela acreditar que tinha vencido, que eu, por timidez, não havia conseguido encará-la por tanto tempo. Esse desvio proposital transformaria nossa troca de olhares de incômoda e atrevida, em interesse mútuo, em cumplicidade. Esse era um passo que precisava ser dado, eu sabia disso, eu tinha total controle da situação, apesar de ela imaginar que havia vencido.
Agora, seria eu que me deixaria ser observado. Olhei para a janela, para a rua, para as pessoas do lado de fora que tentavam se proteger na chuva que começava a cair e para as pessoas que dentro do ônibus se movimentavam para fechar as janelas. Ela, ainda deitada no ombro do rapaz, me olhava. Esta era uma etapa deste jogo.
Meu celular vibrou. Era uma mensagem da operadora avisando para eu recarregar o crédito, mas eu aproveitei a situação. Enquanto lia a mensagem, abri o maior sorriso que consegui. Olhei para ela, estava de olhos fechados, devia ter ficado decepcionada com a minha atitude. Ao ver a minha felicidade, por causa da mensagem, deve ter percebido que havia outras pessoas em minha vida: uma namorada, um romance, amigos, família; e que ela também tinha pelo menos alguém que estava ali, ao seu lado lhe cedendo o ombro e o braço. Ao pensar nisso, talvez tenha percebido o quanto era infame o nosso jogo, mas eu e ela, tenho certeza disso, sabíamos que não havia acabado.
Eu me virei para olhá-la novamente e não poderia ser mais perfeito. Enquanto eu me virava, ela abriu os olhos. Esse movimento sincronizado a assustou. Ela se levantou bruscamente dos ombros do rapaz e voltou-se, novamente, para a janela, que começava a embaçar por causa da chuva. Desta vez o dorminhoco não acordou.
Ela estava impaciente. Olhava para fora, olhava para mim e olhava para as pessoas dentro do ônibus. Sempre voltava para brindar nossa troca de olhares e me encontrava presente, admirando sua inquietude.
Tivemos novamente uma troca de olhares mais demorada. Agora, eu não a deixaria vencer, foi ela quem desviou. Desviou para olhar para aquele que a acompanhava. Era deslealdade aquilo que fazíamos, a garota olhava para o rapaz ao seu lado, talvez estivesse querendo comparar os dois homens, eu e ele. Era deslealdade porque nunca devemos fazer comparações com alguém dormindo. O ser, por mais belo que seja, sempre parece um animal ao dormir. A boca aberta, a respiração forte, os músculos relaxados, são expressões daquela animalidade inerente aos homens, que tentamos manter escondida sobre o manto da civilização. Nesta guerra, eu era o homem, que a olhava penetrante, em pé, rígido e consciente; ele era o animal, flácido, moribundo e desatento com sua amada. Aquilo... Aquela comparação era desleal, mas não poderia mostrar a ela que, por um momento, havia fraquejado em nosso jogo.
Eu percebia o quanto ela estava impaciente. Balançava as pernas, arrumava o cabelo e olhava para o rapaz ao seu lado, talvez com medo de ser pega no flerte com um estranho. Aquele era o nosso segredo. Um segredo selado por dois desconhecidos. Eu decidi entrar também na brincadeira. Olhava para o relógio de cinco em cinco minutos, movia minha cabeça para todos os lados e voltava a olhar para ela, divertia-me com aquilo. Olhava para o rapaz e olhava para ela, como se quisesse dizer: “se não fosse ele ao seu lado, iria falar com você”.
Era divertido, mas estava na hora de terminar a brincadeira. O meu ponto estava chegando. Dei o sinal e fui caminhando para a porta, pedindo licença para as pessoas apertadas no ônibus. Ao passar por ela a encarei como em um poema baudelairiano: “Não mais te hei de rever senão na eternidade?”. Eu era um passante, ela não sabia nada sobre mim, só lhe restaria o rapaz dormindo ao seu lado. O ônibus parou e eu desci. Ainda deu tempo de trocarmos mais um olhar pela janela, que ela tentava desembaçar passando a mão no vidro, antes que o veículo começasse a andar.
A chuva caía. Apesar de eu ter um guarda-chuva na mala, decidi não abri-lo. Precisava lavar os meus pecados. Era doentio e não era a primeira fez que fazia isso. A chuva talvez me redimisse. A garota era feia, o dorminhoco também. Os dois eram um casal que se completava em sua feiúra. Eu, apesar de não ser um galã, nunca tive problemas com mulheres, sempre saí com garotas belíssimas. Não precisava fazer o que havia feito, mas sentia um prazer enorme em fingir desejar e em ser desejado. Era extremamente prazeroso saber que havia colocado na cabeça daquela garota, que ela podia ser desejada por um homem como eu, que ela merecia algo melhor do que aquele rapaz que dormia ao seu lado. Eu não poderia saber o que aconteceria com aquele casal, pouco me importava, para falar a verdade. Mas tenho certeza que em toda briga dos dois, ela pensaria em mim. Pensaria que merecia algo melhor. Talvez existisse amor entre os dois, talvez estivessem namorando há anos, talvez há poucas semanas, estas são coisas que também nunca saberei, algo que a cidade com sua multidão e seus encontros efêmeros não nos permite conhecer, porém, tenho certeza de uma coisa: ela ainda pensaria em mim.

2 comentários:

pontos... disse...

é muito doido como pode ser tão diverso o pensamento humano. como podemos pensar determinadas coisas dissimulando isto e fazendo parecer outra. será que isto é nosso?! não nos abrir e não nos deixar entrar em nosso coração... ou será que a convivência social nos faz com que nos protejamos?!? e pensar como esta convivência social, mesmo limitada a todas as barreiras que dispomos, pode nos mudar e nos fazer pensar e nos fazer acreditar em coisas que nem existe... enfim!

Anônimo disse...

Um olhar apenas pode ser marcante...pode ganhar o dia de uma garota...mesmo que acompanhada por uma rapaz...mesmo que sendo apenas um encontro de olhares duvidosos e ansiosos. Beijos