sábado, 25 de outubro de 2008

CONTO XV - O SOLDADINHO


A Kombi mal virou a esquina de sua rua e ele já começou a sentir a ansiedade lhe invadindo a alma. A pequena alma daqueles que têm seis anos de idade. O automóvel buzinou e apareceu no quintal sua mãe, sorridente como sempre ao esperar o filho chegar da escola.
O menino desceu do carro, deu um beijo rápido na mulher que lhe esperava no portão, lhe entregou a mochila e correu para brincar. Em sua pressa, passou pela cozinha e sentiu o cheiro da comida que estava sendo preparada, era hora do almoço. Deu um oi apressado para sua bisavó, que lhe esperava na sala. A velhinha foi repreensiva: “Vem cá menino, dá um beijo na bisa. Que pressa toda é essa. Vem cá.” O menino foi meio a contragosto, mas foi.
Subiu as escadas do sobrado, saltando de dois em dois degraus para chegar mais rápido ao andar de cima. Ao chegar, virou à esquerda, passou por um corredor: uma porta, duas portas, a terceira era a de seu quarto, a porta estava fechada. Parou com todo o respeito em frente daquilo que lhe separava de seus brinquedos. Antes de entrar e enfrentar a felicidade ingênua do brincar com seus bonecos, todos eles soldados de guerra, equipados com metralhadoras, bazucas e um monte de outras armas que ele nem sabia o nome, fechou os olhos e lembrou-se da noite anterior. Brincou até a hora de dormir, criando guerras, bolando estratégias para derrotar os inimigos do seu esquadrão de heróis, sendo que muitos desses rivais nem mesmo eram “humanos”. Ele havia misturado um monte de bonequinhos diferentes para lutar contra os “super-soldados”, o brinquedo novo e mais legal que já tivera. A ansiedade em seus olhos era latente.
Escorregou seus dedos na maçaneta da porta e a abriu. Não viu nada, parecia que um furacão havia varrido os heróis e os vilões do campo de batalha, nada. Sua cama estava lá, seu armário estava lá, a máquina de costura de sua bisavó, que tinha sido usada na noite anterior como montanha em sua guerra particular, estava lá, mas nenhum dos atores daquele combate se apresentou. Ele entrou meio decepcionado no quarto. Ele sabia o que aquela ausência queria dizer, caminhou, tentando manter a esperança, até sua caixa de brinquedos. Revirou os carrinhos, as espadas, os trenzinhos, e outros objetos que ali estavam, mas não achou o que estava procurando. Ele sabia exatamente o que tinha acontecido.
Dirigiu-se até a cama e se deitou desacreditado. Sentiu-se arrependido: “Eu deveria ter guardado meus brinquedos quando minha mãe falou. Agora o Papai Noel levou tudo embora e só devolverá meus brinquedos quando eu for um bom menino de novo”. Ele sabia que, apesar de não ser dezembro, o bom velhinho nunca parava, estava sempre levando os brinquedos daqueles que se recusam a guardá-los. Ele sabia o que tinha acontecido.
Sua mãe apareceu na porta e o chamou para almoçar: “Vamos descer? O almoço está pronto.” Ele, triste, falou: “Já vou”. A mulher já estava saindo quando escutou o menino chamando: “Mãe... Você viu que o Papai Noel levou os meus brinquedos embora?” “Sério, filho? Que pena. Então é por isso que seu quarto está limpo? Achei que você tivesse subido apressado para arrumá-lo antes que o Papai Noel aparecesse. É, mas pelo visto ele já passou por aqui. Que pena, Guilherme, mas você sabe que é isso que sempre acontece quando você não guarda os seus brinquedos”. “Eu sei”, respondeu o menino. “Agora vá ao banheiro, lave suas mãos e desça para almoçar”. “Está bem, já vou”.
A mulher desceu e começou a aprontar a mesa. O menino ficou, ainda meio desiludido, deitado na cama e olhando para os adesivos colados no teto, em forma de estrelas que brilhavam no escuro. Desanimado, extremamente desanimado, ele não tinha vontade de se levantar, não tinha vontade de comer. Só levantou quando sua mãe lhe gritou do andar de baixo: “Vem almoçar agora, menino”. Ele preferiu não contrariar: “Já vou”. Sentou-se na cama, tirou os sapatos, foi até o armário para apanhar seus chinelos, mas eles não estavam lá. Coçou a cabeça, como se perguntasse a si próprio onde estariam aqueles pares. Olhou pelo quarto e não viu nada. Ajoelhou-se próximo a cama e curvou-se para olhar abaixo desta. Os chinelos estavam lá, mas não foi isso o que mais lhe chamou a atenção. Havia outro objeto embaixo de sua cama que lhe deixou atônito: um dos seus soldadinhos, ali, como se houvesse se escondido do próprio Papai Noel.
Ele se esticou todo em baixo da cama para apanhar aquele objeto. Depois, ajoelhado de frente para cama, ficava encarando aquele brinquedo, tentando entender como este havia escapado da magia do bom velhinho.
Sua mãe lhe ensinara que o Papai Noel voava com o seu trenó mágico para perto das janelas dos meninos bagunceiros e, se a criança não tivesse guardado os seus brinquedos, ele, com sua mágica, recolhia todos os bonecos, carrinhos, jogos, tudo que estivesse espalhado. Só devolvia quando o menino merecesse, novamente.
Porém, aquele soldadinho em suas mãos tinha escapado da magia. Como isso era possível? Não fazia sentido. Ele pensava: “Será que a magia do Papai Noel não é tão boa assim?” “Se ele usasse mágica de verdade, todos os bonequinhos”, inclusive aquele que estava em suas mãos, “deveriam ter sido levados”. O que não aconteceu. Ele sabia que havia algo estranho, mas um novo berro de sua mãe o fez lembrar-se do almoço. Calçou os chinelos e desceu as escadas correndo.
Ao chegar à cozinha, sua mãe anunciou: “Não quero nem saber. Hoje eu fiz bife de fígado e você vai ter que comer.” Ele olhou para aquela carne com desdém e falou: “que merda”. A mãe e a velhinha sentadas à mesa se espantaram com o palavreado da criança. A senhora logo tratou de lhe dar uma bronca: “Que isso menino, onde você aprendeu essa palavra. É muito feio isso que você falou, criança não deve falar essas coisas”. O garoto pediu desculpas, porém, de maneira rebelde, pensou: “é uma merda mesmo”.
Ele não conseguiu almoçar direito, só ficava pensando naquele objeto encontrado embaixo da cama. Ele tentou imaginar explicações. Talvez, Papai Noel descesse do trenó para pegar manualmente os brinquedos. Porém, ele logo desistiu da idéia. Seria impensável o velhinho se ajoelhando no chão para recolher os brinquedos, um por um. Além do mais, sua mãe sempre lhe disse que era através da mágica que ele levava toda a bagunça. Só a magia explicaria, pois, ele deveria ter muitas casas para visitar.
Não quis comer muito e sua mãe logo lhe dispensou da mesa. Voltou ao quarto, porém, sem tanta pressa. Parecia que a cada passo que dava naqueles degraus mais ele se afastava de sua inocência e menos ele conseguia explicar toda aquela situação.
Chegou ao quarto e deitou-se novamente. Com aquele brinquedo na mão, ficava imaginando respostas, nenhuma lhe convencia. Cada vez mais, ele chegava mais perto da única resposta que ele não queria obter. Sempre que duvidava da existência do velhinho, tentava se lembrar dos poucos, porém marcantes, natais vividos. A situação estava cada vez mais crítica.
Ele se levantou decidido a descobrir a verdade. Talvez fosse muito jovem ainda, para saber que se libertar de uma mentira nem sempre é garantia de felicidade. Talvez não soubesse que sua ingenuidade estava em jogo. Se deixasse de acreditar na magia, deixaria de acreditar em tudo aquilo que faz a vida melhor e menos sofrida. Mas ele não sabia disso, não sabia o que estava em jogo.
Procurou pelo quarto mais algum soldadinho. Não achou nada. Vasculhou em baixo da escrivaninha, da máquina de costura de sua bisavó, no meio da caixa dos brinquedos e no meio de suas roupas. Nada, absolutamente nada. Abriu às portas do seu guarda-roupa, na primeira porta, nada, na segunda, nada, foi na terceira onde ele achou algo estranho.
A terceira porta que abriu tinha, na parte alta do guarda-roupa, um saco plástico preto, provavelmente um saco de lixo. Ele nunca tinha visto aquilo antes. A curiosidade lhe corroia a pequena alma.
Foi até a escada verificar se alguém estava a caminho, ninguém. Fechou a porta, guardou o soldadinho no bolso e começou a empurrar a máquina de costura para perto do guarda-roupa. Apesar do peso ele conseguiu realizar a incrível façanha.
Com a máquina perto do armário, ele poderia subir nela e alcançar o saco preto. A dúvida lhe paralisava, como se não tivesse certeza de que quisesse saber o que estava naquela sacola. Ele queria olhar o que estava dentro, mas o receio da mudança lhe ameaçava. Talvez soubesse, apesar da pouca idade, que o volume presente naquele saco mudaria sua vida para sempre, talvez soubesse que nem toda liberdade é garantia de felicidade, ou talvez, apenas estivesse com medo do que iria encontrar lá dentro. Nunca se sabe ao certo o que passa na cabeça das crianças.
Ele tomou coragem. Apoiou-se na máquina e subiu. Andou para ponta, bem para perto do armário e, nas pontinhas do pé, alcançou o saco plástico. Ele caiu em seus braços. O barbante que o fechava, separava dois mundos para aquele o menino.
Com aquele objeto na mão, ainda não sabia se queria abri-lo. Tateou o saco e conseguiu sentir as formas guardadas ali dentro, tinha quase certeza que eram os seus soldadinhos. Assim, resolveu abrir aquela sacola. Desamarrou o barbante e ao olhar para dentro daquele plástico preto, pensou: “nossa, achei meus soldadinhos”.
Estavam todos os soldados lá, inclusive os inimigos daqueles heróis verdes. Ele sentiu uma alegria grandiosa e se lembrou da noite passada, onde ficou brincando de guerra com aqueles pequenos homenzinhos. Estava quase descendo para contar para sua mãe o que havia encontrado e para, enfim, brincar com seus soldadinhos, quando, por um minuto, parou. Hesitante, lembrou-se novamente de sua mãe e pensou: “Talvez, ela ainda queira acreditar no Papai Noel”.
Demorou alguns minutos para que o pequeno interrompesse sua inércia. Colocou a mão no bolso, agarrou firme aquele soldadinho, fruto de toda esta questão, abriu o saco e o jogou lá dentro. Depois, fechou e colocou o plástico preto novamente no lugar. Desceu e empurrou a máquina de costura de sua bisavó para o lugar de origem. Deitou-se na cama e ficou a pensar, tinha deixado o soldadinho verde no saco plástico, tinha sido um bom menino, mas os brinquedos ainda continuavam guardados. Nada aconteceu, tinha descoberto a verdade, mas decidiu não contar a ninguém. Era um segredo muito perigoso.

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

CONTO XIV - IMPERIALISMO?


Eu entrei na sala de aula e todos olharam para mim. A cada passo, a cada marca do chão, mais os olhares me perseguiam e me julgavam. Eu sentia as cabeças virando para trás para acompanhar o meu caminho até a carteira que eu sentava. Tentei não dar bola, mas aquela situação me incomodava deveras, até a professora havia parado a aula para me encaminhar com os olhos. Já não bastasse chegar atrasado ainda tinha que sofrer esta humilhação.
Adolescente passa por cada coisa, desejava com todas as minhas forças ser adulto naquela hora, pois, adultos nunca se abalam com essas coisas e sempre têm respostas para tudo, mas não os jovens... Os adolescentes sofrem.
Sentei-me, tentei não olhar para frente, tentei não encarar ninguém. Peguei o caderno na mochila e fingi que estava preparado para escrever... Preparado, preparado uma ova, quem poderia estar preparado depois de tanta humilhação. A professora se virou e continuou passando lição na lousa, o silêncio permaneceu por alguns minutos, muitos ainda me olhavam, olhavam para os meus pés sujos de lama e para as marcas que sujavam a sala.
Que vergonha! Odiava morar em um bairro pobre, odiava ser pobre, odiava ter que andar na estrada de terra para vir para a escola, estrada esta que virava lama pura quando chovia. Odiava a chuva que havia caído na noite anterior e que deixou pela manhã a estrada enlameada me fazendo passar por essa vergonha. Odiava ser o filho da faxineira e ter bolsa em uma escola particular justamente por este motivo.
Todos ali tinham dinheiro e me olhavam sabendo que eu não o tinha. Uns me encaravam com nojo, “esse pobre, esse bárbaro, esse incivilizado”, outros com pena, “coitado, precisamos ajudá-lo, ele não tem condições de se virar sozinho”. A professora estava de costas passando lição na lousa.
Por mais que a professora se esforçasse ninguém prestava atenção na matéria, eu era a atração. “É melhor eu ficar longe deste menino, ele deve ser perigoso”, eu via nos olhos de uma menina, que usava um sapatinho branco impecável, que inveja.
Comecei a copiar a matéria e tentei esquecer a humilhação. O chão cheio de barro rodeando a minha carteira era uma atração. De tempos em tempos alguém olhava para trás para ver o produto da barbárie, era novo, era exótico, era selvagem, era barro.
O sinal tocou para minha alegria, era a hora do recreio. Esperei todos os alunos saírem. Fingi que procurava alguma coisa na mala e quando todos, inclusive a professora, já haviam saído, me dirigi ao pátio do colégio.
Lá cruzei com a minha mãe fazendo a faxina na escola e limpando a falta de educação daqueles que achavam que sempre haverá alguém para limpar suas sujeiras. Dei um oi tímido, não quis olhar muito em seus olhos, pois ela saberia que estava triste e saberia qual era o motivo. Ela vivia me falando que eu tinha que me orgulhar do lugar de onde vinha e que eu deveria agradecer por ter saúde e por poder estudar em uma escola boa. Ela sempre terminava seu discurso me aconselhando a não dar atenção àqueles meninos. Por isso, falei oi e saí rápido.
Cheguei perto da quadra e todos continuavam a me olhar, só que de maneira diferente. Um dos meninos da sala chegou perto de mim e falou: “Que bom que você chegou, estávamos te esperando para começar o jogo”. Os times foram separados e eu o primeiro a ser escolhido. Todos sabiam da minha habilidade com a bola, na quadra eu era rei, lá aqueles meninos endinheirados se curvavam à minha técnica, lá eu era algo que eles não podiam comprar e lá a periferia era o centro do mundo.
Driblei, lancei, corri. Fiz diversos gols, todos vinham me abraçar quando a rede balançava. Porém, a minha fama acabou com o sinal do fim do recreio.
De volta à aula, de volta aos olhares, eles continuavam os mesmos. Havia dez meninos suados após a partida de futebol, mas as meninas olhavam com olhares recriminadores apenas para mim: “selvagem”.
Olhei para frente e vi um dos meus companheiros de jogo com uma camiseta oficial do Milan, objeto que nunca poderia comprar e pensei: Será que eu era algo que realmente eles nunca poderiam comprar? Não sei. Talvez a periferia seja sempre um produto para a metrópole.

terça-feira, 7 de outubro de 2008

CONTO XIII - O CONTORSIONISTA INVISÍVEL


Todos na rua, a cidade parecia viva. A mãe segurando a criança pela mão esperava o sinal fechar para finalmente atravessar a avenida. Do outro lado, um casal apaixonado aproveitava o passar alucinado dos carros para se beijar. A garota do lado sentia inveja, tinha acabado de levar um fora de um rapaz que ela gostava muito, mas que não queria nada com ela.
A noite já estava alta, deveria ser umas onze horas, alguns se preparavam para o grande espetáculo que aconteceria. Os jovens bebiam. Apesar do frio cortante, preferiram as mesinhas do lado de fora, assim poderiam ver a paisagem, as garotas, além de terem uma melhor vista do grande show. O homem da farmácia fechou a loja para assistir o evento. Ao descer as portas de ferro do estabelecimento, sentiu o frio que caia sobre a cidade e lembrou-se que tinha um casaco do lado de dentro, achou melhor ir buscá-lo, todavia, seria melhor ir rápido, o espetáculo já iria começar, apressou-se.
O vermelho se iluminou no alto da noite. Os carros vendo aquela cor pararam todos em fila, até parecia que estavam estacionando para assistir o tão esperado evento. Com as máquinas paradas, as pessoas atravessaram a avenida. O casal se desgrudou e andou de mãos dadas. A menina invejosa andou mais rápido para fugir do raio daquela felicidade. A mãe soltou a mão da criança para lhe demonstrar que confiava nela para atravessar sozinha. Junto com o resto das pessoas um cão meio aréu seguia o fluxo, talvez soubesse que a noite seria longa, talvez ouvisse o ronco de sua barriga com fome, talvez quisesse apenas chegar ao outro lado.
Um bêbado tropeçava sozinho e ia andando se escorando nas paredes. Viu o homenzinho verde, iluminado, de braços abertos do outro lado da rua e achou que poderia atravessá-la, mas logo o piscar intermitente daquele sinal lhe avisou para esperar um pouco mais. Cambaleante esperava os carros pararem novamente. Logo, algumas pessoas chegaram ao seu lado, todas com um olhar inquiridor. A esposa comentou com o marido: “como pode um homem chegar nesse estado?” O marido indiferente balançou a cabaça e soltou um, “pois é”, extremamente chocho.
Um homem elegante, vestido de terno e gravata, tinha acabado de sair do banco e olhava desconfiado para o resto das pessoas. Ele transparecia seu medo de ser assaltado, transparecia a quantidade de dinheiro que tinham acabado de sacar no banco. Bobagem, o show seria de graça.
O bêbado cambaleou demais e caiu na frente do homem de roupa social, este não o ajudou a se levantar. Não que sustentasse uma ideologia contra bebedeiras em dia de semana, achasse aquela situação deprimente ou fosse mal educado, não, ele não pensava em nada disso, o único movimento involuntário e irracional que conseguiu fazer foi levar a mão no bolso de trás da calça para ver se sua carteira ainda se encontrava lá, talvez aquele homem ébrio tivesse feito isso para furtar, de maneira quase mágica, seu bem mais precioso naquele momento. Mas não, sua carteira ainda estava no bolso e o bêbado ainda estava no chão.
O sinal fechou. Os carros pararam. As pessoas apressadas passavam por cima da ebriedade jogada no chão. Lugar, teria para todas as pessoas, mas talvez a pressa se justificasse pelo desejo de uma boa vista para o espetáculo. Desconhecidos para lá, desconhecidos para cá, uma massa amorfa se movia atravessando a rua, perdidos em seus pensamentos: “se aquele cheque cair antes do dia quinze, estarei perdido”. “Será que estou grávida? Não, não posso estar, Deus me livre”. “Caramba, que gostosa”. “Odeio meu emprego, preciso arrumar outro trabalho, não agüento mais”. “Será que alguém na cidade lê pensamentos? Nossa, que loucura isso que pensei... lógico que não”. “Ela nem sabe, mas eu até pensei em cantar na televisão. Será que consigo?”. Apesar dos pensamentos distintos, talvez todos estivessem se preparando para o evento que ocorreria alí, próximo à agência bancária da esquina, talvez estivessem ansiosos e excitados para ver a apresentação, ou talvez, estivessem apenas querendo chegar em casa o mais rápido possível. Uma pena, o show já estava para começar, o nosso artista já havia chegado.
O menino chegou na esquina e olhou para todos os lados tentando captar as expressões de seu público. Deveria ter uns doze, treze anos, porém, fora desde cedo treinado a fazer esses movimentos quase sobrehumanos, não haveria risco. Com os olhos tentava explicar essas miudezas para as pessoas daquela avenida, não desejava, em hipótese nenhuma, colocar mais preocupações e medos infundados da cabeça delas.
O sinal abriu e os carros partiram. Tristes por perderem o espetáculo que já iria começar? Talvez. Um pequeno público se aglomerava na esquina, embora estivessem de costas para o nosso artista. A essa altura o bêbado já tinha se levantado sozinho e se escorava no poste esperando o sinal fechar novamente.
O público era bom, talvez, tivesse umas dez, doze pessoas alí, paradas esperando o luminoso homenzinho verde do outro lado da rua, porém, o menino ainda estava meio tímido, apesar das mais de quinhentas apresentações feitas. O frio da cidade, talvez, lhe prejudicasse, talvez, a pele gelada por fora, por dentro fosse responsável por aquele friozinho na barriga, peculiar aos momentos prévios de todas as apresentações artísticas. Ele estava tímido e talvez, fosse por isso que tremia tanto.
O sinal fechou. O público foi-se embora, mas o garoto não estava preocupado. Ele conhecia seu ofício, sabia que naquele espaço o público se renovava. Seria até melhor, contemplaria um maior número de pessoas com sua arte.
Respirou fundo e friccionou as mãos nos braços e nas pernas para esquentar os músculos. A ação que iria fazer, não recomendada de forma alguma para pessoas que não tenham esse tipo de treinamento, exigia os músculos aquecidos. Ele, finalmente, tomou coragem e entrou em cena, os carros parados no sinal vermelho já estavam impacientes.
Seu ato havia começado. Ele se escorou na parede e foi deslizando até o chão. Este movimento ajudava a criar todo o clima de suspense envolvido no espetáculo. Ele deitou de lado no chão frio e áspero da calçada e levou em um só tempo os joelhos próximos ao peito. A segunda ação de sua apresentação foi levar o moleton batido que vestia, por cima do joelho, esticando-o quase até os pés. Dentro daquela agasalho, que também servia de cobertor, ele se exprimia, se apertando todo, encolhendo todos os espaços possíveis. Tenho certeza que, se pudesse, se fosse humanente capaz de realizar esta ação, teria esticado a própria pele do peito por cima do joelho, teria entrado para dentro de si para fugir do frio que lhe motivava a realizar tão surpreende contorsão. O menino era um show. Era impressionante o que fazia.
Talvez, os carros parados no sinal fechado não tivessem uma boa visão da apresentação, uma pena. Dentro do Ka vermelho, um casal brigava por motivos banais. Estavam muito tempo sem discutir e precisavam brigar um pouco para acabar com a infelicidade que é ser muito feliz. Dentro do Honda Civic preto não seria possível ver nada, o vidro filmado, quase cem por cento negro, não deixava quem é de fora entrar, talvez essa escuridão também atrapalhasse sua visão para ver o espetáculo. Dentro do Vectra cinza, o motorista só pensava em levar o carro para o depósito para saber quanto faturaria por aquele veículo. Pensava quase alto, “não posso encontrar a polícia, não posso encontrar a polícia”. O jovem, que dirigia o Gol verde metálico, tinha seu show particular dentro do carro. Música alta, aparelho de dvd, toda a tecnologia para não o deixar entediado nem nos sinais vermelhos.
A tecnologia tinha cumprido seu papel, havia destraído aquele jovem. Só percebeu que o sinal abriu quando o Santana branco começou a buzinar atrás dele. O ka, o Honda Civic, o Vectra, o Gol verde metálico, o Santana, e todos os outros carros que estavam parados seguiram seu caminho perdendo a apresentação do pobre menino. Talvez sua apresentação tivesse mais impacto com os transeuntes.
As pessoas começaram a se aglomerar na calçada e o menino lá, firme e forte continuando seu espetáculo. A prostituta se desiquilibrou com o salto alto, por causa de um buraco que havia no chão, e quase caiu, sendo segurada pelo seu cliente, que se aproveitou da ocasião para roçar a mão em seu seio. Os dois jovens, apesar do cansaço do trabalho, conversavam alegres sobre os planos para o fim de semana. Uma mulher aproveitou o sinal fechado para colocar as sacolas pesadas no chão. Havia feito compras no supermercado, o leite e os produtos de limpeza estavam pesados, era melhor descansar as mãos, pois, teria ainda alguns minutos de caminhada até chegar ao metrô. O senhor parecia estar muito cansado, tinha o rosto abatido, tinha idade para ser aposentado, mas pelo uniforme que vestia ainda trabalhava. O cansaço em seu rosto era explícito. O sinal abriu todos saíram apressados, com exceção do senhor que andava quase se arrastando.
No canto daquela esquina, encostado na parede do banco, o menino continuava seu show. Ele parecia uma pedra, era mágico. Estava todo encolhido dentro do seu moleton cinza, sujo e rasgado, porém, era uma pedra que tremia. Mesmo assim, era inacreditável que alguém pudesse apresentar tal performance. Quanto mais tremia, menor ficava. Era como se pudesse se comprimir até desaparecer de verdade, era como se comprimisse até se solidificar em pedra, era impressionante. Os sinais abriam, os sinais fechavam e o menino se comprimindo. Os carros iam, as pessoas também e o menino continuando sua apresentação.
De repente, sua apresentação chegou ao final, chegou à contorsão máxima. Travou seus músculos uns nos outros, como se fossem engregagens de uma máquina que tivesse parado e solidificou-se, parou de tremer, parou de sentir frio. As pessoas nas ruas, com seus casacos pesados tremiam, mas ele não. Talvez tivesse arrancado a própria pele por debaixo do moleton para se cobrir. As pessoas paravam e seguiam, os carros paravam e seguiam e o menino inerte. Teria morrido? Estaria respirando? Esse contorsionista ousava contra perigo. O que será que havia lhe acontecido?
Carros, pessoas, carros, pessoas. Verde, vermelho, verde, vermelho. O público se renovava e ele com toda sua experiência controlando a situação. A noite começou a sumir e o sol surgiu para ver o espetáculo. A luz do poste, que iluminava o nosso artista, se apagou vencida pela clareza do sol. O menino imóvel, inerte, sem tremer. Os minutos finais de seu ato eram preocupante, eram sufocantes. Teria morrido? Venceria a frieza daquela cidade? O público nessa hora da manhã já era mais intenso, alguns correndo para ir para o trabalho, outros correndo para ir estudar, pessoas e carros correndo para cumprir seus compromissos.
Um movimento. O pé havia se mexido, era impressionante. Ele vagarosamente, como se acabasse de acordar de uma noite dormida na rua, esticou os pés que saíam do moletom batido. Espreguiçava-se como se nada tivesse acontecido, como se seus músculos não tivessem se contraídos a noite inteira. Estava vivo, era incrível, era mágico. Sentou-se encostado na parede, passou as mãos nos olhos como se os estivessem limpando e bocejou. Sua boca ficou aberta em um grave bocejo por uns trintas segundos. Abriu os braços devagar e se espreguiçou todo. Talvez este fosse o único jeito de colocar cada músculo, cada osso no seu devido lugar. Respirou o ar matinal da cidade e se levantou. Olhou para um lado e para o outro e saiu de cena, era impressionante. A cidade, talvez, quisesse aplaudi-lo, quisesse saudá-lo, quisesse parabenizá-lo, mas nada disso aconteceu, talvez estivesse sem reação perante àquela apresentação, era fantástico. Talvez... Mas a verdade era que, muito provavelmente, ninguém o tinha visto, todos passaram por cima de seu corpo empedrecido sem perceber sua presença. Era incrível, era inacreditável, era invisível.

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

CONTO XII - DUAS NOITES


Soberana. A partir do momento que ela estende seus braços sobre a cidade, se torna soberana. Só ela guia as regras. A noite desamanhece a manhã e se impõe, imponente, impostada, impostora sobre os homens. Todos eles com sua lida comum, sua vida regrada, sua ida marcada. Homens prepotentes, previsíveis e predicados, homens apagados pela ausência de sol. A noite é soberana e, a partir daí, não há mais explicações, não há subjetividade, não há dúvidas hiperbólicas, só há o anoitecer ontológico dos tempos onde os homens não se preocupavam com as coisas, apenas eram e esperavam acontecer.
A noite trava as máquinas da sociedade, pelo menos a maioria delas, e leva para casa os operários em fila que, apertados em um público transporte de indivíduos, estão muito cansados para pensar na vida. Eles só querem o lar, a comida quentinha da Dona Maria, o beijo cotidiano de quem os espera no portão. As horas cansativas e alienadas na prensa prensam seus músculos e os leva a desejar o sono, o sonho e o sábado. A luta no sol é cansativa e muitos preferem a noite do descanso, do descaso e da televisão.
A noite emudece, silencia aqueles que querem subverter a ordem. O descanso é sagrado e o sono é necessário. O problema da civilização é justamente os questionamentos dos homens sobre si mesmos e sobre a vida, além de toda falta de humildade presente na arrogância da busca pela Verdade. À noite reina a igualdade, todos dormem, seja o patrão, seja o peão. O sono dos homens é necessário.
Ao anoitecer o eu, o nós, o eles, se recolhem em suas casas respeitosamente. A noite é o melhor horário, é sublime, é o melhor dos tempos para muitos dos homens, pois, a tradição é relembrada num jantar de família, onde pais, filhos e netos se encontram e se congregam, seja numa casa de campo, seja numa propriedade da Haddock Lobo. A noite dá tranqüilidade a todos aqueles que a respeitam e lhes entregam a missão de guiar a humanidade. Para estes a escuridão não dá medo, é conforto, pois haverá sempre a luz de um abajur a velar-lhes o sono.
A família dorme, mas a filha mais nova permanece acordada. O anoitecer havia lhe deixado pensativa. Olhava para lua que era a luz de esperança, para todos aqueles que tinham medo das trevas, permitida, talvez por descuido, pela censura da escuridão noturna e pensava no amor do homem que lhe fazia feliz, que havia saído e ainda não havia ligado. O anoitecer o tinha tirado forçosamente de seus braços, todos tinham hora para chegar e para sair.
Em outra casa qualquer, outra mulher espera pelo mesmo rapaz e, assim como a primeira, lhe tem amor igual, porém, não do mesmo tipo, este homem é seu filho, está mulher é sua mãe que sentada na escada, espera sua volta. Ela lhe espera ainda com a toalha na mesa, seu prato e seus talheres expostos e o resto da comida para esquentar. Preocupada com os perigos da noite reza pela sua chegada.
A noite que separa os amantes e os filhos de suas mães, torturando o coração dos pobres que não querem confessar o quanto sofrem por esperar o dia, também une os corpos em segredo. Em quarto, em quatro, paredes que escondem as intimidades e o gozo dos seres, lhes deixam satisfeitos e desejando a noite eterna. A escuridão do quarto que esconde os prazeres é a escuridão que lhes aprisiona. Gozo e sono, necessidade.
A noite da lua, a noite das estrelas, a noite dos ventos que balançam as janelas e causam arrepios a quem não deveria estar acordado, também esvazia as praças e o público espaço da cidade. Quando é noite, os homens não conversam, deixam os assuntos por resolver, guardam suas opiniões para si ou, apenas, comentam com seus familiares. A noite traz a paz do consenso criado por ela, leva pra longe a belicosidade dos homens discutindo e tentando impor suas idéias. Aqui, quem impõe é ela, ela nivela todos ao silêncio.
Talvez as crianças não entendam o anoitecer, talvez o sol que permite a brincadeira lhes seja mais interessante, mais agradável, porém, um dia entenderão que a noite se mostra soberana para regular o mundo utópico de alguns que acham que detêm as verdades para todas as perguntas e as chaves para o progresso. Por mais que chorem e lembrem-se do tempo dos jogos na rua, é preciso adormecer.
A noite pára o crescimento. As flores sem luz não desabrocham, as árvores sem luz não fazem sua fotossíntese. A noite faz os homens negarem o presente, eles apenas deitam e sonham, sonham com uma vida melhor, sonham com a volta do passado confortável. A vida se torna sonho ao anoitecer.
Há também aqueles que, lutando contra as horas de sono impostas pela noite, sonham acordados. São os poetas, os malandros, os bandidos, os animais. Os gatos e cachorros abandonados e sarnentos saem pelas ruas, derrubando latas, rasgando sacos de lixo para buscar seus alimentos, um resto de maçã, um bife quase podre, qualquer coisa que faça se esconder a fome. Os poetas olham a lua com a esperança de um dia, o dia desanoitecer a escuridão. Andam escondidos, fazendo rimas, disfarçando sinas e cantando o amanhecer. O malandro anda procurando sua mulata, sua gata, o seu bem-querer, para fazer da noite um espaço, onde possa amar sem paredes aquela que ele viu pela primeira vez. Os bandidos, ou aqueles que são considerados bandidos, desafiam a escuridão, com uma arma na mão, procurando confusão e tentando disfarçar. Para os animais a carrocinha, para os homens o camburão. Não é por mal, mas a noite já proclamou: “o sono é necessário, os homens precisam dormir”; assim, qualquer pessoa que atrapalhe o descanso dos seres de bem, deverá ser punida.
A noite mata o homem, para o próprio bem do homem. O sono é o melhor para todos. A noite quer representar segurança, quer velar-lhes as horas noturnas, o descanso, para não precisarem se preocupar, mesmo assim continuam lutando contra o seu poder soberano. A noite é. Na noite as coisas são, são como ela pensa que devem ser, e faz isso para o bem de todos, para não precisarem se preocupar, não precisarem se questionar, para que possam dormir tranqüilos e em paz, sem a turbulenta subjetividade humana. Ela parou as máquinas, calou os baderneiros, escondeu os amantes na privacidade, trouxe a ordem, mas a luta continua, o dia quer nascer e o homem quer acordar.
Ela sente que está perdendo o terreno, sente que está perdendo seu império, os despertadores estão preparados, os sonhos estão acabando. Ela deixa, ela permite algumas luzes sobre a cidade, talvez para tentar satisfazer algumas exigências dos excluídos, mas não adianta, eles querem o dia, eles querem o sol a pino, eles querem as flores desabrochando, eles querem a fotossíntese. A noite é personagem que dissimula. Sentindo que iria perder sua soberania, ela, soberana, desanoitece a manhã e retira seu manto negro sobre a cidade.
Os homens acordam indispostos, sem saber o que fazer. Sabem que terão muito trabalho pela frente. Os olhos remelentos demonstram que dormiram demais. Alguns choram pela noite que foi, pela segurança e pela ordem que eles achavam que ela trazia. Agora não há mais noite, apenas metafísica. Agora não há mais sono, são apenas os homens acordados se preparando para a lida dura. A subjetividade está livre, podem dizer o que quiser sem meias-palavras, podem gritar, podem cantar o dia. Agora é hora da responsabilidade, eles se soltaram das confortáveis algemas do sono, para construir com a liberdade fria e dura um mundo melhor. Alguns se levantam da cama e vão tomar banho frio, outros viram para o lado e voltam a dormir. Estes sempre estarão a dormir.