
Era inverno. Minha família, assim como toda a cidade, migrava para terras mais quentes, onde a vida pudesse se tornar suportável. De tempos em tempos o ato se repetia, toda a população atravessava o grande lago congelado buscando terras melhores, levando junto tudo o que achasse importante.
Agasalhados. Via a minha família, meu pai, minha mãe, minha irmã mais velha e dois irmãos mais novos, caminhando a passos lentos, levando mais coisas do que podiam suportar. O frio era intenso. O vento cortava como uma lâmina a única parte do rosto descoberta, entre a touca e o cachecol. A paisagem era monocromática; o branco refletia tanta luz que quase cegava os nossos olhos. O que nos mantinha caminhando era a terra prometida. A cada passo dado estávamos mais próximos do fim do inverno.
De repente aconteceu. O gelo começou a rachar, talvez fosse fino demais para suportar o peso de toda cidade. Todos ouviram o barulho como se o céu, refletido no lago, começasse a rasgar e pararam; sentiram o chão tornar-se instável. Alguma coisa estava acontecendo.
Os passos lentos e ensimesmados tornaram-se uma grande corrida. As pessoas corriam desesperadas. O gelo que cobria o grande lago começou a rachar bem no início, próximo da origem de nossa viagem; já não era possível retornar. Ou chegávamos ao nosso destino ou morreríamos soterrados pela liquidez.
A primeira coisa a afundar foi a confiança – já não tínhamos certeza se chegaríamos do outro lado – e com ela todos os projetos pessoais e coletivos. Eu, particularmente, tinha o sonho de criar uma escola de música na nova cidade, mas na ensandecida corrida deixei para trás o meu fagote. Era ele ou eu; e, para manter a velocidade, tive que deixá-lo para ser engolido pelo lago. O sonho de construir uma sociedade mais justa e perfeita também ruía a cada passo. Os mais rápidos deixavam para trás os mais lentos, tentando se salvar da rachadura que perseguia a todos. Os laços humanos se tornavam tão fluidos quanto o lago que se rompia. As famílias se separavam e cada membro afundava individualmente.
Alguns tentaram manter a confiança, mas afundaram. Os cientistas tentaram racionalizar as formas de conter o lago, contornar o abismo líquido que surgia, ou criar uma melhor organização para a corrida. Afundaram. Os membros das diversas igrejas tentavam manter a confiança dos fiéis que imploravam a salvação. Afundaram. Os governantes tentaram criar novas leis para conter o pânico que surgia, trazer maior segurança para os corredores e auxiliar aqueles que ficavam para trás. Afundaram. Quem sobreviveu era quem corria: sem família, sem projetos, sem Deus e sem Estado.
Eu continuava correndo. Confesso que carreguei no peito durante algum tempo certa dor. Não era fácil perder todas essas coisas, porém, era a única maneira de continuar vivo e acabei me acostumando. Todo o sofrimento causado pela perda de amigos, amores, parentes, crenças e planos, foi substituído por uma intensa sensação de liberdade. Corria livre intensamente, sem nada que me prendesse, libertado de todas as amarras e do comprometimento com os outros. A rachadura ficava cada vez mais distante e a minha corrida era cada vez mais intensa. Foi então que pensei:
“Sou livre para tudo, menos para parar de correr”. Neste momento fui engolido pelo lago.
Agasalhados. Via a minha família, meu pai, minha mãe, minha irmã mais velha e dois irmãos mais novos, caminhando a passos lentos, levando mais coisas do que podiam suportar. O frio era intenso. O vento cortava como uma lâmina a única parte do rosto descoberta, entre a touca e o cachecol. A paisagem era monocromática; o branco refletia tanta luz que quase cegava os nossos olhos. O que nos mantinha caminhando era a terra prometida. A cada passo dado estávamos mais próximos do fim do inverno.
De repente aconteceu. O gelo começou a rachar, talvez fosse fino demais para suportar o peso de toda cidade. Todos ouviram o barulho como se o céu, refletido no lago, começasse a rasgar e pararam; sentiram o chão tornar-se instável. Alguma coisa estava acontecendo.
Os passos lentos e ensimesmados tornaram-se uma grande corrida. As pessoas corriam desesperadas. O gelo que cobria o grande lago começou a rachar bem no início, próximo da origem de nossa viagem; já não era possível retornar. Ou chegávamos ao nosso destino ou morreríamos soterrados pela liquidez.
A primeira coisa a afundar foi a confiança – já não tínhamos certeza se chegaríamos do outro lado – e com ela todos os projetos pessoais e coletivos. Eu, particularmente, tinha o sonho de criar uma escola de música na nova cidade, mas na ensandecida corrida deixei para trás o meu fagote. Era ele ou eu; e, para manter a velocidade, tive que deixá-lo para ser engolido pelo lago. O sonho de construir uma sociedade mais justa e perfeita também ruía a cada passo. Os mais rápidos deixavam para trás os mais lentos, tentando se salvar da rachadura que perseguia a todos. Os laços humanos se tornavam tão fluidos quanto o lago que se rompia. As famílias se separavam e cada membro afundava individualmente.
Alguns tentaram manter a confiança, mas afundaram. Os cientistas tentaram racionalizar as formas de conter o lago, contornar o abismo líquido que surgia, ou criar uma melhor organização para a corrida. Afundaram. Os membros das diversas igrejas tentavam manter a confiança dos fiéis que imploravam a salvação. Afundaram. Os governantes tentaram criar novas leis para conter o pânico que surgia, trazer maior segurança para os corredores e auxiliar aqueles que ficavam para trás. Afundaram. Quem sobreviveu era quem corria: sem família, sem projetos, sem Deus e sem Estado.
Eu continuava correndo. Confesso que carreguei no peito durante algum tempo certa dor. Não era fácil perder todas essas coisas, porém, era a única maneira de continuar vivo e acabei me acostumando. Todo o sofrimento causado pela perda de amigos, amores, parentes, crenças e planos, foi substituído por uma intensa sensação de liberdade. Corria livre intensamente, sem nada que me prendesse, libertado de todas as amarras e do comprometimento com os outros. A rachadura ficava cada vez mais distante e a minha corrida era cada vez mais intensa. Foi então que pensei:
“Sou livre para tudo, menos para parar de correr”. Neste momento fui engolido pelo lago.